domingo, 17 de dezembro de 2017

Via Férrea, de Mario Alex Rosa – Uma viagem pela luz no fim do túnel



 Por Adriane Garcia


Bela edição da Cosac Naify, o que é quase uma redundância, o livro Via Férrea, de Mario Alex Rosa é um objeto prazeroso de se ter em mãos: azul, formato estreito, 64 páginas que já sugerem não haver excesso.  Por fora, o título emblemático, curioso, substantivo concreto que antecipa a possibilidade de movimento, duro, composto, de ferro e metáfora. Via. Férrea.

Entrar nesse caminho, abrir esse livro, exige silêncio. Não é a poesia fácil que se pode ler no barulho infernal de nossos dias postáveis, pois pouquíssimo ou nada nos exigirá memória na terra da dispersão. É outra coisa, é como no verso de Drummond: “Penetra surdamente no reino das palavras”. É sempre necessário um silêncio para ouvir o outro silêncio.

Munida (e necessitada) de silêncio, abri. Nada sabia eu da viagem, essa a grande aventura a que os livros podem nos levar. Ocupei um dos vagões do monstro metálico, um vagão melancólico, onde primeiro me deparei com essa entidade assustadora e premente: o Tempo.

Em Via Férrea há uma constante inquietação e constatação a respeito do tempo e seu efeito sobre nós, o homem sabe-se um bicho que está no mundo, “bicho ferrado”, mas diferentemente dos outros bichos, consciente de sua condição, sente a ação do tempo. Bicho versus palavra, nomear é sua angústia e salvação. Há agonia se a palavra cala, pois a palavra surge como algo de bom nos dias, como uma interrupção na sua labuta de sísifo; porém, perpassa pelos poemas de Via Férrea a ideia de que a expressão jamais comunica exatamente aquilo que veio expressar. Existe um sentimento de impotência e incomunicabilidade diante do mundo.

“A tarde terminou com sinal de promessas.
Vieram as palavras!
E, com elas, a raiva varou noite adentro.”

Também é interessante notar a opressão dos calendários como repetição. Desde o calendário grafado, dos dias úteis, que aprisionam a vida, que colaboram para o sentimento da falta de sentido de viver, um dia após o outro, como o calendário mais natural, o calendário regido pelo aparecimento e pela ausência da luz do sol, pelos movimentos da Terra: manhã, tarde, noite e pelas estações do ano. O ser está preso aos seus afazeres, obrigações. Entre nascer e morrer (as duas extremidades de uma via), viver é um exercício penoso, desconfortável, “o salto é zero”:

Na próxima manhã
Sol escaldante barra a visão.
Não dessa mão que escreve
(rodopia pelas ruas da cidade)
e nada sobrevoa.
Fixar é aqui mesmo.
Contra tudo:
o salto é zero.
Posso não regressar.
Mas, a tarde neutra, desemboca
na manhã seguinte.”

Da aflição para que os dias úteis terminem, o humano prazer de que o sábado não termine nunca, mas ele “vai anoitecendo”, e o domingo é o prenúncio da segunda-feira. Uma das imagens mais bonitas de Via Férrea, por sinal, está no poema Domingo, onde, de forma tão sutil e indireta, o poeta nos faz ver um domingo (um menino?) soltando pipa (a luz que faltava?). A maneira pela qual ele faz isso é um grande acerto no poema: dizer sem dizer, mostrar, mostrando outra coisa, permitir que a imaginação torne o leitor coautor do poema:

“O domingo veio quente.
Sol a pino.
Ele empinava a luz que faltava.
Então, já sabe escolher entre o sim e o não?
Não.
Então volte e mastigue suas próprias palavras.”

Não estaríamos viajando, verdadeiramente, numa via férrea, acaso não prestássemos atenção na geografia. A paisagem é mesmíssima e é o amor que pode interrompê-la com alguma novidade. Assim, o amor aconteceu durante o percurso, mas a via só leva para a frente, exceto pela memória, “poeira”, que “noitea” os dias. O amor é a força capaz de fazer o coração bater, mas “ele só bate”. O amor é o grande sonho irrealizado, nem ele ou o sexo aparecem como redenção nesta poesia de Mario Alex Rosa, pois não é possível seguir na companhia do amor, exceto como perturbação: a vida é solitária e de dor continuada. Como no ritmo de um trem, o ritmo desta dor continuada é melodicamente constante e, por isso, suportável, mas apenas depois de já se ter alcançado a maturidade de saber ouvi-lo:

“Nunca o relógio andou tão rápido:
Disseram: Tempo de mudanças traz vida nova!
As folhas de outono amanhecerão
num jardim primaveril. As chaves abrirão
outras portas. Para sempre pensará no suicida que foi.
Em todo caso, sem desastre fez o dever de casa: mudou.
Mas aqui, onde ninguém chega,
uma dor muda
dói.”

