segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

QUERIDO BABACA, DE VIRGINIE DESPENTES

 





Por Adriane Garcia



QUERIDO BABACA, DE VIRGINIE DESPENTES


Por Adriane Garcia


Querido babaca, de Virginie Despentes, é um romance de estrutura epistolar adaptado às condições tecnológicas de troca de mensagens no mundo contemporâneo. Nele, ao invés da troca de cartas, há uma troca de mensagens em redes sociais e e-mails, além da leitura de publicações em blog. Tudo começa quando o escritor de relativa fama Oscar Jayack faz, no Instagram, uma publicação ofensiva à atriz de cinema Rebecca Latté, diva de meia-idade e ícone de grupos feministas. A publicação de Oscar introduz alguns dos principais assuntos que serão desenvolvidos no livro: cinema e etarismo, feminismo, machismo, misoginia, padrão de beleza, redes sociais e patriarcado. Com a resposta de Rebecca ao post de Oscar, inicia-se uma comunicação extensa entre os dois, um verdadeiro diálogo, acrescido das publicações da blogueira Zoé Katana, ex-assessora de Oscar em uma editora. Quando jovem, Zoé teria sido assediada sexualmente por ele e, por isso, denuncia-o no movimento #MeToo.

A comunicação violenta que ocorre entre Rebecca e Oscar vai se tornando constante, adquirindo outros tons e a leitura permite ver as transformações que esse diálogo promove em ambos. Virginie Despentes consegue criar uma história em que personagens antagônicos mostram-se em sua crueza, complexos, sendo que deles concordamos e discordamos, vemos excessos e falhas, sentimos empatia e compreensão, ainda que pensem de modo diferente de nós. Ao mesmo tempo, Virginie Despentes escreve sem qualquer condescendência. Com muita coragem, expõe as mazelas de um masculinismo frágil e decadente, assim como debate falhas do feminismo, ou melhor, dos feminismos. Os personagens, aprofundados cada vez mais, mostram suas vulnerabilidades, seu pensamento, suas incoerências, sua solidão, fazendo-nos lembrar, em um mundo de redes sociais, que a vida real ainda é de carne, osso, angústia e tentativas de acertar, de obter amor. Em torno da fragilidade humana, o contexto da pandemia favorece ainda mais a reflexão sobre os rumos da humanidade.

Querido babaca é um livro excelente, com um ritmo que favorece a leitura, entre réplicas e tréplicas. A autora consegue expor temas, argumentos, tratar de assuntos polêmicos sem cair no didatismo ou na palestra do politicamente correto. Um ótimo exemplo disso é a forma como é discutida entre Rebecca e Oscar a questão do uso de drogas. Uma obra ousada em tempos de vigilância cerrada sobre o que a autoria pode ou não escrever, quiçá pensar.


“Oscar

Crônica de um desastre

Cruzei com a Rebecca Latté em Paris. Fiquei lembrando as personagens extraordinárias que ela interpretou, essa mulher que podia ser perigosa, mas também venenosa, vulnerável, comovente ou heroica — quantas vezes me apaixonei por ela, quantas fotos tenho com ela, em quantas casas estivemos juntos, em quantas camas —, personagens às quais me afeiçoei e que me fizeram sonhar. Metáfora trágica de uma época que foi pro saco — essa mulher sublime que em seu auge apresentou a tantos adolescentes o fascínio da sedução feminina acabou virando um sapo. Não apenas velha. Mas gorda, descuidada, a pele nojenta, uma personagem imunda e estridente. Fim de carreira. Ouvi falar que ela agora é a musa das jovens feministas. A Internacional das piolhentas ataca novamente. Nível de surpresa: zero. O máximo que faço é ficar em posição fetal no sofá ouvindo “Hypnotize”, do Notorious B.I.G, em loop.



Rebecca

Querido babaca, 

Eu li o que você publicou no seu Insta. Você é tipo um pombo que cagou no meu ombro enquanto eu passava. Sujo e muito desagradável. Aham, eu não passo de uma imbecil por quem ninguém mais se interessa e que se esgoela como um chihuahua porque a única coisa que quer é chamar a atenção. Glória às redes sociais: você teve seus quinze minutos de fama. Tanto é que estou te escrevendo. Tenho certeza de que você tem filho. Um cara do seu tipo se reproduz, acha que a linhagem não pode ser interrompida. Já percebi que, quanto mais idiota e inútil a pessoa é, mais ela se sente obrigada a continuar a linhagem. Então eu espero que seus filhos morram atropelados por um caminhão e que você assista à agonia deles sem poder fazer nada, e que os olhos deles saiam das órbitas e que seus gritos de dor te persigam todas as noites. Isso é o que eu te desejo de bom. E, por favor, deixe o Notorious B.I.G. fora dessa, palhaço.”


