Por Adriane Garcia
Romance lindíssimo, recheado de lirismo
e reflexão. Em O último voo do flamingo, Mia Couto narra um Moçambique pós-guerra
civil, em que os caminhos estão minados e pessoas explodem nas ruas. O mistério se dá quando essas explosões começam a acontecer com os soldados da ONU, de
maneira inusitada: os soldados explodem sem deixar restos, exceto os órgãos
genitais e o boné do uniforme.
Em busca da explicação, um emissário
italiano, Massimo Risi, é enviado à Tizangara, cidade onde se passa a ação. Um
tradutor, morador local, lhe é indicado. No decorrer da história, vemos que o
narrador não é para traduzir as palavras, mas o mundo que Massimo não entende. E
é este tradutor que conta a história em primeira pessoa.
Das relações que surgem entre o
emissário italiano, o tradutor, Ana Deusqueira (a prostituta), Temporina (a
jovem amaldiçoada com cara de velha), o velho Sulplício, Zeca Andorinho (o
feiticeiro), o padre Muhando, o administrador Estêvão Jonas e outros, o fio
condutor se desenvolve para criticar o colonialismo, mas também a dependência pós-colonial,
os efeitos da dominação estrangeira e da guerra, a ganância e a corrupção das
autoridades locais, a traição aos anseios populares de justiça social feita por
aqueles que juraram defendê-la enquanto eram da guerrilha, o esquecimento da
ancestralidade.
Um romance cheio de nuances e
riquíssimo em imagens, em uma história que emociona e nos leva para um dos
solos da África. Entre a realidade e o maravilhoso, Mia Couto consegue o pacto
com o leitor de levá-lo a uma Tizangara mágica, em que feitiçaria e política se
encontram.
“O
senhor se cuide, Massimo Risi: a boca é grande e os olhos são pequenos. Ou como
se diz aqui: o burro come espinhos com a sua língua suave. É que isso aqui é
mais perigoso do que o senhor pensa. Perigoso por quê? O senhor vai descobrir
como o pato. Sim, como o pato que descobre a dureza das coisas só depois de
partir o bico.
É que
no meio de tudo há sangue, mortos a quem não cobriram o rosto. Esses mortos dormiram
no relento, impurificaram a noite. Para o senhor, com certeza, isso não traz
gravidade. Aqui não é a morte, mas os mortos que importam. Entende? Ainda vai
morrer mais gente, lhe asseguro. Não faça essa cara. Eu espero que a desgraça
lhe passe nas costas, a si que me parece um homem bom.
Fui
mandada para aqui pela Operação Produção. Quem se lembra disso? Atafulharam
camiões com putas, ladrões, gente honesta à mistura e mandaram para o mais
longe possível. Tudo de uma noite para o dia, sem aviso, sem despedida. Quando
se quer limpar uma nação, só se produzem sujidades.
Em
Tizangara até me receberam bem. Esta gente se afastava, como não querendo ser contaminada.
Contudo, não me maltrataram. No início eu me sentia como numa prisão, sem
grades, mas cercada por todo o lado. Eu estava como o prisioneiro que encontra
no carcereiro o único ser com quem trocar as humanidades. E pergunto: Por que
nos ensinaram essa merda de sermos humanos? Seria melhor sermos bichos, tudo
instinto. Podermos violar, morder, matar. Sem culpa, sem juízo, sem perdão. A desgraça
é esta: só uns poucos aprenderam a lição da humanidade.” (p. 177/178)
***
O
último voo do flamingo
Mia
Couto
Romance
Cia
das Letras
2005