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sábado, 11 de abril de 2020

Wander Piroli: Uma manada de búfalos dentro do peito, de Fabrício Marques




“Alguns autores estão presos à página impressa. Estou preso à página viva, que é a rua”
W.P.


Por Adriane Garcia

Por estes dias, estive lendo a biografia de Wander Piroli, escrita pelo poeta e jornalista Fabrício Marques. O encontro, de Fabrício e Piroli, não poderia ser mais perfeito. Primeiro, porque sendo jornalista, Fabrício Marques saberia focar um dos aspectos cruciais da vida do biografado, sua importância na história do jornalismo entre as décadas de 60 e 80; segundo, porque, sendo poeta, Fabrício Marques teria (e teve) sensibilidade e sagacidade suficientes para flagrar a essência e a poesia no ser humano Wander Piroli, além de falar com propriedade sobre sua obra literária.

O livro, muito bem editado pela Conceito Editorial, na coleção Beagá Perfis, tem um formato agradável ao leitor e traz várias fotografias de Wander Piroli, além de cópias de alguns de seus trabalhos no jornalismo e capas de seus livros. A linguagem é clara e há muitos trechos de entrevistas nos quais se pode confirmar o caráter que Fabrício Marques nos descreve.

Uma biografia, além de trazer os atos e palavras do biografado, os testemunhos sobre ele, deve traçar-nos o caminho de uma vida única, suas vicissitudes. O biógrafo refaz, interpreta e revive. O trabalho de um bom biógrafo é difícil, pois precisa se amparar ao máximo nas fontes, já que as zonas intermediárias entre a reconstrução e a bisbilhotice, entre a biografia e a hagiografia são tênues. Várias intenções podem estar na raiz das biografias – de elevar a detratar, e muitas vezes elas podem traduzir uma “pedagogia do exemplo”. Mas para o leitor, o que ela deve fazer é fascinar.

Já nas primeiras páginas dessa biografia fascinante entendemos a relação umbilical do escritor Wander Piroli com o bairro da Lagoinha – um bairro operário de imigração italiana que se formou para a construção da capital Belo Horizonte – e seus personagens: trabalhadores, boêmios, bêbados, prostitutas, marginais, abandonados de todo tipo, vítimas da injustiça social. É o bairro da Lagoinha, onde o escritor passou a infância e grande parte da vida, que influenciará não só sua obra literária, mas suas escolhas jornalísticas. Tendo sido na maior parte das vezes editor da página policial de jornais, Wander Piroli nunca dava o fato por si, mas perguntava a razão: “O editor não se limitava à interlocução com os superiores, estimulava os jornalistas a ir além do mero fato, como pontua Alberto: “Uma das primeiras recomendações de Piroli era: ‘Busquem sempre os porquês’. Foi procurando o ‘porquê’ que sua equipe ganhou o Prêmio Esso de jornalismo com o caso Defensor, em pleno regime militar, ao denunciar a tortura praticada pela polícia contra um trabalhador até que ele ficasse paraplégico.

Formado em Direito, Wander Piroli advogou na Justiça do Trabalho por pouco tempo, indo depois para o jornalismo, onde sempre se destacou. Corajoso, criativo, anárquico e leal a si mesmo, criou manchetes ousadas, publicou matérias impublicáveis, desafiou o seu tempo – em plena ditadura – e foi demitido muitas vezes. Chegou a trabalhar no Suplemento Literário de Minas Gerais, de onde se demitiu alegando não ter vocação para “coveiro cultural”. Acreditava que o jornalismo devia ser feito para incomodar o poder, refletir, melhorar a vida das pessoas. Como escritor não foi diferente, exercitou a linguagem tentando purificá-la de todo penduricalho, quis aproximá-la ao máximo da vida – seu sonho era poder ser lido por operários. Seus personagens são reais, ele os vê, escuta, procura.

