domingo, 29 de dezembro de 2019

Tempo em fúria, de Dalila Teles Veras




Por Adriane Garcia



elemento em fúria

indignar-me
riscar o fósforo
centelha restauradora
em campos de figos
e fel

É com esse poema, acima, que o livro tempo em fúria, de Dalila Teles Veras, se inicia. Na contracapa, outro poema, Motes, diz a que veio:


a rotina exige
a indignação ordena
o afeto impele
a criação impõe

motores


A publicação de tempo em fúria é uma resposta que a poeta dá ao seu tempo – este específico: 2018/2019. Resposta urgente de uma poesia colada na realidade, no acontecimento, no cotidiano, na vida humana enquanto fenômeno coletivo, social e político.

Com poemas construídos a partir de uma linguagem objetiva – uma característica da poesia de Dalila Teles Veras – raro o uso das palavras ditas “poéticas” – tempo em fúria faz ponte direta com o leitor, sem que ele precise ser um “iniciado”, quiçá “iluminado”, em poesia. Nesse sentido, a forma também diz do conteúdo: Dalila é uma militante da democracia. E a palavra não deve criar percalços, deve muito mais comunicar-se com o maior número de pessoas, a fim de que a poesia também seja democratizada. O desafio, vencido pela poeta, é justamente oferecer uma poesia simples e complexa, trabalhada para ser acessível, como quem bem sabe a lição de Graciliano Ramos: “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.

Os poemas de tempo em fúria relacionam-se diretamente com a eleição presidencial no Brasil de 2018 e o primeiro ano de governo, 2019. A eleição foi marcada pelo uso massivo das fake news, investigadas e denunciadas ao Tribunal Superior Eleitoral; pela participação do atual Ministro da Justiça, à época juiz, na prisão do principal adversário do presidente eleito, agindo de modo parcial e fora dos ritos legais; pela ação da mídia, construindo, ao longo de mais de uma década, toda uma narrativa de corrupção contra o Partido dos Trabalhadores. Como se não bastasse, o problema do pouco tempo de propaganda política do candidato de extrema-direita na TV ficou resolvido quando levou uma misteriosa facada no abdômen e tomou conta dos noticiários, tirando-o providencialmente dos debates a que já não ia. Esses fatores combinados, mais a crise econômica (em muito fabricada pelos opositores ao governo de Dilma Rousseff), além do aumento da expectativa de crescimento individual gerada pelo crescimento econômico que vinha constante e em determinado momento decrescia, produziram uma crise política que prejudicou até mesmo partidos de direita e alçou  Jair Messias Bolsonaro ao poder. 

Sim, a poesia pode falar de tudo. Dalila fala desse monstro, o fascismo, que saiu do armário de muitas famílias brasileiras, principalmente da tal orgulhosa “gente de bem”, em cujos preconceitos o discurso de ódio do capitão expulso do Exército caiu como uma luva. Fala da falta de competência desse governo, dos seus crimes ambientais, da banalidade da sua violência, da sua omissão, da sua corrupção, da parcialidade de seu servo juiz, dos seus ministros fundamentalistas religiosos cristãos e ensandecidos. Dalila também fala da resistência, da esperança de que a História os coloque em seus devidos lugares: a obscura toca dos ratos.

A edição ainda oferece uma segunda parte chamada “uma estação no purgatório”. Nesse conjunto, cuja epígrafe não poderia deixar de ser de Arthur Rimbaud, a poeta nos conta da condição de acompanhantes e pacientes nos hospitais, esses ambientes antissépticos, alienígenas, cheios de aparelhos e barulhos estranhos, procedimentos invasivos e tantas vezes autoritários, onde estamos completamente vulneráveis com nossos corpos.

Um livro necessário, de uma poeta que domina o verso e registra sua posição: “ditadura, nunca mais... tortura, nunca mais... generais, nunca mais, nunca mais...
para que fique justificada a publicação dos poemas deste tempo em fúria, como um grito, para além dos meus umbrais.”

recusa

há qualquer coisa
de interlúdio
nesta ópera
trágica/bufa
sem libreto
só prelúdio
para a qual
não fui convidada

não ouço
não quero
não vou

 ***

tempo em fúria
Dalila Teles Veras
Poesia
Alpharrabio Edições
2019


segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Um exu em Nova York, de Cidinha da Silva




Por Adriane Garcia


Alguns livros, para além de muito bons, são importantes. É o caso de Um exu em Nova York, livro de contos de Cidinha da Silva. O livro é composto por 19 contos. Já na abertura, em I have shoes for you, Cidinha nos dá um dos elementos que irão perpassar muitas das histórias: a leitura dos sinais, o exercício da intuição, a ligação espiritual de todas as coisas.