E a via segue. O ser, comprimido pelo próprio caminho, sente raiva, violência e mantém-se acuado, minúsculo, no paradoxo de conter em si um furacão de sentimentos. Durante esse trajeto, há pouca possibilidade de fuga, e nem mesmo o poema se estabelece como uma:

 “Aqui no branco
ou na avenida estreita,
a margem é a mesma.
A sombra também.”

A dor interna muitas vezes coincide com uma dor externa, visível na paisagem. Ora, eu não disse que a paisagem era mesmíssima? Isso não quer dizer que ela seja calma e pacífica. O personagem que percorre Via Férrea (porque poesia também é ficção) é traído pela memória,  sente a mordida, mas é dentro de si: a ferrugem, essa oxidação que é tão simbólica da corruptibilidade da matéria, dos nossos corpos, dos trilhos. Novamente a ação do tempo, das intempéries.

Via de esperança mínima, o eu-poético em Via Férrea sofreu o suficiente para não ser mais ingênuo, sabe que os dias não permitem grandes ousadias, que são feitos de medo, inclusive do medo de amar. Não há concessão: o outro, que seria a ponte de alguma salvação ou sentido, não se realiza. Essa é a via do ser extremamente sozinho, que não deseja mais interrupções de ritmo com sobressaltos. E tanto a esperança quanto o amor deixariam o coração acelerado.

Terminada minha primeira leitura, fechei o livro e recomecei a viagem. Lembrei-me do poeta W. H. Auden e voltei a uma sua palestra em que dizia que a poesia funcionava quando, entre outros elementos do saber fazer, antes, o poeta encontrava o elemento sagrado. Para Auden, “não se pode escolher um ser sacro, é preciso encontrá-lo. No encontro, a imaginação não tem outra escolha a não ser reagir.”

Via Férrea traz vários de nossos “sagrados” e reage a eles, estes a que temos adoração ou repulsa: tempo, vida, morte, incompletude, amor, raiva, natureza, mistério, sentido. O poeta consegue em Via Férrea fazer um livro em que o confessional é matéria prima e, se vestiu em si mesmo, com o poema, uma camisa de força para continuar o caminho, vestiu em cada poema esta contenção que torna as palavras arte. O resultado é que emociona o leitor preparado para sentar no banco ao seu lado e seguir. Em silêncio.  A viagem emociona porque se nos identifica. Sabemos muito bem onde a via começa e onde vai terminar.

“Trilha

Se pudesse, mataria a palavra que guardo aqui.
Mas tenho muitos elementos covardes e adio
o que um dia, inevitavelmente, terá que deixar de ser.
A via férrea cortará os trilhos, os braços e, talvez,
abra um clarão no escuro.”



***
Via Férrea
Mario Alex Rosa
Poesia
Cosac e Naify

2013

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Vertigem digital, de Andrew Keen




Por Adriane Garcia

“A transparência é boa demais para ser verdade. O que há por trás desse mundo falsamente transparente?”
Jean Baudrillard (cit. p. 130)
  


O livro Vertigem digital, de Andrew Keen (tradução de Alexandre Martins, ed. Zahar) é um excelente livro para se refletir sobre as redes sociais.

No subtítulo “por que as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando” o autor já dá o tom de crítica com o qual prosseguirá por toda a obra.

Partindo do corpo embalsamado do filósofo Jeremy Bentham, em exposição no University College de Londres, Andrew Keen, de forma rica e habilidosa, convida-nos a pensar, principalmente, a questão da privacidade em tempos de redes sociais.  Utilizando analogias com o cinema (Um corpo que cai, de Hitchcock), com a literatura (1984, de Orwell e Utopia, de More) e com a filosofia (entre outros, Sobre a liberdade, de Stuart Mill), além de informações interessantes sobre o Vale do Silício, Vertigem Digital consegue prender a atenção do leitor com um texto fluido e curioso.

O autor é jornalista norte-americano e historiador formado na Inglaterra, especializado nas criações do Vale do Silício. Ciente de que as redes sociais vieram para ficar e que, neste sentido, não há nada a se fazer, aponta a necessidade de se pensar e repensar o seu uso. Segundo Andrew, as redes sociais podem ser comparadas ao antigo projeto arquitetônico do panóptico, de Jeremy Bentham, utilizado, sobretudo, para prédios prisionais, onde se buscava a maior vigilância com o menor esforço. Empresas bilionárias de internet vendem, a todo momento, os dados que disponibilizamos nas redes, “se você não paga pelo produto, você é o produto”. É a chamada “economia da atenção” ou “cultura participativa”, em que o que está em disputa é o seu tempo e o quanto você se dispõe a revelar. Um mundo de posts, likes e compartilhamentos que não só compete no mundo virtual como compete com o mundo real.

Andrew Keen escreve um livro bem abrangente, que observa o fenômeno das redes sociais tanto no efeito que promovem sobre a vida privada quanto na vida pública ou política, quando dados e informações dos usuários são utilizados para a manipulação, para o bem e para o mal.

Livro para ser lido, relido e indicado para leituras.

