sábado, 28 de março de 2020

As baleias do Saguenay, de João Batista Melo







Por Adriane Garcia


Coletânea de dez histórias que prendem o leitor do início ao fim – e reverberam, As baleias do Saguenay (Ed. Moinhos), de João Batista Melo é um livro conciso, desses que provam que mais vale um livro com poucas páginas – porém todas necessárias – do que um livro cheio de páginas, mas do qual poderíamos prescindir de grande parte. Com apenas o necessário – e epígrafes perfeitas precedendo cada conto – João Batista Melo compõe mundos. Mundos dos quais seus personagens se despedem.

No conto As baleias de Saguenay, que dá nome ao livro, um filho se despede de um pai e um pai se despede da imagem que representa um oceano limpo, despoluído, prenhe de vida: a imagem das baleias. Em Caminho das Índias, o inusitado de estarmos diante do escrivão de Cristóvão Colombo e assistindo à despedida de um mundo de superstição, indo ao encontro da esfericidade do planeta, da ciência da navegação, do mundo novo. Em A lanterna mágica, o passado fica representado no encontro com a misteriosa Luciana, na beleza do cinema, na nostalgia pelo prédio que o abrigava, um conto lindíssimo também sobre a despedida e a imposição do dinheiro “que ergue e destrói coisas belas”. Em FC, é o escritor que se despede da vida e trama o ato de escrever na própria trama. Depois do crepúsculo despede-se da amizade e daquilo que mesmo nos incomodando pode ser que faça parte de nós a ponto de sentirmos falta; é um conto sobre dois velhos que sabem que não há mais o mundo deles e que nunca confessam exatamente o que sentem um pelo outro. Retratos de uma paisagem revela a despedida da civilidade e dá uma rasteira no leitor ao nos conduzir por um caminho e chegar a outro, que sequer imaginávamos. A moça triste de Berlim é a despedida dos sonhos democráticos, a inauguração dos governos fascistas e nazistas, a instauração da violência como governo e oposição: a guerra. Em O homem que fraudava latas, despede-se da empatia. Em Os caminhos do vento, um casal vê sua lua de mel transformada numa experiência de horror (ou paranoia?), aqui um dos temas do conto que dá nome ao livro retorna: um mundo poluído, que adoece os seres e o planeta. Em Uma voz, João Batista Melo tece mais uma narrativa emocionante, o escritor sabe que escreve por causa da morte, a derradeira despedida.

Pelo enfoque do desaparecimento de mundos, As baleias de Saguenay se irmana a outro autor: o uruguaio Juan José Morosoli, também mestre de falar sobre os viventes de um tempo que já se foi, ou de personagens à beira do desaparecimento. Em ambos, José Batista Melo e Morosoli, a passagem do tempo e o sentimento de perda são cruciais.

Neste As baleias de Saguenay, o autor constrói narrativas que muitas vezes desembocam no fantástico. Seus contos saem de realidades muito palpáveis e podem ir para um salto de imaginação e/ou para uma grande metáfora. Uma habilidade em manter o suspense faz com que o leitor não queira interromper a leitura de um mesmo conto – já que a profundidade deles o fará dar uma pausa entre um conto e outro; também a variação de seus personagens, envolvidos em atividades e cenários diferentes a cada história, pertencentes a paisagens que mudam conto a conto, colabora na avidez do leitor, já que ele sabe: será surpreendido novamente.

As baleias de Saguenay traz situações profundas que nos deparam com nossas próprias despedidas, neste mundo que muda tão rapidamente que já não o reconhecemos mais e corremos o risco de nem nos reconhecermos a nós mesmos.

Alguns se fazem ao mar pelas riquezas. Outros embarcam em defesa da fé. Eu nem ao menos esse lenitivo tenho. Navego apenas por navegar. Em tempos remotos, criei escamas de peixe e me fiz sereia insubmersa, prisioneiro dos escaleres e das gáveas, condenado a vaguear pelos mares, quer como corsário quer como homem do rei.

Sem cobiça além das ondas e tormentas, não me justifico a presença nesta nau insana. Sinto a morte a nos esperar e nenhuma de suas recompensas me alicia: nem a conversão dos bárbaros nem o tesouro dos cravos e granadas. Olho o mar se abrindo para o nosso calado e me pergunto se nós o cruzamos ou se ele nos arrasta, iludidos, rumo a um destino obscuro.