Esse enfoque, totalmente em consonância com a cosmovisão africana, que é holística e compreende tanto o sagrado quanto o profano no mesmo espaço, será um motor para as narrativas. No conto em questão, a protagonista precisou se esforçar um pouco mais para compreender por que razão uma mulher pobre e desconhecida, que lhe ganhou uma esmola, estava oferecendo a ela sapatos. “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje” marca o entendimento profundo da ação: proteção e caminho.

Imagens inusitadas, prenhes de elementos mágicos, saltam dos contos de Cidinha da Silva. Em O homem da meia-noite, é delicioso perceber Exu no homem que descansava a perna estropiada numa grade. Rua erma, noite, há todo um clima para o medo e o mistério. A mulher pede proteção: Laroiê! E uma surpresa se revelará para a leitora, o leitor. Em Metal-metal, os princípios da cura africanos se encontram com a medicina chinesa: não à toa, essas curas pressupõem o ser como força, como encadeamento de energias vitais que podem ficar livres ou obstruídas. É saber ancestral africano a manipulação das energias, pelos elementos naturais (animais, minerais, vegetais), para alcançar o bem-estar da comunidade. Exu, como princípio de movimento que é, Rei do Corpo, também circula as vias internas.

Se a sabedoria herdeira do culto aos orixás e divindades africanas (iorubá e angola-congo) encontra personagens e cenários neste Um exu em Nova York, em tudo a autora trata da diáspora e dos seus efeitos. A história das pessoas africanas no Brasil é marcada pela violência desde sempre. Sequestrados de seu lugar, sem direito sequer ao próprio nome, as africanas, os africanos e seus descendentes tiveram que reinventar um mundo dentro de um sistema opressor e de hegemonia branco-macho-hetero-católica. Essa reinvenção – calcada na cultura, saberes que traziam, na ligação com a ancestralidade, nas características comunitárias de viver com o diverso – tornou-se um caso exemplar de resistência de um povo. Em Kotinha, a autora detalha a invasão de um templo de candomblé por evangélicos. Do lado dos criminosos, há um deus capitalista da teologia da prosperidade; do lado dos terreiros, cuja existência, por si só, já é resistência, os mundos e os tempos “Sasa” e “Zamani” se juntam.

A cosmovisão africana destaca o passado e o presente. Esses dois tempos se intercalam. “Zamani” é o tempo mítico, o tempo dos ancestrais. Os tempos se comunicam de forma não linear. A morte, por exemplo, na cultura iorubá, é apenas retorno da matéria ao seu lugar primordial. No conto Jangada é pau que boia, a matéria do homem se entrega às águas. No conto Sábado, a narradora encontra um homem que, à beira de um lago, oferta flores a Kissimbi (do panteão angola-congo) pelo nascimento do filho, mas guarda uma tristeza em relação à morte, apesar de compreendê-la.

Não tendo a atenção centrada no futuro, a cosmovisão africana não abriga escatologias como o céu ou o inferno cristãos; nem mesmo o conceito de culpa ou pecado. Em filosofias cuja práxis se dá no bem-estar da comunidade, a atenção se foca sobre o ensinamento dos anciãos e ancestrais, na responsabilidade do indivíduo diante do grupo. Os ritos fúnebres selam a compreensão e aumentam a força do “Zamani”, pois transfere a força vital de um tempo (presente) para outro (passado), assim como os nascimentos aumentam a força do “Sasa”. É uma filosofia do equilíbrio. Uma filosofia ecológica.

O passado não é estanque, é um lugar de ensinamento e memória que conversa com o presente. O ancião e o ancestral possuem lugar de destaque. No conto O velho e a moça, a jovem pergunta ao velho (Ayrá e Agodô), que lacrimeja todo o tempo, pois traz nos olhos “a memória das águas”, se deve contar o vivido. Ao ouvir a resposta “conte o que fizeste dele, minha filha”, quer saber se bastaria. O velho então, Xangô, responde: “Se basta não sei. Aviva”.

Avivar, tornar mais vivo, encher de ânimo, de alma, avigorar-se. A palavra em Cidinha da Silva surge também como grito sobre essa plenitude negada pelo racismo e pela necropolítica. Em Maria Isabel, Cidinha da Silva expõe uma das duras realidades do percurso de uma pessoa negra no Brasil: a vida curta, quase sempre interrompida/ceifada pela violência social e racista. A personagem narradora está morta e, fato raro, morreu de morte natural. No mesmo conto, a falácia da meritocracia que, se mantém apenas os brancos nos cargos de poder, é por não haver oportunidades minimamente viáveis para os negros.