“A revolução digital muda tudo, diz Shirky, porque a “cultura participativa” elimina as antigas hierarquias da mídia industrial do século XX. Portanto, não precisamos mais de um estúdio de Hollywood com recursos, como o Paramount, ou de um diretor de cinema autoritário como Alfred Hitchcock, para fazer Um corpo que cai. O monopólio da mídia por Hollywood, no século XX, é substituído pelo que Shirky chama de “produção social” da internet, na qual a cultura é criada por todos nós, e não pelas elites. Assim, a mídia digital se torna literalmente o “tecido conjuntivo da sociedade”, a fonte participativa de cultura e comunidade. Mais uma vez citando John Perry Barlow, todos nos tornamos informação – cada um de nós é um conector participativo nessa produção coletiva de cultura.
Mas Shirky – não por acaso apelidado de Herbert Marcuse da atual intelligentsia da rede – está certo por todas as razões erradas. No século XX, íamos ao cinema para sermos aterrorizados pelos filmes de Hitchcock sobre homens inocentes como Scottie Ferguson, que eram arrastados para pesadelos que não compreendiam nem controlavam. Mas quando as luzes se acendiam, o pesadelo terminava, e estávamos livres para sair do cinema e retomar nossas vidas normais.
Hoje, porém, Um corpo que cai de Hitchcock foi radicalmente democratizado, de modo que todos participamos do drama. Essa é a verdade da “cultura participativa” de Shirky. Vejam, a mídia social se tornou tão onipresente, de tal forma é o tecido conjuntivo da sociedade, que todos nos tornamos Scottie Ferguson, vítimas de uma história assustadora que não compreendemos nem controlamos.
Sim, essa versão digital de Um corpo que cai é estranha pra cacete.
Assim como Gavin Elster idealizou a São Francisco de junho de 1949 e Scottie Ferguson se apaixonou pela falsa Madeleine Elster, Shirky e seus colegas comunitaristas se enamoraram de uma cultura participativa pré-industrial que provavelmente jamais existiu, e sem dúvida não pode ser ressuscitada em nosso mundo supercompetitivo e cada vez mais individualizado do século XXI. E tal como Elster atraiu seu próprio colega da Universidade de Stanford para uma soturna fantasia de logro e coração partido, esses comunitaristas românticos, por uma razão ou outra, arrastam todos nós para um futuro que a maioria na verdade não quer – um love-in digital de publicalidade-padrão; uma luta darwiniana de indivíduos hipervisivelmente relacionados; uma “aldeia global” onde segredo e esquecimento desaparecem; uma “cultura participativa” que projeta uma transparência indesejada sobre toda a nossa vida; um mundo Creepy SnoopOn.me de incessantes verificações no foursquare, de computadores que nos conhecem e varreduras faciais de Facebook, no qual ninguém nunca é deixado sozinho.
Embora Steven Johnson compare de modo favorável o “ecossistema” da internet a um dos recifes de coral cheios de vida de Charles Darwin; embora Nicholas Christakis e James Fowler nos prometam que, “quando você sorri, o mundo sorri com você”; embora Jeff Jarvis nos ofereça uma passagem de volta para a transparência “idílica” da Inglaterra de Henrique VIII; e embora Clay Shirky garanta que “os seres humanos valorizam intrinsecamente uma sensação de contato” – apesar disso tudo, o que a tecnologia em rede produziu de verdade foi a ressurreição do Autoícone de Jeremy Bentham – uma máquina de autoglorificação que promete, com toda a sedução de uma heroína coercitiva de Hitchcock, nos tornar imortais.” (p. 127 - 128)

***
Vertigem digital
Andrew Keen
Zahar
2012






segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Receitas de como se tornar um bom escritor – de Linaldo Guedes




Por Adriane Garcia

Tendo lido alguns romances ótimos durante a semana, resolvi descansar um pouco do gênero e peguei um livro que andava ocioso pela casa. A princípio, não dei atenção. O título me repelia um pouco, “Receitas de como se tornar um bom escritor” – lembrava algo da autoajuda, e ainda parecia partir do pressuposto de que alguém, algum iluminado, poderia ensinar isso. A própria edição (da Chiado Editora) não se mostrava muito atrativa, de maneira que abri o livro a esmo, sem gostar do título, sem gostar da capa, sem gostar do papel, mas de antemão sabendo que seu autor, Linaldo Guedes, era, pela qualidade de tantos trabalhos anteriores e militância na literatura, merecedor de atenção.

Grata surpresa: Receitas de como se tornar um bom escritor é uma coletânea reflexiva, que reúne artigos, palestras e crônicas publicadas na imprensa, seja impressa ou virtual, por Linaldo Guedes. Neles, Linaldo lança seu ponto de vista sobre a literatura, o meio literário, os livros, os autores e as mudanças ocorridas nos modos de publicação e recepção das obras literárias a partir do advento da internet e mesmo das redes sociais.

O próprio artigo cujo título dá nome ao livro nada tem a ver com aulas ou oficinas; é, na verdade, uma provocação do autor, que critica os modos extraliterários de se tornar um “bom escritor”, concluindo que um escritor cuja fama seja a de “bom escritor” não necessariamente o é, já que muitas vezes esse julgamento depende da circulação que faz entre aqueles que detêm o poder midiático ou alguma influência entre os que controlam o mercado editorial.

Na verdade, Receitas de como se tornar um bom escritor poderia se chamar Receitas de como se tornar um bom leitor. Linaldo fala sobre Fernando Pessoa, Padre Antônio Vieira, João Cabral de Melo Neto, Paulo Leminski, Augusto dos Anjos, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Ariano Suassuna, Sérgio de Castro Pinto, entre outros. Claro que eu senti falta, no livro, de artigo que falasse especificamente de alguma mulher escritora. Isso é algo para o qual vamos nos atentando cada vez mais hoje.

Há reflexões sobre prosa e poesia. O artigo sobre Augusto dos Anjos, por exemplo, Um poeta acima de qualquer escola, é uma delícia. O livro é um diálogo com o leitor, um guia de leituras também, com sugestões excelentes. No fim das contas, o que Linaldo, apaixonado e profícuo leitor, está dizendo mesmo é: leia, leia muito, pois se isso não garante (e não garante) que se será um bom escritor, a falta de leitura muito menos.

Caso algumas declarações de Receitas de como se tornar um bom escritor estivessem escritas em posts do Facebook, certamente gerariam polêmicas, animosidades e brigas, onde todos falariam e ninguém ouviria ninguém. Essa é a grande vantagem do livro; no livro ainda é possível ouvir, discordar, concordar, mediar internamente e considerar as divergências. Receitas de como se tornar um bom escritor é um livro ótimo, uma conversa concentrada e inteligente nesses tempos de louvor ao eco, ao raso e ao obscuro.

Os poetas não leem os poetas?

Pode até parecer contraditório o que está escrito acima, no título deste artigo. Mas a provocação de Eduardo Lacerda, jovem editor da Patuá e poeta, em entrevista a este jornalista, vai por aí. Lacerda diz com todas as letras: ‘Se os autores de poesia também fossem leitores de poesia, então poesia não daria prejuízo’. E diz mais: ‘O desejo de publicação – publicação em qualquer lugar, com qualquer qualidade – é muito maior do que o desejo de se estabelecer um diálogo com outros escritores e com a própria editora. É muito maior o desejo de publicar do que o desejo de ler. E eu acho estranho’”.
(p. 37)

***
Receitas de como se tornar um bom escritor
Linaldo Guedes
Ed. Chiado
2015


sábado, 11 de novembro de 2017

Aqui, no coração do inferno, de Micheliny Verunschk


Por Adriane Garcia

Sempre que gosto bastante de um livro, procuro escrever sobre ele. Primeiro para deixar um registro para mim, depois, porque minha leitura pode despertar interesse pelo livro em algum outro (onde estará?) leitor.

Li o livro Aqui, no coração do inferno (ed. Patuá, 2016), de Micheliny Verunschk, durante dois dias desta semana. O livro é envolvente, tem fluidez e o que mais gostei: tem uma tensão daquelas em que a gente enquanto lê sabe que está meio refém da autora.

Tudo começa quando o delegado da cidade, pai de uma menina de 15 anos, a narradora (cujo nome não falarei, já que é uma descoberta essencial para um dos prazeres dessa leitura), traz um garoto de 14 anos, acusado de vários assassinatos, para ficar preso provisoriamente na cozinha de sua própria casa. A narradora, a madrasta e a irmã ficam, por alguns dias, convivendo com essa presença esdrúxula.

É pelos olhos da menina adolescente que vamos conhecer a história, e é por seus olhos e palavras que, enquanto queremos saber mais sobre o suposto assassino, tomamos ciência da vida da própria menina: as lembranças que tem da mãe, a relação com a família, com a cidade, o lugarejo violento de fim de mundo para onde o pai foi transferido, o horror e o mistério que ela colhe, em segredo, da gaveta de inquéritos do pai.

Micheliny constrói sua história na cidade de Santana, em um cenário onde a violência está naturalizada, onde o machismo – essa forma de violência que agrupa outras tantas – está naturalizado, onde o painel político da ditadura militar aparece deixando rastros, angústias e suspeitas sobre os desaparecidos. Tudo isso transformando e sendo transformado, na usina interior que é sua protagonista, menina sagaz, inteligente, questionadora que fala tanto de masturbação feminina quanto da dúvida sobre o papel que escolherá para si, mas de antemão já adiantando que essa escolha será dela.

Sem dar respostas, Aqui, no coração do inferno, faz com que indaguemos sobre nossa sociedade, nossa liberdade, nossas meninas e meninos, neste país que parece obra de ficção.

Ah, não posso me esquecer de dizer que vamos ávidos caminhando para o final deste volume e ficamos surpreendidos com a habilidade com a qual a romancista o termina.

Recomendo muitíssimo.


Fui à cozinha e perguntei pra ele baixinho

Tu quer me comer?