Da amurada na proa, Cristóvão Colombo me observa, e no seu silêncio demonstra conhecer o que me perturba. Insinua nos olhos cortantes que sabe ser eu quem no alto das escadas, no esgotamento dos porões, sopra temores nos corpos da tripulação, espalha horrendas histórias e visões e as deixa alastrar pelo convés nas noites mais escuras. Quando tiver a certeza me lançará aos tubarões, fará dos meus braços e pés uma nova âncora, deixará os papéis onde escrevo derivarem nos vagalhões do Mar Oceano.

Por enquanto me relega ao ostracismo. Precisará de mim apenas quando avistar terra. Então me chamará, e eu, o seu renitente escrivão, contarei os atos de bravura das três embarcações que se aventuraram para onde ninguém antes ousou seguir, e enfim aportaram nas Ilhas Molucas para retornarem cravejadas de sementes. Esse é o sonho de Colombo. Esse é o meu pesadelo.”

(Excerto do conto O caminho das Índias, pag. 29)


***

As baleias do Saguenay
João Batista Melo
Contos
Ed. Moinhos
2019

Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak







Por Adriane Garcia


Ideias para adiar o fim do mundo é um livro composto, de forma adaptada, por duas palestras e uma entrevista de Ailton Krenak, ambientalista e pensador indígena, nascido na região do Vale do Rio Doce, lugar atingido brutalmente e de forma criminosa pela lama da barragem da mineradora Vale.

O livro é daqueles pequenos que não se mede. Além de conhecimento, o que Ailton Krenak desenvolve na sua narrativa é uma exposição de sabedoria. Enquanto o sistema capitalista explora o planeta a ponto de destruí-lo e adota termos como “sustentável” para continuar explorando os recursos naturais sem rever o modo de vida da espécie humana, Ailton Krenak chama para adiar o fim do mundo, para contar mais uma história.

É interessante que contar mais uma história apareça novamente como uma estratégia de adiamento da morte – lembramos a inteligência da Sherazade de As Mil e Uma Noites; contar mais uma história é depositar confiança na palavra, na comunicação, no interesse do outro; narrar e ouvir narrativas é uma forma de enriquecer as subjetividades.

Em Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak critica a ideia de humanidade consensual, uma humanidade que não consegue conviver com a diversidade, que não consegue respeitar as diferenças e aceitar que não somos e nunca seremos todos iguais, uma humanidade que quer o achatamento e a destruição das subjetividades e que, portanto, no seu conceito, já traz implicitamente a ideia de uma sub-humanidade.

O autor destaca o consumo, a separação da natureza, como se ele – o homem – não fosse parte dela. Causa dos desastres socioambientais, a transformação do homem não em cidadão, mas em consumidor, leva ao equívoco de uma espécie que se afasta daquilo que verdadeiramente poderia integrar; um ser que se vê acima dos outros seres e que os acha subordinados à sua vontade.

Krenak faz uma crítica a um modo de vida que mais se parece com a morte, pois não há celebração verdadeira, não há interação com o cosmos, com as árvores, com os rios, com os bichos, com as montanhas e as pedras, não há dança ou genuína alegria, mas ordens publicitárias em que cada um se torna apenas engrenagem do capital para servir ao deus mercado.

Por outro lado, a liberdade e alegria daqueles que ousam continuar diferentes, que se negam a habitar essa humanidade desolada gera uma intolerância enorme, pois o que chamamos de humanidade não admite os que ainda vivenciam suas subjetividades, os que ainda vivem seus ritos em comunhão com a Mãe Terra.


Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?”. Eu falei: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapara dessa.” A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.

Nosso amigo Eduardo Viveiros de Castro gosta de provocar as pessoas com o perspectivismo amazônico, chamando a atenção exatamente para isto: os humanos não são os únicos seres interessantes e que têm uma perspectiva sobre a existência. Muitos outros também têm.

Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades – as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos.”
(p. 31 a 33)

***
Ideias para adiar o fim do mundo
Ailton Krenak
Cia das Letras
2019





sexta-feira, 20 de março de 2020

Fabulário, de Ana Santos






Por Adriane Garcia

Segundo Paul Ricoeura imagem-recordação está presente no espírito como alguma coisa que já não está lá, mas esteve.” Há um “pequeno milagre”, como chama Ricoeur, no reconhecimento de algo que, não estando mais lá, é reconhecido como tendo estado.

