por Adriane Garcia
De
repente reservei-me o momento desta partida. Vinha de um livro denso de
entrevistas, saudosa já de ler poemas, e há tempos queria me
dedicar a uma segunda leitura de Xadrez, da poeta mineira Ana Elisa
Ribeiro. Foi a poeta que avançou primeiro, com esta epígrafe de
Michel de Certeau: “A memória dos lances antigos é essencial a
toda partida de xadrez.”
A
delícia da noite foi poder acompanhar a trajetória deste jogo de
tabuleiro, que já se desenha na própria edição, na diagramação
do livro, na brincadeira das páginas pretas que abrem seções, nos
subtítulos nas casas brancas. E então, de começo, senti que era
preciso mesmo me posicionar para o jogo; primeiro, a posição de
espectadora; depois, a posição de quem rememorava jogadas próprias:
eu, jogadora. Este o momento em que o leitor acompanhará os poemas
que compõem Xadrez com a respiração atenta de quem quer chegar ao
final do torneio para saber, afinal, quem é que ganha.
A
terrível sensação
do
absurdo
de
viver
a mesma coisa
a mesma coisa
em
outra
posição
no
tempo.
Fico
pensando:
Deus
é repetitivo.
Deus
curte disco arranhado.
Deus
volta a fita.
Deus
faz becape.
Deus
é campeão de ioiô.
Deus
produz gente burra.
Deus
joga dados.
Deus
é diretor de cinema.
Deus
ensaia balé.
Deus
é maestro severo.
Deus
é mesmo só pai.
O
livro de Ana Elisa prende. Prende porque emociona, porque surpreende
e porque este é o jogo no qual, fim das contas, todos queremos
ganhar: o amor.
Um
livro sobre a relação amorosa e que não resvala em mera
confidência, que não cai nas palavras melífluas – apesar da
autora brincar exatamente com esta palavra em dois poemas – que não
repete fórmulas gastas.
Os
meus cinco
–
ou seis –
sentidos
estão
parados
na
superfície dos
seus
lábios
deixa
eu tirar
seus
óculos
e
olhar
seu
dia
inteiro
minha
vida
está
–
partida –
ao
meio:
um
breu
sem
graça
e
depois
que
você
veio.
No
xadrez, o jogo, valem a inteligência, a astúcia, a paciência, a
prudência. Tudo combinado em estratégia. No Xadrez de Ana Elisa
Ribeiro, a estratégia pode ser tantas vezes para maltratar o amor e,
após tanta prática em resultados fracassados, também é preciso
sorte. Mas engana-se quem pensa que as partidas deste Xadrez são
jogadas num ambiente cinza, chuvoso e escuro. Apesar dos momentos em
que perder é tão desesperador, há algo desta poesia que coloca a
enxadrista sob o Sol. Penso que seja a força e a forma. Ana Elisa é
uma poeta de presença forte, cuja força de personalidade se reflete
nos seus poemas, sabe rir das partidas que perde, por isso, muitas
vezes seu humor ácido, sua ironia fina. Quanto à forma, sua voz
traz sempre os poemas limpos, de linguagem direta, habitados por
palavras de nosso universo contemporâneo, perfeitamente ritmados e,
especificamente neste livro, alguns com algo até ceciliano na
musicalidade, utilizando poucas rimas vez ou outra, onde o poema só
se enriquece. Ana Elisa sabe exatamente onde e quando colocar o
elemento lírico e o antilírico. Em Xadrez seus versos “livres”
estão habilmente comandados.
Luxo
Veja
que luxo
namorar
uma moça
cuja
casa tem uma roseira na entrada.
Só
por isso
não
podes mais abandoná-la.
Onde
mais vais ver algo assim?
Uma
roseira verdadeira!
Cabe
perguntar à moça
se
é ela mesma quem cuida,
rega
e drena.
Se
for, não podes largá-la,
Se
vês a roseira plena.
Amor
belo e desmedido, intimidade de casal, amor filial, amor paterno,
esperas, masturbação, descrença nas partidas, derrotas, erotismo
de uma elegância deliciosa, abandono, infidelidade, ciúme, erro,
tristeza, esperança, angústia, desejo, memória, descontrole: o
rico tabuleiro deste Xadrez.
Condição
humana, eu e o outro, você e o outro. Após tantos movimentos e até
mesmo a conquista do amor, resta ainda o xeque-mate, mas este é
sempre dado pela morte. E é num metalinguístico o único momento do
jogo em que a poeta pede clemência:
Extrema
pedi
a Deus
uma
meia dúzia
de
palavras
com
que
brincar
antes
de
terminar
sem
vida
e
sem
o
que
dizer
Um livro muito especial.
merecidas palavras de uma ótima poeta para outra igualmente ótima!
ResponderExcluirLíria, querida, obrigada. E eu AMO o nome desse seu blog espiatório. risos
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