Na literatura infantil inaugurou uma nova forma de escrever, trazendo para as crianças temas reflexivos. Seu O menino e o pinto do menino e Os rios morrem de sede, por exemplo, rompiam a visão edulcorada da vida que, muitas vezes, tenta enganar as crianças. Seus livros fizeram sucesso, dividiram opiniões, foram considerados polêmicos, sob o argumento de que não se devia escrever coisas fortes para crianças.

Em Wander Piroli: Uma manada de búfalos dentro do peito, Fabrício Marques, além de traçar um panorama completo de seu biografado, atendo-se a muitas fontes e depoimentos, escuta seu biografado, deixando que ele também fale sobre si mesmo. Wander Piroli: uma manada de búfalos dentro do peito nos leva a desejar conhecer mais da literatura desse escritor incansável, que tinha verdadeira obsessão por melhorar um texto e pressa nenhuma em publicá-lo. Que acreditava que jornalismo e literatura se misturavam à própria vida e era ele próprio um exemplo dessa simbiose. Um escritor que tinha muitos amigos e que era por eles amado. Um homem apaixonado pela vida e cuja paixão – tão bem descrita – acaba por nos apaixonar também.

Sem o menor pudor, declaro que gosto de viver. Sempre tive uma certa incapacidade para aceitar a injustiça. Nem pensar em futuro, é viver o presente. Eu fui treinado a não abrir mão da esperança. Acredito numa sociedade melhor, para mais gente... E creio que tem muita gente com a mesma fé, a mesma esperança. Sou um homem aprisionado. Mas eu negocio a minha liberdade o tempo todo e luto por ele. Eu vivi a minha vida, pequenininha, mas eu vivi pedaço por pedaço. Quem esteve comigo viveu também. Então, eu não admito tristeza. Vivo intensamente com o meu pessoal, eu gosto das pessoas e gosto deles, exageradamente, mas não exclusivamente, porque eu gosto de muita gente ao mesmo tempo. Nunca me arrependi disso e nunca quebrei a cara. Acho que vou morrer desse jeito, com uma certa insubordinação, uma certa rebeldia. A boa jogada de viver está, por exemplo, num pedaço de terra na beira do São Francisco. Se eu pudesse, estaria lá, de pé no chão.” (p. 251)

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Wander Piroli: Uma manada de búfalos dentro do peito
Fabrício Marques
Biografia
Conceito Editorial
2018




terça-feira, 30 de abril de 2019

Carolina, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro





Por Adriane Garcia

Escrita por Sirlene Barbosa e desenhada por João Pinheiro,  a biografia em quadrinhos Carolina conta a vida da escritora Carolina Maria de Jesus. Da infância em Minas Gerais, com direito a profecia de que ela seria poetisa, da luta pela sobrevivência da família, com três filhos, em São Paulo, até sua morte numa chácara, o livro flui como a obra de arte que é: bonito, emocionante, denso e dramático, tanto no texto quanto no traço do ilustrador.

Com algumas frases retiradas de Quarto de despejo, obra mais famosa de Maria Carolina de Jesus, os quadrinhos nos levam a conhecer o tom da obra desta mulher forte, negra, pobre, talentosa e que se dedicou a ler e a escrever mesmo quando já exausta.

Por um golpe de sorte, o jornalista Audálio Dantas encontra Carolina na favela do Canindé, lugar onde ela vivia, enquanto realizava uma reportagem. É Audálio que, vendo os escritos de Carolina, ajuda a torná-los livro.

Para além da biografia, o livro também fala sobre o racismo, triste fundamento da sociedade brasileira que precisa cada vez mais ser denunciado e discutido.

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Carolina
Sirlene Barbosa e João Pinheiro
Grafic novell
Biografia em quadrinhos
Ed. Veneta
2016


terça-feira, 24 de abril de 2018

Humana, demasiado humana, de Luzilá Gonçalves Ferreira





Por Adriane Garcia

Humana, demasiado humana, de Luzilá Gonçalves Ferreira (ed. Rocco, 2000) é uma biografia sobre a escritora, psicanalista e pensadora russa Lou Andreas-Salomé.

Com linguagem fluida, clara e competente, Luzilá Gonçalves Ferreira nos leva a uma viagem em que nos sentimos de perto, acompanhando Lou, enquanto passeamos na Rússia, na Alemanha e na França das últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX.