O livro Fabulário (ed. Confraria do Vento), de Ana Santos, divide-se em três partes: Museu mínimo, Microcosmo e Fabulário. As três partes dialogam entre si, dando unidade ao livro. Seu centro é a memória como motor para a narrativa. Já em Museu mínimo fica clara a composição a partir do memorial que a poeta traz, um museu da infância – esse lugar privilegiado da memória; pois a infância se aproxima dos contos de fada para o bem e para o mal naquilo que traz de tragédia e mágica.

É pela memória que Ana Santos cria as imagens de Fabulário, buscando um elo entre passado e presente. A forma encontra o tema, já que as fábulas e os contos de fada trazem um arcabouço da memória coletiva. Se a lembrança da poeta é uma experiência individual, ao transformar essa lembrança em poesia ela seleciona aquilo que pode dialogar com o outro, na sua também experiência individual; experiências únicas, mas que se encontrando podem se reconhecer, traduzindo valores, sentimentos e sensações universais. No poema Retrato de família, por exemplo, a poeta escreve como quem pinta. O poema é uma verdadeira composição e o leitor, ao ver o retrato, pensa nos próprios retratos de família que poderia pintar. Para além das descrições, na sexta estrofe, há um susto comum a todas as pessoas – é a constatação da finitude, da perda:

(Se alguém escavasse
o quintal da infância, acharia ossos
de aves e cães, uns brinquedos
terrosos, o corpo desfeito
de um fantoche antigo.)

Para além da beleza, versos exatos, Ana Santos trabalha com uma variação criativa de poemas, tanto de elementos quanto de forma. Sua memória, a princípio pessoal, é também memória crítica, cultural, coletiva. Ao contrário do que poderia facilmente acontecer com um livro cuja matéria prima é a lembrança (ser apenas solitário), Fabulário é solidário, e lança o olhar que da imagem interior vai ao outro. No poema Curtas, as fábulas atualizam, como rápidas cenas cinematográficas, a dor da maternidade confrontada com a morte: Maria canta/ e embala/ o corpo quente. Do seu menino. //  O corpo esfria: // Maria / canta mais alto.

Em Fabulário, encontramos seres e objetos comuns ao imaginário geral. Ana Santos os reorganiza de maneira a dar sentido para os fragmentos, afinal, não é possível acessar o passado completamente tal qual tenha sido. A memória, sendo seletiva, está sempre sob suspeita, e mesmo com aqueles que partilhamos as mesmas histórias, há divergências na narrativa. É que a experiência é única e intransferível e está subordinada ao tempo e às perspectivas de cada um. Ainda que o caráter individual da lembrança seja inegável, também é inegável que a memória se constrói em teia de relações sociais. Fabulário traz histórias reais que perambularam pelo mundo, fábulas que se parecem com o comum dos dias, mas que a poesia eleva ao status de símbolo e metáfora. Alguns poemas falarão da experiência pessoal da poeta, outros daquilo que ela viu, ouviu, pois a própria pessoa é também uma composição de memórias. Há um temor por perder aquilo que nos constitui primordialmente, o risco do apagamento que a todo tempo nos lembra a morte. Thomas Wolfe, em O menino perdido, escreveu uma frase que vem a calhar: “Tudo se perde a tal ponto que parece nunca ter acontecido... a ponto de ser algo com que sonhamos em algum lugar”.  Ana Santos sabe e confessa: “Receio perder a memória. Escrevo por precaução.”

HIBERNAÇÃO

A tia-avó antiquíssima
fez a brusca
revelação:

não era eu
o menino da foto,
tesouro único
da infância.

Era Artur,
o primo achado, uma noite,
calçando patins solares,
na fenda de um lago
congelado.
Os mesmos olhos
grandes e claros.

Não há provas
da criança que fui –
e bem posso
ter sido a outra.

Quem sabe ainda
estou dormindo
naquela floresta azul?

É verão em Varsóvia.
O lago líquido
Guarda meus olhos,
os olhos
do primo Artur.




ORAÇÃO

Meu Deus,
que exista algo
além do vácuo
adivinhado.
Afinal, tudo que amei
será cinza, será pó, será
nada?

