Por Adriane Garcia
Não
comecei a ler o livro Não, de Bruna Mitrano (ed. Patuá, 2016) pelo
prefácio sobre poesia e política, feito pela poeta e estudiosa Nina
Rizzi, que é, por si só, uma aula. Sempre deixo por último os
prefácios, apresentações, orelhas. Confesso que também não foi o
texto escrito o primeiro que li, foram as imagens, as belíssimas e
contundentes ilustrações que Bruna Mitrano criou para Não. Das
imagens, você já pode ter uma ideia do que virá.
A
edição do livro não se trai, a capa é preta, a cor estigma da
negação em nosso país; negação de direitos básicos, de
políticas públicas, negação das ações de inserção
necessárias, quando o processo histórico se deu sobre expulsões,
exclusão, assassinato, escravidão, sempre em prol de uma classe
dominante branca, macha, insensível, racista, sem empatia e (serei
redundante) de péssimo caráter. As letras vermelhas, no advérbio
saltando no escuro, não deixam de remeter imediatamente à
violência.
Os
poemas de Bruna Mitrano trazem ao mundo audível (ainda que este
mundo seja minúsculo) o mundo mais que populoso dos que nada têm,
dos marginalizados, dos moradores pobres, brancos ou negros, das
periferias e das ruas, das crianças brasileiras abandonadas, das
mães abandonadas, das mulheres, vítimas constantes e fatais do
machismo. Com grande parte dos poemas orbitando em torno da temática
do aborto, Bruna acaba por retratar uma realidade acontecida e não o
sonho delirante dos que querem legislar o corpo dos outros, mais
especificamente das outras. Sem apologia a isto ou aquilo, Bruna
conta, Bruna descreve, Bruna faz sentir. Preto no branco.
Se
preto é, então, estigma, Bruna traz à luz também o fato conhecido
e quantas vezes combatido (pois a verdade transforma): o de que preto
é também a cor da resistência neste país. Resistência que começa
com quatro milhões e meio de pessoas sequestradas de seu continente
para compor um dos maiores êxodos forçados da história da
humanidade. É no Brasil que essa diáspora produzirá efeitos que o
Estado não foi (e não parece interessado) capaz de sanar. É também
no Brasil que essas pessoas se reinventaram, com a força de suas
culturas matrizes e a capacidade de absorver outras, sobrevivendo às
piores condições possíveis. Mas também não é uma apologia à
pobreza ou ao sofrimento o livro de Bruna. É um grito por justiça
social sem ser em nada panfletário. É poesia com lirismo, ritmo,
imagens, polissemia. É poesia que se recusa a ser somente poesia
bonita, é poesia com o pé no lugar onde se vive. Se uma das funções
da poesia é dar a ver, Bruna Mitrano a cumpre, retirando seu
interior e entorno da invisibilidade.
Ao
mesmo tempo em que no livro é forte a presença da problemática
social, a voz narradora é intimista, chama para um ponto de vista, é
subjetiva também, mostra a dor desta digestão que é, dentro, o
mundo de fora. Sexo, fome, solidão, precariedade do corpo,
degeneração da carne, asfixia diante do mundo, loucura e desejo são
as forças cotidianamente presentes na luta pela sobrevivência
exposta em Não.
Ao dar
voz a questões como aborto e machismo, Bruna soma à nossa
literatura contemporânea o ponto de vista das mulheres sobre o mundo
em que habitam e atuam, onde falam sobre seu próprio corpo e sobre o
modo como sentem as relações com o outro, o macho, inclusive.
Juntamente com tantas outras escritoras que hoje vem transformando a
literatura brasileira, cuja hegemonia masculina é inegável, Bruna
registra a existência real de mulheres, de dentro, da experiência
da opressão e do trauma.
É
preciso matar para se libertar. Eis uma frase perigosa que podemos
formular após ler Não. Uma frase metafórica ou literal. O que
mataremos? O que lutaremos para que viva? Bruna vem nos dizer das
escolhas que não nos são possíveis, quando nos tiram tudo, e faz
isso na contramão. Ao fazê-lo, ela escolhe, como se fosse possível.
E então passa a ser. Neste momento reencontramos Nina Rizzi: “ O
gesto poético já é, e desde sempre, político. A poesia é uma
insólita. Seu sentido se faz outro, reclama um outro e é arma
contra a barbárie. Bruna Mitrano não nos deixa esquecer a máxima
barthesiana que nos diz que a poesia é prática da sutileza num
mundo bárbaro; não nos deixa esquecer a máxima nietzschiana: se o
tempo é sombrio, a poeta pensa contra o seu tempo em nome do tempo
por vir.”
De
dentro da barbárie e de um corpo de mulher, no Brasil, ela faz
poesia.
“puta
que pari um bicho morto
risco
indócil na coxa
barulho
oco dos coágulos esbofeteando a água da privada
estilhaços
imagens
o
enquadramento impreciso
aparar
as arestas até triturar os ossos do rosto
as
unhas perfuram lentas a boca grande calada
é
preciso fugir pelas beiradas
sem
alarde.”
***
Não
Poesia
Bruna Mitrano
Editora Patuá
2016