segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A força gravitacional de líria porto – cadela prateada



Por Adriane Garcia


Estive às voltas com o livro “cadela prateada”, de líria porto (ela gosta assim, minúscula) por cerca de uma semana. Um livro de poesia que, sem dúvida, se leria de uma só vez, em algumas horas, pois de leitura extremamente fluida. Mas isso faria um leitor que não tivesse, como eu, uma relação quase gastronômica com palavras. líria porto oferece um banquete precioso, onde saber e sabor se misturam, e feliz é aquele que, privilegiado, pode sorver nuances, sustos de mudanças, inversões, duplos e triplos sentidos. Por isso li três vezes cada poema.

A coletânea é temática e aborda de criativas maneiras este nosso satélite, habitante do céu e do imaginário: a Lua. A cadela prateada uiva e faz uivar. É mulher, tem luz própria, é corporificada, amamenta, é força, é dionisíaca, erótica e vive de um amor complicado: o Sol.

De forma absolutamente ritmada e, portanto, musical, passear pelos poemas de “cadela prateada” é ouvir música. Brinco (de forma séria) que quando algum poeta tem problema de ritmo em seus poemas eu lhe recomendo, de imediato, ler Cecília Meireles. Faço-o agora também com líria porto.

A linguagem é atualizadíssima, bem humorada, sem deixar de falar da tragicidade da vida; as metáforas, riquíssimas. líria porto é uma poeta que consegue fazer uma poesia sensível, comunicante, filosófica e, ao mesmo tempo, falar de sentimentos ou mesmo de política. Em “cadela prateada” nada é panfletário, nada é ingênuo, nada é forçado, nada é gratuitamente confessional.

Da cosmogonia própria, elaborada em belíssima narrativa à solidão diária e noturna, os temas vão-se dando, página a página, de forma surpreendente, leve, mas com força de atração natural.

Fim de livro, penúltimo poema especificamente, eu, que ria e me deliciava, chorei. Ali estavam também dois temas que a poeta desenvolve com maestria: a morte e o tempo. Eram minhas marés internas sendo movimentadas. Um livro que coloca a lua na palma da mão.


pálpebras

de manhã abro a janela
e deixo o sol penetrar
no corpo da casa

à noite fecho-a de novo
(estrelas ficam lá fora)
eu durmo dentro
do ovo

na lua cheia
não tenho regra


biografia

na guerra foi concebida
ficou-lhe esta ferida
rasgo no espírito

quando chegou outubro
envolta num manto rubro
quis ser feliz

à meia-noite e meia
na hora da lua cheia
rompeu o escuro

assim nasceu uma bruxa
alma cor de puxa-puxa
nome de flor-de-lis


adiamentos

a lua esperava o sol
redonda um talismã
quando ela se despiu
ficou de manhã

o sol lambia a lua
o meio o lado as beiras
lamberia a face oculta
a nuvem veio

só amanhã


poder

ora tímida ora escandalosa
essa lua bipolar puxa e empurra o mar
com os olhos


à amiga rina bogliolo

estejas onde estiveres
ao contemplares a lua
(dela não arredo os olhos)
poderei ver-te

dir-me-ás
é pouco

dir-te-ei
nem tanto
aos loucos
basta uma gota
e o mar virá


minguante

lua
o rato roeu
tua cara de hóstia

caíram uns farelos
que o gato lambeu
com os olhos

cão pobre vadio
uivou no vazio
tristeza de morte

a vida é o quê
senão o aguardo
da hora

***

Cadela prateada
líria porto
Editora Penalux
2016







segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Não chore - De Luiz Bras



Por Adriane Garcia


Não chore, de Luiz Bras (heterônimo de Nelson de Oliveira) é uma novela que discute, de forma instigante, o aparelho prisional brasileiro. 

Enquanto percorremos um lugar do futuro (que reconhecemos inúmeras vezes ser já o lugar do agora, o lugar distópico do agora), com personagens que cruzam a história como realidades paralelas, aparentemente sem se tocarem, somos colocados em contato com a reflexão sobre esta instituição que consideramos natural e não questionamos: o sistema carcerário.

No livro, os personagens, também desenhados por Teo Adorno (outro heterônimo de Nelson), retratam negros e negras (estes habitantes mais que comuns na vida real das celas nacionais). 

Trabalhando na contramão do esperado (sempre), Luiz Bras devolve a estes "criminosos"  a sua ancestralidade e mais: a sua origem cósmica, grandiosa, misturando à contemporaneidade da linguagem e do cenário mitos antigos e fundadores da trajetória humana. Deuses, orixás, xamãs, espíritos e animais das florestas, guerreiros se misturam, assim como velhas e novas roupagens, velhos e novos rituais, armas antigas e armas somente possíveis na ficção científica. Um aparato que pergunta: "Você está com a gente? Está disposto a explodir presídios?" 

Com cenas de imensa solidão e violência - mas uma violência que nos diz "você já está se acostumando há tempos", Luiz Bras nos leva a reconhecer tendências interiorizadas e mesmo a flagrar o quanto os discursos institucionalizados já domesticaram e anestesiaram nossas mentes, o  quanto paralisamos o exercício de pensar sobre Estado e controle e sobre o que realmente o Estado controla, para quem, o quê  e o quanto é importante que nos convença por completo que trancafiar os "criminosos" é primordial. A vitória da vingança sobre a reabilitação. 

Mas não chore, nem tudo está perdido, parece que é impossível extinguir, por completo, a capacidade humana de sentir e de se comover com o outro, ainda que isso já seja apenas fragmento. Um defeito na máquina fria?

Um livro com um viés anarquista; uma discussão muito interessante e necessário.


"VAI FICAR ADMIRANDO ESSA torre o dia todo? Joga logo.
Raquel, vamos tomar um café, conversar no mundo real...
Que besteira. Já estamos conversando no mundo real. Quem disse que a web não faz parte do mundo real?
Você está filosofando. A web não tem cheiro, não conheço teu perfume, o aroma do teu xampu... Eu queria acariciar tua pele, mas a web não tem a sensação sutil do tato.
Ainda não, mas em dez anos isso será resolvido. Uma prótese neural mais eficiente, um antivírus quântico...
Não quero esperar dez anos pra sentir você.
Que drama, garota! Que diferença faz conhecer alguém no mundo real? Por que isso é tão importante? Você conhece dezenas de pessoas no teu colégio, nem por isso parece feliz & satisfeita.
Raquel, o que você sente por mim? De verdade? Você tem medo de quê? De chorar? De se apaixonar?
Ai, meus pentelhos. Joga logo, Soo-Yun."


Não chore
Luiz Bras
Editora Patuá
2016

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Folhas do Tempo - de Maria Céres Castro, Paulo Bernardo Vaz...



Folhas do tempo é um livro de ensaios sobre o surgimento do jornalismo em Belo Horizonte, seguindo por duas décadas.

O livro não só traz aspectos interessantes do Arraial do Curral Del Rei e da incipiente Belo Horizonte, como as características e curiosidades sobre as diversas publicações que surgiram na localidade entre 1895 a 1926. Dos reclames, notícias às crônicas, um retrato curioso sobre mais este lado de uma cidade nascendo, uma cidade republicana, onde a República também não se completou.

Vale a leitura.



Folhas do Tempo
Imprenas e cotidiano em Belo Horizonte
1895-1927
Maria Céres Castro, Paulo Bernardo Vaz
Cançado, Cunha, Loyola, Santos, Simões, Siqueira, Sosnowski
Editora UFMG
1997