sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A infernização do paraíso (Mina de Morro Velho: as vísceras douradas da maldição), de Rodrigo Leste

 



Por Adriane Garcia



Em A infernização do paraíso, de Rodrigo Leste – livro de poemas que também pode ser lido como um poema longo – o leitor toma contato com uma crítica contundente à mineração, mais especificamente em Minas Gerais. Usando um humor sutil, já no início o poeta marca sua posição como artista, fazendo menção ao famoso poema que Drummond dedicou a Manuel Bandeira, Política literária. No poema de Leste, o verso “Tirar ouro do nariz” se amplia utilizando-se não só do sentido que tem no poema originário, mas no sentido que ganha no decorrer de A infernização do paraíso



Estou no centro da praça,

risco o fósforo e não devo nada a ninguém.

Indivisível como o pirulito

(redundante obelisco)

gozo a vertigem,

a estranha insegurança da liberdade.

Não pertenço a nenhuma confraria,

Clube, milícia ou facção.

Sou desse lugar, e como artista ou poeta

não vou ser reconhecido,

homenageado, incensado,

içado à condição de

“Poeta Municipal”.

“Federal”,

nem pensar:

“Tirar ouro do nariz”

não é a minha vocação.



A extinta Mina de Morro Velho, localizada em Nova Lima, próxima a Belo Horizonte, foi propriedade da companhia inglesa Saint John Del Rey Minning Company a partir de 1834, e chegou a ser considerado o investimento mais lucrativo dos ingleses na América Latina, à época. De 1850 a 1867 manteve a produção de uma tonelada de ouro por ano. Rodrigo Leste conta um percurso de ruínas, não só da exaustão dos recursos naturais, mas da exaustão do trabalhador das minas, em péssimas condições de trabalho, mesmo antes da exploração inglesa.


Estou no ano de 1814.

Somos escravos.

Trabalhamos na lavra pro

homem da batina preta.

Depois de colher todo ouro da superfície,

metemos pólvora na montanha,

buscamos os veios principais,

os grandes filões.

Neste ano,

retiramos das entranhas da terra

16 kilos do mais puro ouro

pro delírio da negra batina.


O livro ultrapassa a extração do ouro e avança para a questão da extração mineral mais ampla, do ferro, da água. Em diálogos com os poetas Carlos Drummond de Andrade (que viu sua Itabira transformada pela mineração) e Dantas Mota (que tem uma poesia profundamente enraizada em Minas Gerais), Rodrigo Leste soma sua voz aos que cantaram o lamento da devastação ambiental e usaram a literatura para retratar a miséria ambiental e humana que a cupidez do lucro deixa para trás após a exploração de uma mina.


A ferida aberta

revelou

meus pulmões arruinados

aos frios

e burocráticos olhos.

Foi comprovada a absurda quantidade

de chumbo que corre em minhas veias.

Finalmente

expediram o laudo:


A devastação da minha saúde

valeu

a indenização

de trinta mil reais.


A Mina de Morro Velho passou por um incêndio em 1867 e um soterramento que matou vários mineiros em 1882. A Infernização do paraíso foi publicado em 2010. O Rio Doce – um paraíso – ainda não havia sido invadido pela lama criminosa da Vale. No sistema em que vivemos, somente o lucro ganha a mais atenta e primorosa manutenção. As barragens em Brumadinho e Mariana aguardavam, silenciosamente, o momento de outros crimes.


Um livro precioso, que trata, com arte, de um assunto urgente.


*** 

A infernização do paraíso

Rodrigo Leste

Poesia

Ed. Mano a Mano

2010

(edição realizada com os benefícios da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte)