Por
Adriane Garcia
Já nas
duas epígrafes escolhidas, uma de Josoaldo Lima Rêgo e outra de Gaston
Bachelard, o poeta Carlos Orfeu nos avisa que em seu Invisíveis cotidianos
estaremos diante do avesso das coisas. Nesse livro, os poemas centram-se
preferencialmente nas imagens de objetos, pequenos seres, jogando luz (por
sinal, a luz é uma das coisas muito observadas) sobre aquilo que nos passa
despercebido, entre normal e banal. É a partir de duas figuras de linguagem em
especial, amplamente usadas na construção dos seus poemas, as analogias e as metáforas,
que o poeta ilumina o que há do outro lado, como quem nos auxilia a entrar na
realidade paralela das existências do aparentemente inanimado ou insignificante.
Se a
poesia é o uso da linguagem que retira do banal a própria linguagem, tanto no
que ela tem de forma quanto no tratamento dos temas, Carlos Orfeu
consegue realizar a poesia nos dois eixos, dando-nos poemas cujos versos
filtram a exatidão possível das palavras, compondo verdadeiras cenas e trazendo
para a leitura o estranhamento e a desestabilização, diria mais, a
desnaturalização do olhar. O poeta nos lembra de que tanto as palavras quanto
os objetos estão constantemente à nossa volta, sem que lhes prestemos atenção,
afinal, sem um olhar ou uma escuta desautomatizados, não há nada nelas (nas
palavras) ou neles (nos objetos) se não as suas funções costumeiras, suas
utilidades. É a poesia que abre, de repente, um campo mágico, “o olho cata
do chão/o alfabeto”: o objeto fala, a luz é um animal, o inseto é o nosso
eu-mítico, o mar “sofre o abuso das gaivotas/bicando seu dorso selvagem”
e é a palavra que se empresta às coisas para nos ensinar sobre nós.
O filósofo
Roger-Pol Droit, em seu livro “Últimas novidades das coisas”,
esforçou-se por ouvir os objetos, a fim de responder a uma pergunta cotidiana
para a qual, um dia, simplesmente não teve resposta: “Como vão as coisas?”
Ele não sabia. Desconcertado pela pergunta, partiu para pensar sobre os objetos
e sua invisibilidade adquirida por um olhar automatizado. Algumas pessoas –
mais notadamente entre filósofos e poetas – estranham os objetos. Na
dramaturgia, os objetos em cena podem adquirir muitos significados, como registrou-se
no teatro de Tadeusz Kantor, que os retirou de um papel secundário para o
primeiro plano das cenas, fazendo deles personagens; nas artes plásticas, o
objeto anônimo, como em Duchamp, escolhido pelo artista adquire outro
status. O deslocamento do objeto da sua invisibilidade de coisa útil para o
lugar de coisa sensível é o que vem compor Invisíveis cotidianos, cujo
título em si encaminha o olhar para um desvendamento.
No poema Sépia,
a coisa não é só a moldura do retrato, mas sua cor. Na imobilidade dos rostos,
no “inapreensível grito/das coisas insubstituíveis” o poema fala da impossibilidade
de comunicação. As coisas são
substituíveis, mas não aquilo que evocam, denunciando que o que é fundante no
sujeito é a falta. O rosto apodrece tanto na fotografia quanto na vida –
transitoriedade, efemeridade, deterioração da carne. A sépia se transfere da
fotografia para o olhar o mundo, o ao redor. Os lábios que “sussurram as
cinzas/no inverno das perdas” é o da pessoa-poética. Em Formiga morta,
a observação se dá minuciosamente, uma característica que aparece em quase
todos os poemas. A faca está descansando, o pão dormindo, o sono é de pedra, a xícara
solitária, o lábio toca o objeto e o objeto guarda a lembrança, o silêncio é o
que guarda a formiga morta. É interessante como o único elemento perturbador do
poema parece ser não a formiga morta, que está no mesmo estágio pacífico que o
dos objetos inanimados, mas a lembrança de restos de lábios açucarados pelo sol
(elemento de vida, de euforia, de memória) que toca a xícara.
Os
insetos, esses pequenos seres, chamam a atenção do poeta, estão no mesmo mundo
das coisas, compondo fábulas no exercício de transferência da condição humana
para o não-humano. Assim, em Besouro, a observação do inseto o aproxima
do mito de Sísifo e o homem se vê na mesma condição do inseto. A vida é luta na
menor ou maior criatura. A pedra (de Sísifo) é levar-se a si mesmo. O que muda
é apenas o tamanho, se somos pequenos ou grandes carregadores, não havendo
dúvidas sobre o cansaço da repetição a que nos obriga o exercício de viver.