Dessa vez, eu não saí correndo. Esperei uns cinco segundos pela resposta que não veio e emendei outras perguntas, apressadamente

Vai me dar uma dentada, vai?

É verdade que você comeu um cara?

Que gosto tem carne de gente?

Será que papai bateria em mim se sonhasse que eu tava na cozinha de papo com o garoto doido e assassino? Será que me amarraria ao pé da mesa feito uma bela galinha de domingo?”
(p. 81)

***
Aqui, no coração do inferno
Micheliny Verunschk
Romance
Ed. Patuá

2016

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Todos os abismos convidam para um mergulho, de Cinthia Kriemler



Por Adriane Garcia


“Apanhar, obedecer, saciar. Apanhar, obedecer, saciar. Apanhar, obedecer, saciar.”
(p. 259)

Eu já conhecia o trabalho anterior de Cinthia Kriemler, Na escuridão não existe cor-de-rosa, livro de contos do qual gostei muitíssimo. Quando peguei, há alguns dias, Todos os abismos convidam para um mergulho (ed. Patuá, 2017), não tinha a menor noção do que se tratava. Sei que comecei a ler num dia e no outro já havia terminado. Eu simplesmente não conseguia parar a leitura; nos momentos em que outras atividades me exigiam, ficava ansiosa precisando voltar.

Passei dois dias mergulhada na vida de Beatriz, entre sustos, revelações e crueldades. A protagonista de Cinthia é um abismo escuro, misterioso, fascinante. É Beatriz quem narra sua história, seu mundo, tudo aquilo que viu e vê. Desta maneira, é pelos olhos dela que o leitor passa a enxergar. Abismo dela, abismo nosso, Beatriz chama o leitor cada vez mais para o fundo: “Deixai toda esperança, vós que entrais.” Dante ficaria surpreso com o inferno que podemos criar entre nós.

Enquanto acompanhamos o trabalho de Beatriz, que é assistente social e atende vítimas de violência em situações de risco, mulheres e crianças violentadas, adolescentes prostituídos por seus próprios pais, também partilhamos de seu grande conflito: o suicídio da filha, Laura, que sofria de depressão. Beatriz não pode se perdoar por não ter percebido a depressão da própria filha enquanto cuidava dos filhos dos outros, culpa que carrega e que, a seu modo, tenta resolver na compulsão pelo sexo.

Ler este romance e caminhar com Beatriz é adentrar num dos lados mais escuros de nosso país. Todos os abismos convidam para um mergulho é também uma denúncia escancarada da infância e da violência contra a mulher no Brasil. De forma brilhantemente literária, Cinthia Kriemler constrói uma narradora complexa, uma mulher forte, feminista, independente, que se tornou dura por recusar a si própria o estereótipo de mulher frágil, que conseguiu se desconstruir, mas que não conseguiu sua reconstrução. E é na tentativa dessa reconstrução, onde parece só haver o erro, que tanto o que há ao redor de Beatriz quanto o próprio processo vivido por ela vão convergir para o mesmo ponto.

Algum dia quebraremos o círculo vicioso que a violência contra a infância inicia e que parece sem fim? Que esperança haveria para uma sociedade que maltrata crianças, que estupra meninos e meninas, que exerce o machismo e a misoginia com naturalidade? Que esperança haveria para vidas que nem nasceram?

“Antônio atirou na mãe. Eu sei que foi ele. O advogado também sabe. Mas não é isso que advogados fazem? Mentem, mentem, mentem. Com muita seriedade. Convencem. Tudo o mais é interpretação. A minha é de que Antônio nunca nasceu. Gente nasce de mãe e de pai, não de esperma e óvulo. Cópula, concepção, gestação é ciclo de bicho. No de gente, entra afeto. É preciso ser sonhado, esperado, idealizado, amado para se nascer. Antônio é só mais um animal parido. Eu sempre reconheço os afins.”
(p. 132)

Todos os abismos convidam para um mergulho é um livro excelente, mas, mais que isso, é um livro necessário. Um livro sobre tantas coisas que negligenciamos, sobre o preço alto do desamor.

“Uma mulher deve morar sozinha. Por algum tempo. Por muito tempo. Para sempre. Para ter o controle ou o descontrole da sua própria vida. Para escolher entre ser independente e depender do que quiser. Para se decidir pela liberdade que lhe convém, não pela que convém aos outros. Para aprender a prestar contas de horários, erros, decisões, copos de vodca e sexo apenas a si mesma.
Uma mulher deve saber que com os homens acontece diferente. E que por isso eles não sabem o quanto tudo isso representa. Porque nascem sob o privilégio do masculino. Porque crescem sob o privilégio do poder. Sem ranços, nem obstáculos, nem preconceitos condenando sua existência a um patamar inferior. Privilégio não é palavra feminina. Conquista é. Essa luta por uma paridade urgente que nos convoca a umas, mas não a todas. Essa capacidade de nos livrarmos da injustiça que nos espera na sala às cinco da manhã.
O que me dói não é encontrar Gustavo me esperando, esbravejando como papai fazia. Nem a mão dele apertando meu braço com força para me cobrar explicações. Nem as palavras horríveis que ele me diz antes e depois de eu mandar ele sair da minha casa. Só o que me dói é a cegueira. A minha cegueira longa e burra.”
(p. 155-156)