Estou no exílio,
em minha tenda
de carne e ossos.
Corto o cabelo,
uso esta máscara
triste:
assim me conhecem.
Guardo as verdades
em relicário –
o que conto são lendas
assombrosas.

Vindo
de onde vim, percorri
obscuros caminhos.
Minha pátria
não tem nome,
meu mapa
é uma flecha em voo.
Eu temo a hora
e a forma
do retorno.

Para que nos matura
o trabalho do tempo?
Para que nos degrada?
Por que esta alegria
gasta em vão?

Que a vida
resista à vida,
polén disperso
na brisa.
Que haja sentido
em nossa
ilusão dividida.
Amém.  


TELEGRAMAS

I
FUGI DE TREM ARRANHA-CÉUS COCA E PASTEL FELIZ DEMAIS ADEUS.

BRAÇOS ABERTOS FEIJÃO NO FGO ROSÁRIO E VELA AMÉM.

II
CASA INUNDADA PLEURA INFLAMADA SÓ PÃO MOFADO QUE DEUS ME AJUDE.

VOU PARAR CHUVA VOU PLANTAR TRIGO LEVAR QUEM SABE EXTREMA-UNÇÃO.

III
MARIPOSA MORRE LANTERNA CHINESA SAUDADE QUERO MORRER TAMBÉM.
NA VITROLA TE RECUERDO AMANDA AINDA VIVO NÃO SOU MANUEL.

IV
LIÇÕES TERRÍVEIS SINTAXE ÁLGEBRA NOITE ANO NOVO ESTAREI AÍ.
SORTE NAS PROVAS CHAMPANHA FOGOS MANDINGAS MIL.

V
ESTOU EM HYDRA TOCANDO LIRA ENQUANTO ISSO VOCÊ NO INFERNO.
NÃO SE PREOCUPE CARNE QUEIMADA MAS AH QUE BÁLSAMO NO PEITO.

***
Fabulário
Ana Santos
Poesia
Confraria do Vento
2019

quarta-feira, 11 de março de 2020

A negra cor das palavras, de Alexandra Vieira de Almeida





Por Adriane Garcia



Tema tão antigo quanto atual no Brasil é a questão da mestiçagem. Assunto também espinhoso, já que pelo viés da mestiçagem pode-se chegar à falsa conclusão de que há ou já houve democracia racial no país. Não existe relação harmoniosa entre negros e brancos quando o encarceramento no país e o genocídio da juventude mostram números alarmantes de pessoas negras vitimadas. O racismo no país é absolutamente escancarado. A despeito de todo o processo de mistura das etnias, indígena, negra, asiática, branca, o Brasil introjetou os valores do europeu: branco, cristão, masculino, heterossexual como o modo de vida válido, pois é aquele que ocupa as posições de poder e elaboração das regras.

Assim, da mesma forma que a miscigenação é uma marca da sociedade brasileira, ela funciona muito mais para apagar as origens e a memória étnica de cada um do que para fortalecer a busca das raízes. É tantas vezes usada como argumento para negar o racismo, o que acaba por fortalecê-lo, já que o “branqueamento” da população quis se estabelecer historicamente, inclusive como política pública. Esse branqueamento não se dá somente pelas vias biológicas, mas por labirintos psicológicos em que todo um padrão de beleza e comportamento é ditado cotidianamente, há séculos, nos meios disponíveis de comunicação e repetidos nos gestos da sociedade. A mensagem é a de que somente o branco é bonito, competente, perfeito, superior. Essa mensagem é um mecanismo poderoso que precisa ser desmontado, pois trabalha para impedir a tomada de consciência do valor próprio de cada etnia e mantém o status quo excludente, impedindo que as minorias exijam e obtenham o que lhes é de direito.

A desigualdade social no Brasil está intimamente ligada à questão racial, refletindo o imperdoável processo de escravidão e a forma negligente com que o Estado proclamou a abolição, sem indenizar os escravizados e suas famílias e sem criar mecanismos de inclusão para aqueles que deveriam ocupar os postos de trabalho assalariados, mas cujas vagas foram reservadas para a imigração branca. O país de hoje colhe as consequências de seu passado escravocrata e admitir o racismo para poder lutar contra ele é tão urgente quanto encontrar na miscigenação o orgulho por ter uma ancestralidade não branca. Pensar a miscigenação é pensar também o colorismo, afinal o racismo no Brasil se estabelece e se estrutura em torno do visível, quanto mais melanina possui a pele de um ser humano, mais ele é excluído nas relações sociais e mais está fadado a ser vítima da necropolítica estabelecida no país.

