terça-feira, 18 de agosto de 2015

Xadrez, de Ana Elisa Ribeiro: sorte no jogo, sorte no amor.



por Adriane Garcia


    De repente reservei-me o momento desta partida. Vinha de um livro denso de entrevistas, saudosa já de ler poemas, e há tempos queria me dedicar a uma segunda leitura de Xadrez, da poeta mineira Ana Elisa Ribeiro. Foi a poeta que avançou primeiro, com esta epígrafe de Michel de Certeau: “A memória dos lances antigos é essencial a toda partida de xadrez.”
     A delícia da noite foi poder acompanhar a trajetória deste jogo de tabuleiro, que já se desenha na própria edição, na diagramação do livro, na brincadeira das páginas pretas que abrem seções, nos subtítulos nas casas brancas. E então, de começo, senti que era preciso mesmo me posicionar para o jogo; primeiro, a posição de espectadora; depois, a posição de quem rememorava jogadas próprias: eu, jogadora. Este o momento em que o leitor acompanhará os poemas que compõem Xadrez com a respiração atenta de quem quer chegar ao final do torneio para saber, afinal, quem é que ganha.

A terrível sensação

do absurdo
de viver
a mesma coisa
em outra
posição
no tempo.

Fico pensando:
Deus é repetitivo.
Deus curte disco arranhado.
Deus volta a fita.
Deus faz becape.
Deus é campeão de ioiô.
Deus produz gente burra.
Deus joga dados.
Deus é diretor de cinema.
Deus ensaia balé.
Deus é maestro severo.
Deus é mesmo só pai.

    O livro de Ana Elisa prende. Prende porque emociona, porque surpreende e porque este é o jogo no qual, fim das contas, todos queremos ganhar: o amor.
    Um livro sobre a relação amorosa e que não resvala em mera confidência, que não cai nas palavras melífluas – apesar da autora brincar exatamente com esta palavra em dois poemas – que não repete fórmulas gastas.

Os meus cinco

ou seis –
sentidos
estão parados
na superfície dos
seus lábios

deixa eu tirar
seus óculos
e olhar
seu dia
inteiro

minha vida
está
partida –
ao meio:

um breu
sem graça

e depois
que você
veio.

    No xadrez, o jogo, valem a inteligência, a astúcia, a paciência, a prudência. Tudo combinado em estratégia. No Xadrez de Ana Elisa Ribeiro, a estratégia pode ser tantas vezes para maltratar o amor e, após tanta prática em resultados fracassados, também é preciso sorte. Mas engana-se quem pensa que as partidas deste Xadrez são jogadas num ambiente cinza, chuvoso e escuro. Apesar dos momentos em que perder é tão desesperador, há algo desta poesia que coloca a enxadrista sob o Sol. Penso que seja a força e a forma. Ana Elisa é uma poeta de presença forte, cuja força de personalidade se reflete nos seus poemas, sabe rir das partidas que perde, por isso, muitas vezes seu humor ácido, sua ironia fina. Quanto à forma, sua voz traz sempre os poemas limpos, de linguagem direta, habitados por palavras de nosso universo contemporâneo, perfeitamente ritmados e, especificamente neste livro, alguns com algo até ceciliano na musicalidade, utilizando poucas rimas vez ou outra, onde o poema só se enriquece. Ana Elisa sabe exatamente onde e quando colocar o elemento lírico e o antilírico. Em Xadrez seus versos “livres” estão habilmente comandados.

Luxo

Veja que luxo
namorar uma moça
cuja casa tem uma roseira na entrada.

Só por isso
não podes mais abandoná-la.
Onde mais vais ver algo assim?
Uma roseira verdadeira!

Cabe perguntar à moça
se é ela mesma quem cuida,
rega e drena.

Se for, não podes largá-la,
Se vês a roseira plena.

    Amor belo e desmedido, intimidade de casal, amor filial, amor paterno, esperas, masturbação, descrença nas partidas, derrotas, erotismo de uma elegância deliciosa, abandono, infidelidade, ciúme, erro, tristeza, esperança, angústia, desejo, memória, descontrole: o rico tabuleiro deste Xadrez.
    Condição humana, eu e o outro, você e o outro. Após tantos movimentos e até mesmo a conquista do amor, resta ainda o xeque-mate, mas este é sempre dado pela morte. E é num metalinguístico o único momento do jogo em que a poeta pede clemência:

Extrema

pedi a Deus
uma meia dúzia
de palavras
com que
brincar
antes
de terminar
sem vida
e sem
o que
dizer

  
  Um livro muito especial.





XADREZ
Autor: RIBEIRO, ANA ELISA
Idioma: PORTUGUÊS
Editora: SCRIPTUM
Assunto: Literatura Nacional - Poesia
Edição: 1
Ano: 2015

2 comentários:

  1. merecidas palavras de uma ótima poeta para outra igualmente ótima!

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  2. Líria, querida, obrigada. E eu AMO o nome desse seu blog espiatório. risos

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