*** 

Todos os abismos convidam para um mergulho
Cinthia Kriemler
Romance
Ed. Patuá
2017



sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Vila Vermelho, de Jeter Neves, um livro memorável



Por Adriane Garcia


“Penso, Professor, que a literatura perdeu o prazo de validade. Você deve estar pensando que o pouco que sei do mundo foi a literatura que me deu. Tudo bem, não vou discutir, mas não foi ela que me deu dinheiro. Para ganhar dinheiro com a literatura, o sujeito tem de negar a natureza da literatura, se é que você me entende.”
(p. 44)

Há dias estou para falar desse livro, sua leitura me deixou impactada. É o impacto de me sentir conduzida, de ouvir uma boa história, uma história que só se torna grande porque um grande escritor soube contá-la.

Por muitas vezes, durante a leitura, perguntei-me o motivo de um livro desses não ser mais conhecido, lido, citado. A resposta passa pelo de sempre: o desprestígio da literatura na cultura do país de modo geral (o que influencia a eficácia da crítica) e a oferta cada vez maior de atividades que atraem para a rapidez e a superficialidade, em detrimento da profundidade e da introspecção.

Isso para não falar do número absurdo de analfabetos funcionais e da nossa educação, relegada a último plano. Como se não bastasse: tantas brasileiras e brasileiros que lutam para satisfazer necessidades bem mais imediatas: comer, defender algum teto onde se possa dormir, saber onde deixar os filhos durante o expediente de dez horas do dia mais três horas em ônibus e trens lotados; e tudo isso para, cansados de exploração e trânsito, irem cuidar apressadamente de suas casas e filhos; depois, dormir e começar tudo novamente; não sem antes ligar a televisão, de modo que se receba uma cota diária de medo e algo facilmente digerível, absolutamente digerido. O cansaço nunca quer que pensemos.

Mas o livro do qual falo é Vila Vermelho. Seu autor é Jeter Neves. Jeter é mineiro de Miradouro, professor, tendo recebido os prêmios literários do Paraná, Cidade de Belo Horizonte e, com este romance, o Minas Gerais de Literatura.

Vila Vermelho é a história de um homem adulto que, após décadas, volta à sua cidade. Caburé, protagonista cujo nome não conheceremos (apenas este apelido), retorna à Vila Vermelho porque ouve falar que seu amigo de infância, Tié, morreu. Chegando à Vila, descobre que a morte de Tié é um boato. Na cidade por uma semana, Caburé narra a um antigo professor, internado em um asilo, as lembranças de sua vida naquele lugar.  Em estado vegetativo, o professor não interfere na narrativa. Assim, o leitor conhece a história de Vila Vermelho naqueles anos das décadas de cinquenta e sessenta.

O que o leitor tem, a partir de então, são duas visões: macro e microscópica.  No plano macro, o leitor enxerga a Vila, o país, a agitação política e revolucionária das mentes jovens, a vila como um lugar dentro de outro, como tantos que se faziam por aquele Brasil. Microscopicamente, o leitor vê personagens que, com suas idiossincrasias perfeitamente construídas por Jeter Neves, tornam Vila Vermelho um lugar único. Vila Vermelho é daqueles lugares que um leitor não esquece, que fica na geografia literária pessoal de quem lhe soube, assim como a Antares de Érico Veríssimo, ou a Olhos D’água de Maria Valéria Rezende, ou a Comala, de Juan Rulfo.

Caburé é filho de um fazendeiro e de uma herdeira rica, mas a família perde tudo com a bebedeira e boemia do pai. Na Vila, vai viver com outras crianças pobres, mas estuda, com bolsa, no melhor colégio da região, onde conhece Isadora, menina rica e comunista, pela qual se apaixona. Isadora, sendo rica, identifica-se com os pobres; Caburé, pobre, identifica-se com os ricos.

Mário é outro jovem, o mais velho da turma, que se torna marinheiro e envia postais de suas viagens pelo mundo a Caburé. O leitor verá a transformação de Mário: de marinheiro admirador do liberalismo norte-americano a rebelde com idéias comunistas. Mário, com seus postais, crê doutrinar Caburé para o Comunismo. Caburé parece ser doutrinado, mas o leitor sabe, de antemão, que Caburé é um vencedor, isto é, um homem bem-sucedido dentro dos valores capitalistas, cujo trabalho de sucesso é legalizar terras que foram indígenas.