A poesia anda incomodada com tudo. Do incômodo, as poetas e os poetas escrevem sobre os temas mais variados. Neste A negra cor das palavras, de Alexandra Vieira de Almeida, o primeiro poema, Sobre a beleza do negro, traz a procura da poeta desta miscigenação em si mesma, das raízes negras deste eu-lírico, dos traços físicos, da presença dos orixás. “Minha escrita é meu orixá”, aponta em outro poema, no desdobramento da leitura. Assim, sol e lua, dia e noite, a poeta olha pelo antagonismo e pela complementariedade das cores.

Metalinguisticamente, Alexandra Vieira de Almeida usa o preto como a tinta (força), “A negra cor das palavras” e o branco como a cor da página vazia; assim como o esmaecimento da cor está ligado à perda da memória. Também há o aproveitamento das muitas expressões em que a palavra negro/negra é utilizada ou do destaque às substâncias escuras como chocolate, tulipa negra, a bile negra (melancolia), o pássaro negro. A escuridão é uma condição para o laboratório de criação dos seres, assim como a penumbra acolhe os encontros.

Alexandra Vieira de Almeida conta com muitas imagens poéticas, como nos versos “Não digo o verbo de espinhos/ qual sangue que fere o tempo/ Digo a palavra bruta/ que tece os terçóis do sol”. Há nos versos uma profusão de cores e formas, frequentam-nos o sol, a lua, mandalas de rosas, vento, cidades submarinas, florestas, faróis, elefantes, labirintos, arco-íris, cavalos brancos, submarino, carvão, morcegos soturnos. A cor negra explorada para a subjetivação.

O livro traz a recorrência maior de três cores, preto, azul e vermelho. A violência contra o homem negro destaca a cor vermelha (de sangue) como sinal da morte, do racismo e da intolerância. Há também a recorrência da palavra açoite. Na forma, os poemas de Alexandra Vieira de Almeida podem trazer a clareza dos versos objetivos, assim como trabalhar com a exploração do simbólico, sentidos ocultos, a sugestão das coisas, a correspondência delas: “O fogo ardia por dentro/ Os seres paginavam um mistério/ Minha visão era um olho cego/ Como contornar o horizonte?

Em O Arco e a Lira, Octavio Paz escreve que “A revelação não descobre algo exterior, que estava aí, alheio; o ato de descobrir entranha a criação do que vai ser descoberto: nosso próprio ser. Nesse sentido, pode-se dizer, sem temor de incorrer em contradição, que o poeta cria o ser”. No caso de A negra cor das palavras, a poeta parte de uma reflexão sobre a mestiçagem para descobrir-se a si.



SOBRE A BELEZA DO NEGRO

A negritude em sua essência
não igual ao branco da página
mas à construção do sentido
ao verbo em toda sua inteireza

Nas cavernas da memória/esquecimento
o negro se traduz nas pinturas mais inusitadas

Os complementos como num jogo de xadrez
num duelar mais original, sem mortes súbitas
mas as peles que se revestem
na conjuntura do mundo

As faces se intercalam
murmurando um mosaico de vozes

O branco e o negro
são a mistura
que convive no meu peito aceso
pela chama da miscigenação
pela vida que se abisma em mar de desejos

As peças são moldadas pela visão
de um paraíso em sol do sim
de um deserto/cidade
atropelados pela memória cinzenta
que obscurece as lãs das nuvens mais velhas

Quero o retrato em preto e branco
posto ao meu lado
para me lembrar de minha negritude
que se enrola nos meus cachos negros
e no meu nariz de batata

Vivo o agora
que é a tintura claro-escura
do final da tarde, unindo os dois versos
as duas cores paridas pelo sol e pela lua
pelo dia e pela noite

O meu verso tem que ser força negra
que não arraste o branco da página
para o caos
mas para uma ordem
dos amantes
do fraterno jogo que irrompe do vazio
fazendo-se lenda da eterna palavra.



O AVESSO DA HISTÓRIA

No branco da manhã lépida
Escondo uma história da cor da noite
Em que o avesso dos dias
Costura a urdidura de um sol negro.




***
A negra cor das palavras
Alexandra Vieira de Almeida
Poesia
Penalux
2020