O livro, amparado por ampla pesquisa, tanto da obra ficcional e poética de Lou quanto de sua extensa correspondência e a de seus amigos, ainda nos prepara as deliciosas surpresas de nos encontrarmos com Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Malwida von Meysenbug, Rainer Maria Rilke e Sigmund Freud.

Mulher absolutamente à frente de seu tempo, Lou Andreas-Salomé foi tida por seus contemporâneos como um gênio, tendo despertado a paixão de muitos com os quais conviveu. Sua vida foi a prática daquilo que ela defendeu: a liberdade das mulheres, inclusive de ir e vir, o direito à igualdade, o questionamento dos lugares definidos para o feminino como o casamento e a maternidade. Rompendo com preconceitos e tabus, Lou foi um testemunho da capacidade das mulheres de se sobressaírem na vida intelectual e obter respeito pela inquestionável qualidade de seu trabalho.

Luzilá Gonçalves Ferreira consegue, em Humana, demasiada humana, como sugere o recorte para o título, apresentar-nos tanto a pensadora quanto a mulher Lou, com suas escolhas, contradições e enorme desejo pela vida. Uma biografia cheia de luz, como o olhar de Lou Salomé.


Em carta datada de 4 de maio de 1927, dia de aniversário do mestre, por exemplo, Lou fala do verão que se anuncia, precoce e de como age o tempo sobre o seu corpo – ela tem sessenta e seis anos – e o que daí resulta. O trecho da carta em que aborda este assunto vale uma transcrição, bem como a resposta que lhe fez Freud:

Hoje temos o nosso primeiro dia brilhante de verão. Até aqui, o tempo conservou o habitual e irritante comportamento da primavera, que é tradicional na Alemanha: servir algo agradável, que então é tomado de volta outra vez – algo como costumava acontecer na infância, quando se guardava para “mais tarde” a maioria das coisas na mesa em que os presentes de aniversário eram dispostos. Hoje estou esticando meus velhos ossos ao sol e meu marido está fazendo o mesmo. Isto nos levou a discutir o fato de que a velhice realmente tem uns “aspectos ensolarados”, pouco perceptíveis em outras épocas da vida. Nesse ponto, realmente, vou tão longe que me torno francamente curiosa quanto ao que ainda permanece desembaraçado para mim na assombrosa meada da vida e quanto a que surpresas entrelaçadas nesta meada ainda devem apresentar-se diante de mim. Mas admito sem reservas a natureza quase idiotamente infantil desta atitude. Ainda assim, ela continua a rir zombeteiramente de toda a minha sabedoria superior, apresentando-se todas as manhãs logo que abro os olhos e antes que eu seja completamente uma compos mentis, e conferindo a todo o dia que se segue alguma coisa desta jubilosa idiotice.

A resposta de Freud a esta carta é curta, afetuosa, mas bem antes pessimista. No dia 11 de maio ele assim responde à sua “querida e indômita amiga”:

Li sua carta de aniversário com a mesma sensação que se tem, sentado ao lado do fogo, no inverno, aquecendo-se em seu calor. Como é maravilhoso – um marido e uma mulher, o primeiro dez anos mais velho, e a última dez anos mais moça do que eu, e eles ainda gostam do sol. Mas, para mim, a idade ranzinza chegou – um estado de total desilusão, cuja esterilidade é comparável a uma paisagem lunar, uma idade de gelo interior. Talvez o fogo central ainda não esteja extinto, porém, e a esterilidade afete apenas as camadas periféricas e, se houver tempo, uma nova erupção possa ocorrer (…).
Sinto saber menos de você agora. Que novas prendas a vida traz consigo? Em grande parte, coisas negativas, perdas, também de pessoas, de quem algum dia possuímos uma parte.
Meus calorosos agradecimentos e lembranças a vocês dois, você e seu velho companheiro, de Seu Freud.”

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Humana, demasiado humana
Luzilá Gonçalves Ferreira
Biografia
Rocco
2000