Em Válvulas, há espaço para a desilusão amorosa e o assédio do pastor da igreja. A sorte foi existir Iansã e seus ventos. As personagens de Cidinha da Silva sabem ler objetos que caem do nada e se quebram. Também uma bonita história de amor em No balanço do teu mar. Em Lua cheia, filhos crescidos, casal mais velho, uma das lições do machismo: hora de o homem trocar de mulher. Nesse conto, de condução de ritmo excelente, mais uma vez o elemento mágico assume importante papel, quando a mulher preterida vê o marido fazendo para a rival coisas que jamais fez para ela. No final, temos a sensação de ter ouvido uma daquelas histórias de justiça – ou vingança – que as avós do mundo poderiam nos contar.

Marina traz uma homenagem à escritora Natália Borges Polesso. É um conto sobre o desejo de ser amada e sobre o acaso, sobre a fragilidade da vida humana. Sonho e realidade se misturam, ficando para o leitor a condução do final. Em Farrina, um pouco do retrato da diáspora como experiência comum das pessoas negras no mundo inteiro. O conto se passa em Nova York e mostra o reconhecimento dos negros entre si. Tanto lá, quanto cá, as marcas no corpo e o descaso com as políticas públicas para a população afrodescendente.

É interessante notar no conto Mameto, a ausência do preconceito contra o diferente, no caso, o envolvimento amoroso da zeladora da Casa com uma das frequentadoras (o dilema que aparece na personagem é ético, é ausente a questão do pecado ligada à orientação sexual). A comunidade aceita a vida conjugal das duas mulheres na medida em que não há mal algum para a comunidade, ao contrário, as duas mulheres vivem harmonicamente. Os orixás aparecem não para julgar, mas para celebrar o novo encontro e a alegria de uma existência que agora se tornara mais plena e prazerosa. É muito bonito o conto. E é sempre trazendo o movimento que Exu aparece.

O manda-chuva é um conto impactante. Poucas vezes o assunto do reprodutor e da reprodutora sexuais são tratados na literatura brasileira. Assunto da máxima importância, o silenciamento sobre ele também esconde os fundamentos da cultura do estupro no país. O manda-chuva conta a história de um ser humano escravizado obrigado a fazer filhos em meninas que não queriam a relação sexual, muito menos poderiam ficar com seus filhos, feitos para a venda. “Chegou a fazer 60 filhos num ano, entre as negras da fazenda e outras da região cujos donos o alugavam”. A história é de uma violência máxima e absurda, que Cidinha da Silva conduz de forma primorosa, deixando claro que não se viveria tamanhos horrores sem resistir/reagir de várias formas.

No conto Akiro Oba Ye!, jovens moradores da Vila das Alterosas convivem com a especulação imobiliária que os expulsa e o tráfico que perturba suas vidas. De maciça maioria trabalhadora, a favela convive com o grau máximo do descaso político da República. Rosa de Matamba, Mary de Anya, Robério de Ogunjá, Áurea de Obasi, Eduardo Ajagunã e Emerson Xoroquê ao longo do conto serão transformados, pela linguagem, nas divindades que representam. O conto é fascinante também pela forma.

Em Dona Zezé, conto delicioso, aprenderemos que, com perspicácia, é possível enganar a Deus; assim como aprenderemos em Tambor mineiro que há quatro batidas para o tambor e que ai daquele que toca o objeto sagrado sem permissão.

Cidinha da Silva encerra seu Um exu em Nova York com o Sá Rainha. A anciã líder que se paramenta pela última vez para morrer. Sua dor, resistência e sua despedida emocionantes não poderiam fechar melhor um livro que grita a dignidade das mulheres e homens que, por sua existência, quando tudo lhes é contrário, são o próprio milagre deste país.

Exu nos traz à encruzilhada e continua nos perguntando qual caminho vamos seguir.



Todos limpos, sem furos nas roupas, sem manchas de sangue. Surpresos ao reencontrá-la ali no lugar onde vagam. Sá Rainha chora e agradece à Senhora do Rosário. Passa a mão pelo rosto de cada um dos filhos, beija-os. Fala da saudade. O povo vai se juntando. Cerca a Rainha, os meninos. Tá caindo fulô/ tá caindo fulô!/ Lá no céu/ cá na terra/ oi lerê, tá caindo fulô!.
Sá Rainha sai do abraço dos filhos. Afasta-os, carinhosa. Abaixa-se e risca o chão com um caco de telha. Pontos que ninguém ali sabe interpretar. Coloca o bastão no chão. Chora baixinho ao tirar a coroa, deposita-a na terra.
Os filhos vão desaparecendo. O povo também. Ela fica sozinha com suas insígnias de realeza depostas. Aos poucos, Sá Rainha também some no tempo. Restam o bastão e a coroa à espera de alguém.
Êh Tempo! Êh Tempo! Zaratempô! Êh Tempo! Êh Tempo! Zaratempô! Êh Tempo! Êh Tempo! Zaratempô!” (p. 73)

***
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