Todos os personagens de Vila Vermelho são singulares e necessários para a narrativa, mas alguns me marcaram especialmente. Impossível esquecer a força da mãe de Caburé (a família de Caburé nunca aparece nomeada), mulher forte que guia a família enquanto o marido destrói toda a fortuna e que na miséria, como costureira, esforça-se por estudar um dos filhos, nosso narrador. Seu Giuseppe, o pai dos Russo, uma espécie de Dom Quixote anarquista e questionador, que tira os filhos da escola para dar a eles uma educação humanista e cujo destino me fez desatar em lágrimas. Tié e Taú, os grandes heróis de Vila Vermelho, os irmãos que saem para o Rio de Janeiro (com passagens financiadas pela turminha de amigos) para ingressarem na Marinha e que descobrem toda a crueldade e o engano da cidade grande.

Acompanhar a história de Vila Vermelho por aquelas 302 páginas é acompanhar a vida.  Não é sempre que encontramos um livro que pulsa. Ainda estou aqui, com a turma de meninos que se reunia para jogar bola e fazer planos, como se pudessem conduzir a vida. Não podem. Não puderam. A vida parece um organismo próprio que nos toma. Agora conheço um rio chamado Rio Vermelho.  Ainda estou aqui com os personagens que parecem tão reais que tenho certeza que existiram. É bonito quando um escritor consegue que acreditemos. 

“...não gostei de Isadora no primeiro contato: era bonita demais, sabida demais, segura demais. Era preciso desconfiar de mulher bonita, sabida e segura demais, mas aceitei o convite sem discutir, primeiro porque eu queria estar perto dela, estava vaidoso de ter sido escolhido por ela, segundo porque Mário tinha dito para eu participar da política estudantil. A chapa teve o apoio do irmão de Isadora, que vinha nos fins de semana para organizar e orientar a campanha. Era estudante de engenharia, no Rio, fazia parte da diretoria da UNE, tinha experiência em política estudantil. Foi ele, e não Isadora, que explicou o que a chapa adversária representava: tradição, família e propriedade, um movimento católico ultraconservador surgido em São Paulo. “Vocês ainda vão ouvir falar dessa desgraça reacionária”, disse ele – a outra chapa era a do “Onan Punho-de-Aço”. Isadora explicou o que era uma “desgraça reacionária”, e eu disse que não entendia a ira dela e do irmão contra a TFP – sigla da tal “desgraça reacionária” –, pois o movimento defendia justamente a tradição e a propriedade da família dela contra os comunistas. E ousei: “É uma contradição”. Ela disse que as contradições faziam parte do processo dialético, que eu ia entender melhor isso através da práxis. Me arrependi da ousadia porque, além de passar por ignorante, agora já eram duas palavras a mais que eu não conhecia: dialética e práxis...”
(p. 121 -122)

***
Vila Vermelho
Jeter Neves
Romance
Ed. Record

2013

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Da leitura de Pancho Villa não sabia esconder cavalos, de Adriana Brunstein



A vida não é o Cirque du Soleil – A verdade descarada de Adriana Brunstein)

Por Adriane Garcia


Quando criança, fui nestes circos que armam tendas em bairros de fins de mundo que mais parecem desertos povoados. Chão de terra, poeira vermelha, arquibancadas finas de tábuas que enchem as bundas dos visitantes de ferpas. Essa foi uma das primeiras associações que fiz quando, pela primeira vez, e isso já faz algum tempo, li as crônicas/contos de Adriana Brunstein. Depois vinha o dono do circo, senhoras e senhores, anunciando o grande espetáculo. Mágicos que nos deixavam ver as pontas dos lenços escondidos nas cartolas, malabaristas que deixavam pinos caírem, mulheres lindas na falta de mulheres lindas com suas meias-calças desfiadas, animais magros e desanimados, vestidos de roupas rotas e purpurinadas, globos da morte enfurecidos de fumaça e som, que só conseguiam nos intoxicar. Por fim, palhaços que caíam, palhaços que levavam tortas na cara, palhaços que diziam a senha errada e terminavam atirados aos leões. E ríamos, ríamos muito, pois a outra opção seria chorar.

Agora estamos diante deste Pancho Villa não sabia esconder cavalos. Não sabia. Não sabe. Adriana Brunstein não esconde nada e por isso rimos de seu Pancho Villa, porque ele expõe toda a tragédia dos planos que nunca, jamais dão certo e porque, ainda mais tragicamente, ele acha que desta vez, aquele cavalo atrás da árvore poderá passar despercebido e, quem sabe, ele, que depende disso, poderá ser feliz.

O que dizer dessa escritora? Eu, como leitora assídua de seus textos que sou? Digo que Brunstein traz ares que sinto novos e deliciosos na prosa brasileira contemporânea. Primeiramente, traz pontos de vista de personagens femininos que se situam entre a quarta e a quinta décadas da vida, quando a beleza física padronizada ou nunca existiu ou está em decadência, quando já se está sob efeito do período da menopausa ou na iminência dele. Quando poucas ilusões restam. Depois, traz homens que se debatem nos relacionamentos sob o prisma de uma sinceridade incomum a respeito do fracasso. Os personagens de Adriana Brunstein falam aquilo que só falamos quando não há ninguém ouvindo, são um verdadeiro desastre. Tudo isso com um humor infalível e uma linguagem que já podemos chamar de estilo.