Subir em direção ao declínio – eis a oposição que a poesia como linguagem é
capaz de revelar. Para o Sísifo homem, é preciso mais que a repetição, é
preciso encantamento, é preciso que algo do dia se apresente novo. Se ainda
houver encantamento, poderá haver vontade de viver. O besouro, se traz o
crepúsculo no dorso-espelho (morte), traz também o encantamento no seu “reflexo/verde-musgo”
(vida) de forma também especular, e Narciso bem pode gostar desse espelho.
Carlos
Orfeu continuará a nos encantar com, por exemplo, Salamandra,
poema deliciosamente imagético e bem executado; não uma fotografia, mas um pequeno
filme/poema, feito de três estrofes que se movem como/com a luz, fazendo do sol
a salamandra que também é faca cortante. O encantamento seguirá nos outros
poemas, no gesto de cortar cebolas, na comparação que inclui aquele que as
corta e com o que é cortado, outros versos dirão não apenas dos objetos/seres
encontrados na casa, no quintal, como também da própria casa, quase sempre análoga
a uma mulher, um útero, um ventre, uma vulva; a mãe, um lugar feminino de
origem, em que o morador pode ser – dentro – filho e/ou amante: “somos no
íntimo/materno da casa”. A casa é também imagem ambígua, violenta, “a
casa é uma rosa de carne/desabrocha na extensão do sangue”. O morador é
filho gerado e gerando-se e a relação com a casa também se sugere na fantasia incestuosa
da infância: “entrar na casa como um corpo/estranho entra em outro nome”.
Mesas,
cadeiras, livro, oxidação, frutos, bichos insignificantes, carrinho de mão,
guarda-chuva, objetos aleatórios que habitam conosco, uma coisa pode evocar
outra em um rico fio de imaginação: “revoltam-se os objetos/ contra a
insânia do homem/ copo/ prato/ talheres/ vassoura/ máquina de lavar/ espelho”.
Estar em contato verdadeiro e não distraído com as coisas é alargar os
sentidos. As coisas são conhecidas pelo tato, pela visão, olfato, paladar e
audição. Há ainda um sexto sentido, talvez aquele do qual melhor se aproveita a
poesia, a ponto de se desconfiar que existem mais coisas entre o céu e a terra
do que nos informam as aparências, a ponto de ouvir a respiração de uma casa.
Octavio
Paz,
em Os filhos do barro, com sua crença grandiosa na poesia, ensinou que “o
poema não é apenas uma realidade verbal: é também um ato. O poeta diz e, ao
dizer, faz. Esse fazer é sobretudo um fazer-se a si mesmo: a poesia não é só
autoconhecimento, mas também autocriação. O leitor, por sua vez, repete a
experiência da autocriação do poeta e assim a poesia encarna-se na história. No
fundo desta ideia vive ainda a antiga crença no poder das palavras: a poesia
pensada e vivida como uma operação mágica, destinada a transmutar a realidade”.
Há tanto a
se aprender pela poesia, esse gênero capaz de desfazer o imediatismo do nosso
modo de ver, o superficialismo do senso comum que só se presta à repetição, o
costume acrítico de olhar e não ver. Talvez, como aprovaria Tadeusz Kantor no
seu teatro feito de desconstrução das coisas, pudesse mesmo existir uma
educação pelo objeto que, no ápice, seria uma educação pela poesia, e isso é
uma das coisas que podemos pensar ao terminar a leitura de Invisíveis cotidianos.
besouro
o besouro
pequeno
sísifo
leva a si
mesmo
ao cume
o
declínio encarnado
em seu
ciclo
crepúsculo
no escudo
de seu
dorso – espelho
reflexo
verde-musgo
salamandra
o sol
salamandra
selvagem
fareja o
pão
gênese de
gestos
cortejo
de luz
veloz
manhã
faca
partindo
sombras
óxido
oxidada
água
ser-
penteia
pelo
diafragma
dos canos
viagem
labiríntica
calcária
voz da
caixa
d’água
viagem
pela res-
piração
da casa
até
deitar-se
em outra
língua
dente:
sabor cloro
barro
abrindo-se
na
insônia da garganta
olho
o olho
cata do chão
o
alfabeto
arqueologia
de ver
e escutar
o
silêncio das coisas
inaugura
outro
universo
e morada
significância
rútila
na língua
cada
coisa renomeada
respira
no poema
com patas
salta na
fala
***
Invisíveis
cotidianos
Carlos
Orfeu
Poesia
Ed. Patuá
2020