Por
Adriane Garcia
Para
falar do livro “E”, de Edimilson de Almeida Pereira, podemos começar pela
bonita edição (ed. Patuá). O volume de 128 páginas intercala poemas com imagens
do artista plástico Antônio Sérgio Moreira. As imagens, coloridas, vibrantes e
fortes destacam, do corpo humano, a cabeça (orí).
Orí
é também o primeiro poema do livro, se considerarmos que Oráculo: “para sair de
tua morte,/ morre.” é a abertura de “E”, a sua apresentação, enigma sob o qual a linguagem se pronunciará.
Poesia
de grande refinamento, feita com técnica, burilamento e inteligência, Edimilson
alia esses predicados a uma sensibilidade direcionada principalmente para a
solidariedade. A poesia de “E” está falando ao outro, está de mãos dadas com o
outro; não por acaso, muitas vezes, levanta questões da ética e da política,
notadamente, as que se relacionam com o racismo, a diáspora africana, o
genocídio da população negra brasileira. A forma como desloca seus vocábulos provoca
ambivalências que só enriquecem a leitura, numa dança de sentidos:
DAN
não
me
preocupar por mim
– letal
não
me preocupar com o outro
que há em mim
– igual
não me preocupar com o outro
– imoral
não me preocupar com o eu
que
espera no outro – um sinal
Orí,
a cabeça, a mente, a inteligência, rege o desenvolvimento de “E”. O poeta evoca
a linguagem como fenômeno vital para nos fazer humanos e também para nos deixar
à deriva, nossa condição de conflito. É pela inteligência, pela capacidade de
linguagem que o poeta chama à autonomia do sujeito, à defesa de uma identidade
única e particular, contra todo sentimento de manada. “E” é letra de um rito de
origem, o primeiro sinal gráfico para o poeta se iniciar na escrita do próprio
nome: Edimilson. O ato de escrever é ato de libertação e resistência, feito com ciência e
fúria. A palavra (a poesia de Edimilson), como o metal, é moldada na forja, sob
intuição, fogo e arte, mas é preciso, e ele mesmo nos mostra, mais que técnica:
é preciso dar a ver ao leitor algo que já há no poema, mas que só o leitor
poderia acrescentar; algo que só existe quando o leitor declara para si sua
existência. Não só o “logos”, mas o “punctum” conceituado por Roland Barthes,
o ponto que fere e punge, alegra e anima. É a própria subjetividade do leitor,
pessoal e intransferível, naquilo que o toca, que trará ao poema seu maior
sentido. Desse modo, o poema é também doação.
“Ouve ainda a voz
do
mor-
to:
“dai a cada um
a
sua altura.”
As
chaves de leitura dos versos de “E” se ampliam, na medida em que o autor sabe
usar o poder da sugestão. Os poemas, em sua maioria, dizem de um ser inteiro,
integral, que não abre mão de sua singularidade. A adversidade aparece inúmeras
vezes, acompanhada dos signos da luta: língua, apneia. Seus temas são os temas
mais variados que ocupam seu mundo, seu tempo, sua ancestralidade africana: a
poesia, a música, a amizade, a saudade, o sentimento de ser estrangeiro, voduns e orixás, desigualdade social, exploração,
discriminação racial e de gênero, a tensão que é viver consciente, compreender
essa condição de ser aquele que duvida.
Recorrentemente,
aparece nos poemas de “E” a reflexão sobre o significado da palavra em nossas
vidas. Essa valorização faz com que o leitor possa depreender que também há,
nos poemas de Edimilson, uma exigência pelo direito universal à palavra e à
voz, como condição primeira para a liberdade.
Um
livro excelente, de muita beleza.
Língua
Um
cão divide a praça
:
às suas costas
Um
câncer o trópico
:
à sua cabeça
Um
laser o espólio
Um
cão decide a praça
:
em seus ossos
e
cérebro
:
em sua carne
e
raiva
apneia
– a flor do lácio
Cantilena
O
ofício da mulher antiga
era
ser avó toda manhã.
E
o nosso era fingir
que
não queríamos, não
sua
mão em nossa cabeça.
O
ofício por ser antigo,
tecia
a cada manhã,
a
mulher e seu vestido.
E
nós, entre a nesga
da
infância, ao desamparo,
cedemos
aquela manhã.
No
entanto, a inquice
vestida
à dureza bruma,
flutua
entre os cardos: nós
já
nem fingimos
a
fome de seu abraço.
Oráculo
O
que é
do
meu entendimento
se
enerva, pulsa
rompe
a
saliva.
Fora
de si se atreve:
expulsá-lo
é
colocá-lo dentro
da
vida.
Esse
o roteiro,
a
promessa.
Colocar-se
vivo
onde
nos imaginam
a
ferros.
***
Edimilson
de Almeida Pereira
Poesia
Ed.
Patuá
2018