Por Adriane
Garcia
É
manchando o teclado que escrevo este texto, enquanto imagino que
se tivesse mar, ou se tivesse deserto em sua paisagem, Betzaida não
nos daria exatamente este livro. Talvez porque seja mineira e entenda
perfeitamente o efeito de se morar entre aclives e declives, o que
faz num espírito visitar com os olhos e pés, constantemente,
montanhas de ferro; poder reconhecer bem essa cor alaranjada que
agora noto em meus dedos, após ler Homens e sucatas. Não sei se
livros que nos limpam são tão bons quanto os livros que nos sujam.
São
dez contos, narrados com a competência de quem sabe contar boas
histórias. Mais: são dez contos narrados com a competência de quem
sabe transformar uma história, que podia passar por comum, numa
grande história. É que Betzaida é alquimista, tira das suas
pessoas, seus personagens, uma dureza de ferro, percebe-lhes a
precariedade, o tempo, o aprisionamento claustrofóbico dos espaços,
da vida social e, num gesto compassivo e ao mesmo tempo impiedoso,
pega esta ferrugem e nos devolve em humanidade. Sim, é grande. Sim,
dá-se aos olhos dos sensíveis, mas pode ser ouvido e compreendido
por qualquer um, pois estamos lendo uma autora que abriu mão da
pirotecnia para ser simples. Sua prosa nasce de duas escutas,
interior e exterior, por isso seus diálogos demonstram tanto
domínio; é o nosso prosear, mas com requintes de literatura, uma
engenharia que Betzaida Mata esconde tão bem, que pensamos que a
história está mesmo acontecendo do nosso lado, que sabemos o timbre
de cada voz que aparece.
Homens
e Sucatas é um livro sobre o que está tão perto e o que está tão
longe. São nossos relacionamentos, nossas indagações existenciais,
nossa resignação, a falta de controle sobre um mundo, um universo,
um multiverso que permite qualquer vida, todas elas e que de tantas
possibilidades só poderia se tornar repetitivo. “Do pó viemos e
ao pó voltaremos”. A mensagem do Gênesis se encontra com a
mensagem da Física: “somos pó das estrelas”. Mas Araceli, essa
personagem apaixonante e tão silenciosa, do conto Densidade Humana,
sabe bem o que fazer com isso:
“Arrastou
a poltrona e passou a vassoura sobre o pó que ali havia acumulado.”
É
assim que os personagens de Homens e Sucatas vão sobrevivendo,
fazendo aquilo que podem na elasticidade enlouquecedora de quem é
protagonismo e insignificância. Pois em nossas vidas, cada um
enxerga a partir de si e, assim, somos puro esfacelamento.
Esta
contística, na maioria das vezes, conta com surpresas. Falar demais
dos contos seria privar a leitora, o leitor, de algo excelente: os
finais. É um momento de mágica, o momento em que uma frase nos faz
sentir que aquela história não fica na página, que ela continua.
Já
estou terminando e ainda vejo a corrosão, desde os meninos que se
perderam para sempre de si, até os parquinhos abandonados que dormem
ao relento. Enferruja-se a máquina de xerox sobre a qual uma moça
que fugiria com o circo perdeu a vida, a cela com inocentes presos, a
pedra onde adormeceu uma sereia violentada, o bule que serviu os chás
que curam e que enlouquecem. Envelhecem as mães, os pais, os seus
filhos. A fotografia de um avô amarela. Minas, provavelmente,
continua a fornecer o minério. Um neto, um dia, puxa este livro da
estante.
***
Homens e sucatas
Betzaida Mata
Ed. Penalux
2016