Por Adriane Garcia
Turismo para cegos, de Tércia Montenegro (Cia das Letras, 2015), conta a história de Laila e Pierre. Laila é a pintora que está ficando cega, em um processo irreversível. Pierre, um funcionário público que era seu aluno nas aulas de pintura.
Narrado pela atendente de um petshop, que conheceu os dois quando escolhiam um cão-guia, o romance se faz de uma forma instigante e envolvente. Tércia Montenegro, ao desenvolver a trama desse relacionamento, traz ao leitor uma aproximação com o tema da cegueira, da deficiência visual, das deficiências como um todo e uma reflexão acessória, porém não menos importante, sobre a questão do léxico politicamente correto e a linguagem literária. Turismo para cegos não está preocupado em se afinar com o jargão de “portadores de necessidades especiais”, menos ainda em tratar o assunto com qualquer “coitadismo”; é literatura e, por isso, acompanha seus personagens naquilo que os fazem verdadeiros, para o bem e para o mal.
Não obstante a inegável terribilidade de perder a visão, Turismo para cegos nos fará perguntar se a Laila que nos é apresentada é a Laila de antes da cegueira ou se a cegueira é que lhe causou uma grande modificação. Laila é uma cega voluntariosa, que usa Pierre como se ele fosse o seu cachorro, tanto que escolhe esse nome, Pierre, para nominar também o cão. Pierre, por seu lado, gosta do exercício de estar com Laila (que não pode mais ver o quanto ele é feio), faz do ato de ajudá-la uma espécie de missão e permite seus caprichos, como o de viajar gastando todo o seu dinheiro. Porém, tudo isso a narradora conta a partir de relatos de Pierre e do preenchimento das lacunas, obviamente, pela sua imaginação. Ou seja, as informações não são dadas pela própria Laila, o leitor não conhece essa primeira pessoa, em primeira pessoa, o que torna a narrativa ainda mais curiosa, confundindo de vez o nosso julgamento.
Turismo para cegos é um livro que prende nossa atenção do início ao fim, de leitura fluida e profunda, com algumas reviravoltas muito interessantes. Ao viajarmos para dentro da escuridão de Laila, vamos também conhecer a escuridão da narradora e de Pierre. E, claro, pensaremos nas possibilidades da nossa própria escuridão.
A literatura sempre escreve certo pelas linhas tortas. Ao tratar seus personagens sem compaixão, Tércia nos oferece o exercício da compaixão, porque enxergar não necessariamente é ver.
“(...) Em várias conversas, ela já demonstrara impaciência com o que chamava de “demagogia do fim dos tempos”. Enquanto o planeta se destruía na maior velocidade possível, os mocinhos de propaganda apareciam com cartazes de uma atitude ecológica. Gabavam-se de usar bicicleta em vez de carro, separavam o lixo por categorias e perdiam-se em discussões sobre a melhor forma de descartar peças íntimas e óleo de cozinha. E toda a retórica da diversidade criara um léxico falsamente neutro para se referir a negros, gays ou deficientes, gerando polêmicas e projetos a se alastrar pelo mundo. Ninguém mais tinha direito ao silêncio ou à palavra censurada – embora o pensamento continuasse a todo vapor, incontrolável como sempre foi.” (p. 70)
“Os recém-nascidos sempre me inspiraram pavor, como se fossem uma fissura do universo. O todo harmônico de repente extravasa, materializando-se de forma inexplicável. É diferente do que sinto em relação aos mortos, que afinal não se acabam completamente: persistem nos ossos, em células dispersas. Mas um bebê, inédito de feições, com sua miúda presença invasiva, traz um desequilíbrio e rompe espaços até então ausentes. As exigências surgem desde o primeiro momento, com a criatura que esperneia, debatendo-se numa gaiola invisível. Eu me lembrava do medo nas ocasiões em que visitei maternidades e berçários, para alguma prima ou tia me mostrar o novo membro da família. Depois, na época em que uma amiga de adolescência fizera “uma besteira”, conforme falou, eu a vi parecendo uma espancada a se recuperar no leito do hospital. Uma bisnaga feita de panos, com uma cabecinha humana, descansava a seu lado – e mal pude encará-la. Perdi o fôlego só de pensar que um dia isso fosse acontecer comigo.” (p. 206)
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Turismo para cegos
Tércia Montenegro
Romance
Cia das Letras
2015