Emocionamo-nos. No fundo sentimos que há mais que um choro guardado. Lendo-a, sabemos muito bem do que estamos rindo. Conhecemos bem essas quedas. Conhecemos sua denúncia, sua indiscreta confissão sobre coisas que pertencem a uma raça inteira. A queda do palhaço é universal.

Seus personagens são como os personagens dos circos de infância em bairros abandonados. Há uma profunda compaixão nisso. E o que é o palhaço senão aquele que se empresta para cair, a despeito dos próprios tombos, para que possamos rir um pouco?



Ela tava lá tentando tirar a calcinha da bunda, perguntei se queria ajuda, levei uma cotovelada no olho, entrei no ônibus e alguém lá fora gritou “lincha” e alguém lá dentro gritou “bicha é você”, depois ficou todo mundo quieto pra ouvir o “olha o kit kat da nestlé, ó, é um por dois e dois por cinco, ó”, uma velha comprou, disse que tava vencido e o rapaz respondeu que “pode ver que tá no prazo, ó”, mas ela cuspiu tudo e nem viu que a janela tava fechada, e uma criança exclamou “que merda” e tomou um tapa na boca e olhou solidária pro meu olho roxo, eu respondi que daqui pra frente tudo piora e o ônibus freou com tudo e voou criança, velha, caixa cheia de kit kat da nestlé, ó, parecia reality show de suruba onde ninguém goza, nem fingir consegue, uma moça perdeu um brinco e saiu engatinhando até que ouviu barulho de zíper e gritou “sai fora, tarado”, mas não era, era alguém abrindo a bolsa pra ver se tinha quebrado o frasco de perfume, tinha, empesteou tudo e um meio bêbado acordou e pediu mais uma dose daquilo ali, enfiaram um kit kat em sua boca, ó, e ele chupou com o que o fulano que ajeitava os óculos chamou de expertise, para a moça do brinco era tudo nojento demais e ela pediu pra descer e o motorista disse que não era parada e que a “cocota que esperasse”, a criança fez cara de quem queria saber o que era cocota mas ficou calada, acho que ninguém sabia e que ninguém quer saber mais nada porque já é foda descer com a vida no ponto certo, cacete, passei dois, desci e atravessei a rua para esperar a volta mas já era tarde demais pra qualquer coisa.”

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Pancho Villa não sabia esconder cavalos
Contos
Adriana Brunstein
Ed. Laranja Original
2017



sábado, 14 de outubro de 2017

A paixão segundo G.H. – de Clarice Lispector



Por Adriane Garcia

Assombro e pavor. Iluminação e transcendência. A beleza de não se querer mais a beleza. O terror e a epifania. O erotismo na sua forma mais primordial: a morte. A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector é das obras mais geniais que se pode ler em literatura.

A busca de sua protagonista é a busca da verdade, mas nem ela sabe exatamente o que busca, já que está no espaço do desconhecido; a busca da despersonalização, a busca do ser antes do humano, o inumano (não o desumano), aquele que pode chegar mais perto de Deus porque esteve no inferno. Busca terrível, percurso que, de início, parecerá ao leitor acontecer durante uma manhã, em um quarto de empregada, mas que acontece durante milênios, por funda ancestralidade. Iluminação que parecerá ter sido desencadeada por uma barata, pelo ser asqueroso de uma barata, mas que muito antes fora desencadeado pela procura do intervalo, pelo entre o número um e o número dois, pelo intervalo entre uma nota musical e outra, pelo intervalo que é o silêncio. Na inexpressividade existe um tesouro, no tédio, na monotonia. A paixão segundo GH é feita de inversões mirabolantes que fazem todo sentido, sem querer apelar apenas para a inteligência. Na inexpressividade pode existir o amor. Que espécie de amor? O amor que se descobre depois da transgressão, depois de ultrapassada a lei.

Um livro demoníaco, divino, revelador, onde cada parágrafo é uma obra de arte. Clarice Lispector pura, a bruxa capaz de atravessar a linha que separa a “normalidade” da “loucura” e voltar para nos contar.

Absolutamente imperdível. Agradaria Bataille, agradaria Nietzsche.
  
“O medo grande me aprofundava toda. Voltada para dentro de mim, como um cego ausculta a própria atenção, pela primeira vez eu me sentia toda incumbida por um instinto. E estremeci de extremo gozo como se enfim eu estivesse atentando à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente doce – como se enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu. Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar.
Toda uma vida de atenção – há quinze séculos eu não lutava, há quinze séculos eu não matava, há quinze séculos eu não morria – toda uma vida de atenção acuada reunia-se agora em mim e batia como um sino mudo cujas vibrações eu não precisava ouvir, eu as reconhecia. Como se pela primeira vez enfim eu estivesse ao nível da Natureza.”  (p. 52)

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A paixão segundo GH
Clarice Lispector         
Romance
2014
Rocco