*** 


Querido babaca

Virginie Despentes

Trad. Marcela Vieira

Romance

Ed. Fósforo





quinta-feira, 22 de maio de 2025

TANATOGRAFIA DA MÃE, de Isadora Fóes Krieger

 






Por Adriane Garcia




O poeta indaga a respeito de escrever: “Trouxeste a chave?”. Essa pergunta também pode ficar desperta sobre o ato de ler. Enquanto lia Tanatografia da mãe, de Isadora Fóes Krieger, vinha-me a pergunta de Drummond e algumas reflexões: a chave é uma elaboração também de quem lê, trazendo seus próprios lutos, sua própria filiação; no caso do livro de Isadora Fóes Krieger, a própria mãe da leitora, do leitor. A poeta nos chama para algo muito íntimo, sua elaboração sobre a Grande Perda. Esse algo está atrás de um Véu que cobre uma porta — um portal? Uma vez eu própria escrevi que quando uma mãe morre, fecha-se um portal. Foi Isadora quem me disse que também um portal se abre. “Trouxeste a chave?”. 

Se a melancolia, mostrou-nos Freud, está repleta de pathos; o luto sendo elaborado está repleto de saúde, é um caminhar nas trevas para alçar a boca do túnel, a luz que aguarda os que tiveram coragem de atravessar os lugares dantescos da morte, seguindo para frente. Em Tanatografia da mãe, esse seguir para frente mostra como, paradoxalmente, elaborar o luto é ir para trás. A morte de nossos entes queridos nos chama para o passado, para as casas nas quais vivemos, para os nossos corpos outros que não existem mais, corpos da juventude, da infância, corpos intra-uterinos, corpos que se misturam com nossos espaços de memória, em tempos simultâneos, corpos-casa.

Tanatografia da mãe é a carta em versos que a poeta escreve para si mesma, sendo ela própria a remetente-destinatária, em um jogo de substantivos compostos, pois nossa identidade é um mosaico de tantas, tantos e tudo que já passou por nós; uma identidade alienada, em essência, pois traz do outro e se torna no outro, um constante devir a partir dos encontros. A carta da poeta é a nossa carta, carta-diário, daqueles com cadeado e uma pergunta: trouxeste a chave? Um diário do luto, mas antes, um diário do encontro. A carta dirigida a si mesma, mostra-nos Isadora Fóes Krieger, ou melhor, lembra-nos, é carta extraviada, como quase toda comunicação e sua falibilidade. Extravio porque o outro que a recebe é um destinatário estranho a qualquer plano inicial, destinatário imprevisível e desconhecido, uma leitora, um leitor. Extravio porque ao receber sua própria carta, ela, a remetente, também já é outra. A morte causa grandes transformações, uma coisa é a filha-com-a-mãe-viva, outra, a filha-com-a-mãe-morta.

Muitos alumbramentos e sustos se dão durante a leitura de Tanatografia da mãe, por exemplo, de repente, se dar com a verdade de que a mãe é um território, um continente, de que a criança-com-a-mãe (aqui, antes de separar uma identidade) precisa “se desprender da mãe para pensar”, encarar que a  mãe-em-mim está instalada como superego e figura de autoridade. É assim que Deus é equiparado à Mãe, quando podíamos achar menos herege o contrário. A mãe, assim como Deus, surge do lugar do incompreensível: a Mulher que Não Sei e, assim como em tantas religiões, tudo retorna a Deus, “do pó vieste e ao pó retornarás”, tudo retorna à Mãe.

Com o uso de maiúsculas, um recurso linguístico de personificação, a poeta cria entidades como Corpo Insustentável, Canto Inaudível, Remetente, Destinatário, Nostalgia da Clareira, sempre demonstrando que há o inapreensível, pois o extravio é também isso, a impossibilidade da Poesia: “não pretendemos fundar a filosofia do encontro/ do abismo com o pássaro,/ ao contrário, o estudo da carta extraviada tem/ como matéria sublime o deslocamento” — deslocamento que é também uma das formas de o inconsciente se manifestar, um de seus meios de expressão disfarçada.

Tanatografia da Mãe flui para o encontro da Poesia com a Psicanálise. Um momento interessantíssimo é quando o poema se constrói na lógica dos atos falhos: “a mãe permanece imóvel/ na rua um grupo de jovens volta de uma festa/ parecem falar sobre amor;/ “despeço-me de ti como quem solta a própria mão na beira do precipício.”// leio: com quem solta a própria mãe.” O que Isadora Fóes Krieger consegue neste livro é para além de seu próprio mergulho no líquido amniótico primordial (Mãe, Deus, Vida-Morte, Mistério), a cumplicidade da leitora, do leitor, nesse mergulho. Uma leitura uterina, sobre um lugar em que todos estivemos, argutamente nos lembrando de que “Às vezes uma mãe é apenas uma mãe.”


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Tanatografia da mãe

Isadora Foés Krieger

Poesia

Editora da casa

2022