Por
Adriane Garcia
Estive
às voltas com o livro “cadela prateada”, de líria porto (ela gosta assim,
minúscula) por cerca de uma semana. Um livro de poesia que, sem dúvida, se
leria de uma só vez, em algumas horas, pois de leitura extremamente fluida. Mas
isso faria um leitor que não tivesse, como eu, uma relação quase gastronômica
com palavras. líria porto oferece um banquete precioso, onde saber e sabor se
misturam, e feliz é aquele que, privilegiado, pode sorver nuances, sustos de
mudanças, inversões, duplos e triplos sentidos. Por isso li três vezes cada
poema.
A
coletânea é temática e aborda de criativas maneiras este nosso satélite,
habitante do céu e do imaginário: a Lua. A cadela prateada uiva e faz uivar. É
mulher, tem luz própria, é corporificada, amamenta, é força, é dionisíaca,
erótica e vive de um amor complicado: o Sol.
De
forma absolutamente ritmada e, portanto, musical, passear pelos poemas de “cadela
prateada” é ouvir música. Brinco (de forma séria) que quando algum poeta tem
problema de ritmo em seus poemas eu lhe recomendo, de imediato, ler Cecília
Meireles. Faço-o agora também com líria porto.
A
linguagem é atualizadíssima, bem humorada, sem deixar de falar da tragicidade
da vida; as metáforas, riquíssimas. líria porto é uma poeta que consegue fazer
uma poesia sensível, comunicante, filosófica e, ao mesmo tempo, falar de
sentimentos ou mesmo de política. Em “cadela prateada” nada é panfletário, nada
é ingênuo, nada é forçado, nada é gratuitamente confessional.
Da
cosmogonia própria, elaborada em belíssima narrativa à solidão diária e noturna,
os temas vão-se dando, página a página, de forma surpreendente, leve, mas com
força de atração natural.
Fim
de livro, penúltimo poema especificamente, eu, que ria e me deliciava, chorei.
Ali estavam também dois temas que a poeta desenvolve com maestria: a morte e o
tempo. Eram minhas marés internas sendo movimentadas. Um livro que coloca a lua
na palma da mão.
pálpebras
de
manhã abro a janela
e
deixo o sol penetrar
no
corpo da casa
à
noite fecho-a de novo
(estrelas
ficam lá fora)
eu
durmo dentro
do
ovo
na
lua cheia
não
tenho regra
biografia
na
guerra foi concebida
ficou-lhe
esta ferida
rasgo
no espírito
quando
chegou outubro
envolta
num manto rubro
quis
ser feliz
à
meia-noite e meia
na
hora da lua cheia
rompeu
o escuro
assim
nasceu uma bruxa
alma
cor de puxa-puxa
nome
de flor-de-lis
adiamentos
a
lua esperava o sol
redonda
um talismã
quando
ela se despiu
ficou
de manhã
o
sol lambia a lua
o
meio o lado as beiras
lamberia
a face oculta
a
nuvem veio
só
amanhã
poder
ora
tímida ora escandalosa
essa
lua bipolar puxa e empurra o mar
com
os olhos
à
amiga rina bogliolo
estejas
onde estiveres
ao
contemplares a lua
(dela
não arredo os olhos)
poderei
ver-te
dir-me-ás
é
pouco
dir-te-ei
nem
tanto
aos
loucos
basta
uma gota
e
o mar virá
minguante
lua
o
rato roeu
tua
cara de hóstia
caíram
uns farelos
que
o gato lambeu
com
os olhos
cão
pobre vadio
uivou
no vazio
tristeza
de morte
a
vida é o quê
senão
o aguardo
da
hora
***
Cadela
prateada
líria
porto
Editora
Penalux
2016