Por Adriane Garcia
Estive por uma semana
lendo o romance DEC[AD]ÊNCIA, de Manoel Herzog (Ed. Patuá, 2016). O que quer
dizer que estive por uma semana rindo muitíssimo e assombrando-me diversas
vezes. Como falamos aqui em Minas (eu me repetia a cada capítulo): “Tem cabimento?”
Dec[ad]ência conta a
história de Sérgio, um psicólogo com fortíssimo e irreparável complexo de
Édipo, que se envolve com uma multidão de mulheres, entre elas, uma mulher mais
velha, B., também psicóloga, vizinha de consultório. Durante o conturbado
romance (que era para ser apenas uma transa), o leitor terá a chance de
conhecer este protagonista: oportunista, cínico, egoísta, desonesto, machista,
homofóbico (quiçá gay enrustido), agressor de mulheres, palestrante
motivacional no âmbito da auto-ajuda, e vítima de uma gravíssima prisão de
ventre, entre outras revelações. Como rir disso? É aí que entra a linguagem.
A narrativa é construída
supostamente por um ghost-writer, GW. Porém, há uma briga constante entre o
protagonista e o “escritor” para tomar as rédeas do livro. Com uma falta de
talento confessa para a escrita e tendo lido pouquíssima literatura, por
odiá-la, Sérgio é obrigado a contratar GW, “um advogado de Santos que tinha um
cacoete machadiano odioso”. Nesta brincadeira de chamar o leitor,
constantemente, aos mecanismos da feitura do livro, Manoel Herzog (GW? Sérgio?)
consegue nos imbricar no seu jogo. Mas essa é apenas uma das maneiras de Herzog
nos fazer rir.
Em Dec[ad]ência, o
deboche é a marca constante da forma. Herzog debocha dos próprios termos, do
uso de parênteses, mesóclises (ah, estamos fartos de mesóclises!), aliterações,
jogos de palavras. Ao fazer isso, desarma o leitor para o modelo em que o livro
é escrito, habilmente, coloca-o de modo natural na leitura, como se fosse contemporâneo
escrever à moda antiga, por exemplo, usando verbos no pretérito mais que
perfeito.
Poderia um desavisado
entender que falo de uma comédia, mas, para além da forma, no tema e seu
tratamento, na construção de seus personagens, Manoel Herzog traz uma grande
tragédia. Seu humor, comicidade e ironia muitas vezes alcançam o grotesco. É o
humor que violenta, o humor ligado à crueldade, o “humordestruição” como
vivência irrestrita da crueldade do qual falou Artaud. E é o humor revelação:
aquele que me coloca (ridente), diante do objeto (risível) e me faz perguntar:
qual a minha relação com isto de que rio?
A piada, em Dec[ad]ência
é a própria vida e sua precariedade. É o indivíduo, a doença e a morte, é o
país, é o cidadão de bem, é todo o sistema fascista germinado e em pleno
crescimento entre nós. Como quem apenas conta uma piada (truque de bobos da
corte para que a verdade fosse dita sem que suas cabeças fossem cortadas),
Herzog denuncia o homem que sabe usar o sistema, que faz sucesso a qualquer custo,
que não se importa com absolutamente nada para além do seu próprio umbigo e que
por detrás de insuspeitada decência, desce, decai. Como quem apenas conta uma
história centrada num indivíduo, Herzog denuncia a pequena e privilegiada
parcela brasileira da população que se incomoda que aeroportos passem a abrigar
gente que jamais deveria ter saído das rodoviárias.
De Pirandello, em O
humorismo, a afirmação de que “o humor não reconhece heróis; diverte-se em
desmantelar, em decompor mesmo quando não seja isto coisa agradável”. Vamos
rindo de um homem e de suas vítimas, do que nos conta e de como nos conta,
Herzog, sobre seu anti-herói, aos poucos caminhando para a fatalidade, não sem
antes fazer uma incursão gananciosa pelo mercado da fé, fartamente representado
pelas igrejas neopentecostais brasileiras. Os de estômago muito sensível talvez
devam pegar o livro bem avisados, também os do policiamento da linguagem, os
preocupados com a vigilância do politicamente correto em literatura: Herzog não
alivia, faz tudo pelo seu personagem.
Riso para a reflexão e o
reconhecimento. Empreitada corajosa para leitores dispostos ao susto. Recomendo
muitíssimo. E “fiquem tranquilos: nenhum humorista atira para matar” (Millôr).
A antessala do
consultório de Beatriz ostentava um bigodudo autorretrato de Frida Carlos,
pintado não sei por quem. Por que cazzo venho a me lembrar daquele autorretrato
de mme. Carlos, afinal? Óbvio que por força de uma livre associação, um
conceito tão corriqueiro em psicologia corporativa, focar é essencial pra gente
poder ter mais qualidade de vida, segundo o escólio de Theodore Adorno,
atravessado pela hermenêutica de Lair Ribeiro. Eu confesso que sempre nutri uma
antipatia gratuita por Frida Carlos, essa chatíssima pintora da modinha
que não fez outra coisa na vida que se
autopintar a si mesma e reclamar de sua infertilidade e alimentar a loucura de
uma legião de sua infertilidade e alimentar a loucura de uma legião de doidas
mal-amadas. Beatriz a idolatrava, como se pode concluir. O bigode de Frida a
mim parecia melhor aplicado no rosto angelical de uma outra Beatriz, Beatriz
Preciado, grande psicóloga espanhola proprietária de um buço e uma teoria
invejáveis.
A minha antipatia por
Frida se fez mais acentuar no dia em que Beatriz, não a Preciado, mas a minha
amada B., arrogou-se no direito de criticar a aquisição que eu e Saulo fizemos
para a antessala de nossa empresa, duas lindas telas-painel de Romero Britto. (p.44 e 45)
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Dec[ad]ência
Romance
Manoel Herzog
Patuá
2016