Por
Adriane Garcia
Em
1932, no Congresso Internacional de
Psicanálise em Wiesbaden, na Alemanha, por ocasião do septuagésimo quinto
aniversário de Freud, Sándor Ferenczi levou a púlpito um
assunto espinhoso, do qual a sociedade jamais gostara de falar a respeito,
sequer de mencionar: o abuso sexual infantil cometido por familiares adultos. O
trauma (fator externo) como causa de transtornos mentais, que fora deixado em segundo
plano por Freud, ao abandonar a sua “teoria da sedução” (a Psicanálise sofria
severos ataques que se agravariam ao afirmar a existência de uma sexualidade
infantil), retornava assim com todas as letras em Ferenczi, que as publicaria no ensaio “Confusão de línguas entre o adulto e a criança”: “Pude, inicialmente, confirmar a hipótese já
anunciada de nunca se insistir o bastante na importância do traumatismo sexual
como fator patógeno. Até crianças de famílias honoráveis e de tradição puritana
são, mais frequentemente do que se ousava pensar, vítimas de violências e
violações. São ou os próprios pais que buscam um substituto para suas
insatisfações, dessa forma patológica, ou pessoas de confiança, membros da
mesma família (tios, tias, avós), preceptores ou o pessoal doméstico que abusam
da ignorância e da inocência das crianças.”
Com
isso, Ferenczi estava dizendo que a
doença de suas (e seus) pacientes não estava relacionada apenas a fantasias
edipianas, mas a fatos, com toda a sua carga de violência física e/ou psíquica:
“A objeção que se faz, vendo-se nisto
fantasmas da própria criança, isto é, mentiras histéricas, perde infelizmente
sua força, em consequência do considerável número de pacientes em análise, que
confessa ações desse tipo em crianças.”
O
livro de Morgana Kretzmann, Ao pó, traz-nos não só a trajetória de
uma mulher abusada sexualmente na infância, como uma construção primorosa de
personagem. A narradora e protagonista é a jovem atriz Sofia, que foi morar no
Rio de Janeiro para deixar para trás tudo o que representava sua cidade natal,
Tenente Portela, no interior do Rio Grande do Sul. O ponto de partida para entender a trama é a
infância da narradora e de sua irmã, Aline. Na primeira cena, uma festa de
aniversário, elas estão com quinze e onze anos. Sabemos da gravidade do que
acontece, pois é preciso que Sofia dê um “banho
do esquecimento” em Aline. Mas ao contrário do que pensa o senso comum, a
criança não esquece nada.
Com
uma narrativa não-linear, a história vai nos dando, aos poucos, um quadro
panorâmico da família de Sofia. É a família tradicional exposta na sua nudez, a
família que, não raro, usa suas crianças para fins sexuais, em uma relação de
poder, já que a criança é o elo mais fraco e portanto mais fácil de ser
subjugado e confundido. A trama nos coloca em contato não só com o abusador
mais evidente, mas com outros abusadores, homens e mulheres, também com os
silêncios e omissões acerca daquilo que “é melhor não ver”. Mas nada disso acontece sem gravíssimos danos.
Adulta,
Sofia foge, mas não pode fugir de si mesma. Morgana
Kretzmann nos mostra, habilmente, os sinais de permanência do trauma. Sofia
não só é incapaz de proteger a sua própria vontade - sequer reconhecê-la - como
se aproxima de relacionamentos cuja potência em feri-la ou levá-la à repetição
do trauma é enorme. A autora é muito sutil em dar esses sinais quando, por
exemplo, ao narrar a cena em que Sofia
conhece o dramaturgo famoso com quem terá uma relação conturbada, a
personagem olha, mas não vê: “Ele acendeu e me devolveu o cigarro quebrado”
ou “... um homem que me olhava como se
entrasse dentro dos meus olhos e fosse até o centro da minha alma”. Ao se
dizer fugindo de tudo o que é invasivo, é justamente ao encontro do invasivo
que a personagem caminha: “Já estávamos
saindo juntos há tempo suficiente para eu entender que Carlos não tinha
intenção em assumir uma relação de verdade comigo” Ainda assim, diante
dessa conclusão, ela insiste: “Não me
contive, acabei ligando”.
Conscientemente,
não há o que Sofia não saiba a respeito dos homens com quem se relaciona, que o
que podem lhe oferecer é uma “caixa de
sonhos”, com pesadelos dentro. O livro, inclusive, é permeado de momentos
oníricos que se entrelaçam com a linguagem realista tão condizente com o tema.
A narradora é uma mulher despedaçada, com autoestima baixa, apresentando
descrédito sobre si, culpabilização e um mau encaminhamento de suas pulsões
sádico-masoquistas: “Aperto a corrente um
pouco. Ela geme mais.” Há perdão para quem pensa em se salvar, deixando a irmã
sob o poder de um abusador? Porém, mais profundo ainda é pensar que para a
criança, aquele que abusa pode ser também aquele que a ama e, deixando de
abusar dela e passando a abusar de outra, joga também as vítimas em um conflito
fraterno.
Em
pleno adoecimento, bebendo para anestesiar o que não cessa de falar (o
silêncio) e deixando o protagonismo da própria vida ser vivido por outro - no
caso homens simulacros do abusador - Sofia entra numa espiral de depressão: “Parecia que eu estava em segundo plano, mas
não era verdade, já que não havia nenhum plano para mim . Não via nenhum
interesse em mim. Não havia nada de interessante numa pessoa como eu. Eu, uma
personagem fraca, sem quereres, sem ambição, sem raiva, sem paixão, sem
coragem.” É um eterno retorno do trauma que vai se agravando em Ao pó, até o ponto em que a personagem
resolve romper sua relação de culpa e vergonha com o passado e encarar seus
algozes. É justamente no momento perigoso em que Sofia tem o abusador já
introjetado em si e, portanto, destruindo-se para matar o abusador, que um
grande amor revela-se como clareira. Um amor chamado amizade, amor
desinteressado, que não requer a protagonista sexualmente e será o seu apoio.
Ao pó é um livro
importante, que nos propicia estar “colados” ao drama de sua protagonista e -
por extensão - ao drama das crianças abusadas. Voltando a Ferenczi, ele nos fala que diante do abuso sexual a primeira coisa
que a criança faria seria a recusa, um “não
quero, isso me machuca”. Todavia, essa reação é inibida por um medo
intenso. A força de um adulto é esmagadora para uma criança, ela ainda não tem
meios para reagir de igual para igual. Assim, se submetem à força do agressor.
“Mas este medo, quando atinge seu ponto
culminante, obriga-as automaticamente a se submeter à vontade do agressor, a
adivinhar o menor dos seus desejos, a obedecer esquecendo-se completamente de
si, e a se identificar completamente com o agressor (...) Ela ao mesmo tempo é
inocente e culpada, e sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos
está quebrada”.
Morgana Kretzmann
conseguiu traduzir essa complexidade em um romance cuja linguagem é fluida,
arte democrática (no sentido de que ela não escreve apenas para escritores),
direta e capaz de emocionar. De um tema tão necessário ao debate público não se
poderia desejar outra coisa. Leiam esse livro.
***
Ao
pó
Morgana
Kretzmann
Romance
Patuá
2020