segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Betzaida Mata e a alquimia da ferrugem



 Por Adriane Garcia


É manchando o teclado que escrevo este texto, enquanto imagino que se tivesse mar, ou se tivesse deserto em sua paisagem, Betzaida não nos daria exatamente este livro. Talvez porque seja mineira e entenda perfeitamente o efeito de se morar entre aclives e declives, o que faz num espírito visitar com os olhos e pés, constantemente, montanhas de ferro; poder reconhecer bem essa cor alaranjada que agora noto em meus dedos, após ler Homens e sucatas. Não sei se livros que nos limpam são tão bons quanto os livros que nos sujam.

São dez contos, narrados com a competência de quem sabe contar boas histórias. Mais: são dez contos narrados com a competência de quem sabe transformar uma história, que podia passar por comum, numa grande história. É que Betzaida é alquimista, tira das suas pessoas, seus personagens, uma dureza de ferro, percebe-lhes a precariedade, o tempo, o aprisionamento claustrofóbico dos espaços, da vida social e, num gesto compassivo e ao mesmo tempo impiedoso, pega esta ferrugem e nos devolve em humanidade. Sim, é grande. Sim, dá-se aos olhos dos sensíveis, mas pode ser ouvido e compreendido por qualquer um, pois estamos lendo uma autora que abriu mão da pirotecnia para ser simples. Sua prosa nasce de duas escutas, interior e exterior, por isso seus diálogos demonstram tanto domínio; é o nosso prosear, mas com requintes de literatura, uma engenharia que Betzaida Mata esconde tão bem, que pensamos que a história está mesmo acontecendo do nosso lado, que sabemos o timbre de cada voz que aparece.

Homens e Sucatas é um livro sobre o que está tão perto e o que está tão longe. São nossos relacionamentos, nossas indagações existenciais, nossa resignação, a falta de controle sobre um mundo, um universo, um multiverso que permite qualquer vida, todas elas e que de tantas possibilidades só poderia se tornar repetitivo. “Do pó viemos e ao pó voltaremos”. A mensagem do Gênesis se encontra com a mensagem da Física: “somos pó das estrelas”. Mas Araceli, essa personagem apaixonante e tão silenciosa, do conto Densidade Humana, sabe bem o que fazer com isso:

Arrastou a poltrona e passou a vassoura sobre o pó que ali havia acumulado.”

É assim que os personagens de Homens e Sucatas vão sobrevivendo, fazendo aquilo que podem na elasticidade enlouquecedora de quem é protagonismo e insignificância. Pois em nossas vidas, cada um enxerga a partir de si e, assim, somos puro esfacelamento.

Esta contística, na maioria das vezes, conta com surpresas. Falar demais dos contos seria privar a leitora, o leitor, de algo excelente: os finais. É um momento de mágica, o momento em que uma frase nos faz sentir que aquela história não fica na página, que ela continua.

Já estou terminando e ainda vejo a corrosão, desde os meninos que se perderam para sempre de si, até os parquinhos abandonados que dormem ao relento. Enferruja-se a máquina de xerox sobre a qual uma moça que fugiria com o circo perdeu a vida, a cela com inocentes presos, a pedra onde adormeceu uma sereia violentada, o bule que serviu os chás que curam e que enlouquecem. Envelhecem as mães, os pais, os seus filhos. A fotografia de um avô amarela. Minas, provavelmente, continua a fornecer o minério. Um neto, um dia, puxa este livro da estante.


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Homens e sucatas
Betzaida Mata
Ed. Penalux
2016



quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Quando a literatura toma assento - Poltrona 27, de Carlos Herculano Lopes



Por Adriane Garcia


Vá até a rodoviária de Belo Horizonte. Pegue o ônibus que o levará à cidade de Santa Marta, interior de Minas. Sente-se na poltrona 27. Observe a paisagem, ouça a conversa dos passageiros. Vez em quando, puxe assunto com algum, mas cuidado com o que vai dizer, pode ser que seja indiscreto. E se você está há tanto tempo na vida urbana, que mal pode descrever para seus filhos uma vida onde se ouve o barulho dos sapos, dos grilos; onde já ficou tão longe o perigo das cobras, onde a luta contra a natureza parece ter sido resolvida, pelo menos quando você liga seu ar-condicionado, tome conhecimento de que ainda existe um mundo rural, um mundo que convive de forma real, e não virtualmente, com a vida e a morte daquilo que aqui na metrópole vem à nossa mesa, tudo embalado e, na melhor hipótese, asséptico.

Ainda assim, seria outra viagem, a sua. Não seria a viagem de Carlinhos, o protagonista de Poltrona 27, romance de Carlos Herculano Lopes. E eis a supremacia dos livros. É que a nossa viagem, ainda que rica, não seria a viagem do autor. De maneira que para ganharmos a outra viagem, ainda tem que ser o outro a dá-la a nós, pois tanto de nós já temos, mas é esse outro, para o bem e para o mal, que se nos acrescenta. Esse o papel da palavra, perpetuar o vivido, transformar a memória, a ponto de nos oferecer um mundo que em tanto não é lembrado, mas imaginado. Transmitir de um ser humano ao outro, de um tempo ao outro, o que só a palavra poderia. Somente Carlinhos seria capaz de nos dar este caminho que ele faz frequentemente, entre o apartamento na área urbana de Belo Horizonte e a cidade do interior de Minas, onde cuida de sua fazenda, plantações e bichos. No trajeto, este hábito mineiro em que talvez se inicie nossa boa mania de hospitalidade: prosear. É pela palavra que mostramos ao outro que ele é digno de nosso interesse.

Carlos Herculano Lopes transforma em literatura, com simplicidade na linguagem, o passado e o presente que habitam o caminho. Poltrona 27 vai dos dramas dos passageiros à origem da cidade de Santa Marta; da mineração ao desencaixe do homem urbano, sem raízes; da rotina na perigosa BR-381 à incógnita de cada destino que toma assento nos ônibus; da busca da história pessoal de sua mãe à narrativa que compõe um dos retalhos da identidade do lugar. Com um narrador que apenas se preocupa em contar, pouco se importando se o que relata cabe em padrões politicamente corretos, Carlos Herculano Lopes nos fará esquecer que o que temos nas mãos é um livro e nos colocará em outro cenário. Fim das contas, sem alarde – Carlos Herculano Lopes não é autor que escreve gritando – entristecemo-nos, revoltamo-nos, associamos as próprias vivências, ou as de quem conhecemos, àquelas histórias; reconhecemos nosso mundo, porque nossas dores e desejos são universais. Fim das contas, é possível que no último capítulo choremos, depois de tudo. Eu chorei.

Se livro é viagem, Poltrona 27 se aproxima ainda mais desse efeito, pois você pensa que 27 é o número de uma poltrona, mas 27 é o número de um portal.


"Muitos chegaram até a pensar que houvesse acontecido algum acidente. Em seguida, ele e o trocador, sem darem explicações, desceram apressados, para minutos depois voltarem, todos orgulhosos, segurando pelo rabo um tatu-canastra que estava tentando subir em um barranco no lado esquerdo da estrada. De tão gordo, não havia conseguido. Perguntaram se alguém tinha um saco. Uma mulher disse que sim; jogaram-no lá dentro e prosseguimos a viagem, com o bicho se contorcendo. Aquele, com toda a certeza, iria para a panela." 

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Poltrona 27
Autor: Carlos Herculano Lopes
Editora Record, RJ, 2011