Por Adriane Garcia
Bela
edição da Cosac Naify, o que é quase uma redundância, o livro Via Férrea, de
Mario Alex Rosa é um objeto prazeroso de se ter em mãos: azul, formato
estreito, 64 páginas que já sugerem não haver excesso. Por fora, o título emblemático, curioso,
substantivo concreto que antecipa a possibilidade de movimento, duro, composto,
de ferro e metáfora. Via. Férrea.
Entrar
nesse caminho, abrir esse livro, exige silêncio. Não é a poesia fácil que se
pode ler no barulho infernal de nossos dias postáveis, pois pouquíssimo ou nada
nos exigirá memória na terra da dispersão. É outra coisa, é como no verso de
Drummond: “Penetra surdamente no reino das palavras”. É sempre necessário um
silêncio para ouvir o outro silêncio.
Munida
(e necessitada) de silêncio, abri. Nada sabia eu da viagem, essa a grande
aventura a que os livros podem nos levar. Ocupei um dos vagões do monstro
metálico, um vagão melancólico, onde primeiro me deparei com essa entidade
assustadora e premente: o Tempo.
Em
Via Férrea há uma constante inquietação e constatação a respeito do tempo e seu
efeito sobre nós, o homem sabe-se um bicho que está no mundo, “bicho ferrado”, mas
diferentemente dos outros bichos, consciente de sua condição, sente a ação do
tempo. Bicho versus palavra, nomear é sua angústia e salvação. Há agonia se a
palavra cala, pois a palavra surge como algo de bom nos dias, como uma
interrupção na sua labuta de sísifo; porém, perpassa pelos poemas de Via Férrea
a ideia de que a expressão jamais comunica exatamente aquilo que veio
expressar. Existe um sentimento de impotência e incomunicabilidade diante do
mundo.
“A tarde terminou com sinal de
promessas.
Vieram as palavras!
E, com elas, a raiva varou noite
adentro.”
Também
é interessante notar a opressão dos calendários como repetição. Desde o
calendário grafado, dos dias úteis, que aprisionam a vida, que colaboram para o
sentimento da falta de sentido de viver, um dia após o outro, como o calendário
mais natural, o calendário regido pelo aparecimento e pela ausência da luz do
sol, pelos movimentos da Terra: manhã, tarde, noite e pelas estações do ano. O
ser está preso aos seus afazeres, obrigações. Entre nascer e morrer (as duas extremidades
de uma via), viver é um exercício penoso, desconfortável, “o salto é zero”:
Na próxima manhã
Sol escaldante barra a visão.
Não dessa mão que escreve
(rodopia pelas ruas da cidade)
e nada sobrevoa.
Fixar é aqui mesmo.
Contra tudo:
o salto é zero.
Posso não regressar.
Mas, a tarde neutra, desemboca
na manhã seguinte.”
Da
aflição para que os dias úteis terminem, o humano prazer de que o sábado não
termine nunca, mas ele “vai anoitecendo”, e o domingo é o prenúncio da
segunda-feira. Uma das imagens mais bonitas de Via Férrea, por sinal, está no
poema Domingo, onde, de forma tão sutil e indireta, o poeta nos faz ver um
domingo (um menino?) soltando pipa (a luz que faltava?). A maneira pela qual
ele faz isso é um grande acerto no poema: dizer sem dizer, mostrar, mostrando
outra coisa, permitir que a imaginação torne o leitor coautor do poema:
“O domingo veio quente.
Sol a pino.
Ele empinava a luz que faltava.
Então, já sabe escolher entre o sim
e o não?
Não.
Então volte e mastigue suas
próprias palavras.”
Não
estaríamos viajando, verdadeiramente, numa via férrea, acaso não prestássemos
atenção na geografia. A paisagem é mesmíssima e é o amor que pode interrompê-la
com alguma novidade. Assim, o amor aconteceu durante o percurso, mas a via só
leva para a frente, exceto pela memória, “poeira”, que “noitea” os dias. O amor
é a força capaz de fazer o coração bater, mas “ele só bate”. O amor é o grande
sonho irrealizado, nem ele ou o sexo aparecem como redenção nesta poesia de
Mario Alex Rosa, pois não é possível seguir na companhia do amor, exceto como
perturbação: a vida é solitária e de dor continuada. Como no ritmo de um trem,
o ritmo desta dor continuada é melodicamente constante e, por isso, suportável,
mas apenas depois de já se ter alcançado a maturidade de saber ouvi-lo:
“Nunca o relógio andou tão rápido:
Disseram: Tempo de mudanças traz
vida nova!
As folhas de outono amanhecerão
num jardim primaveril. As chaves
abrirão
outras portas. Para sempre pensará
no suicida que foi.
Em todo caso, sem desastre fez o
dever de casa: mudou.
Mas aqui, onde ninguém chega,
uma dor muda
dói.”
E
a via segue. O ser, comprimido pelo próprio caminho, sente raiva, violência e
mantém-se acuado, minúsculo, no paradoxo de conter em si um furacão de
sentimentos. Durante esse trajeto, há pouca possibilidade de fuga, e nem mesmo
o poema se estabelece como uma:
“Aqui no branco
ou na avenida estreita,
a margem é a mesma.
A sombra também.”
A
dor interna muitas vezes coincide com uma dor externa, visível na paisagem. Ora,
eu não disse que a paisagem era mesmíssima? Isso não quer dizer que ela seja
calma e pacífica. O personagem que percorre Via Férrea (porque poesia também é
ficção) é traído pela memória, sente a
mordida, mas é dentro de si: a ferrugem, essa oxidação que é tão simbólica da corruptibilidade
da matéria, dos nossos corpos, dos trilhos. Novamente a ação do tempo, das
intempéries.
Via
de esperança mínima, o eu-poético em Via Férrea sofreu o suficiente para não
ser mais ingênuo, sabe que os dias não permitem grandes ousadias, que são
feitos de medo, inclusive do medo de amar. Não há concessão: o outro, que seria
a ponte de alguma salvação ou sentido, não se realiza. Essa é a via do ser extremamente
sozinho, que não deseja mais interrupções de ritmo com sobressaltos. E tanto a
esperança quanto o amor deixariam o coração acelerado.
Terminada
minha primeira leitura, fechei o livro e recomecei a viagem. Lembrei-me do poeta
W. H. Auden e voltei a uma sua palestra em que dizia que a poesia funcionava
quando, entre outros elementos do saber fazer, antes, o poeta encontrava o
elemento sagrado. Para Auden, “não se pode escolher um ser sacro, é preciso
encontrá-lo. No encontro, a imaginação não tem outra escolha a não ser reagir.”
Via
Férrea traz vários de nossos “sagrados” e reage a eles, estes a que temos
adoração ou repulsa: tempo, vida, morte, incompletude, amor, raiva, natureza,
mistério, sentido. O poeta consegue em Via Férrea fazer um livro em que o
confessional é matéria prima e, se vestiu em si mesmo, com o poema, uma camisa
de força para continuar o caminho, vestiu em cada poema esta contenção que
torna as palavras arte. O resultado é que emociona o leitor preparado para
sentar no banco ao seu lado e seguir. Em silêncio. A viagem emociona porque se nos identifica. Sabemos
muito bem onde a via começa e onde vai terminar.
“Trilha
Se pudesse, mataria a palavra que
guardo aqui.
Mas tenho muitos elementos covardes
e adio
o que um dia, inevitavelmente, terá
que deixar de ser.
A via férrea cortará os trilhos, os
braços e, talvez,
abra um clarão no escuro.”
***
Via
Férrea
Mario
Alex Rosa
Poesia
Cosac
e Naify
2013