sexta-feira, 31 de julho de 2020

Urubus, de Carla Bessa




 

Por Adriane Garcia

 

 

Urubus, de Carla Bessa, apresenta-se como um livro de contos; porém, situa-se naquele conjunto de obras literárias que mostra como são fluidas e transversais as fronteiras dos gêneros.

 

Nos dezoito contos do livro é possível identificar o mesmo narrador, ainda que haja narração em terceira e primeira pessoas do singular e um conto na terceira pessoa do plural. É que o narrador de Carla Bessa narra os fatos exteriores e, repentinamente, é puxado para o fluxo psicológico do personagem; uma voz reconhecível perpassando as histórias, o mesmo tom. O recurso funciona deliciosamente porque a leitora/o leitor fica com uma sensação indefinida de não saber se o narrador interrompeu ou foi interrompido por seu próprio personagem. Aquilo que seu personagem não sabe sobre si, seu narrador também parece não saber, ora conhecendo os fatos, ora tendo consciência deles apenas no momento em que o personagem toma a palavra. Toda essa movimentação narrativa de dentro e de fora oferece uma grande naturalidade e movimento ao que está sendo contado, enquanto contribuem para tornar menos pesado o que nos temas tratará de algumas de nossas maiores misérias.

 

O conflito central que Carla Bessa traz para Urubus é a miséria material. Não por acaso, a obra se inicia com o conto homônimo ao título do livro, em que o cenário é um lixão. Impossível ler o conto Urubus e não se remeter ao poema O bicho, de Manuel Bandeira. Mas se em O bicho, Bandeira flagra o que sabemos e fingimos esquecer, “O bicho, meu Deus, era um homem” – daí o susto, Carla Bessa nos aproxima ainda mais da cruel notícia: antes, o bicho era uma criança. Em Urubus os contos se desenvolvem a partir de conflitos individuais, mas subjaz o motor do conflito coletivo: a desigualdade econômico-social, principalmente nos centros urbanos.

 

Próximo ao realismo social, tão aflorado nos pós-guerras, a escolha por este viés denota a batalha perene em que se encontra o cenário de Carla Bessa. Urubus expõe a pobreza a que são relegados os trabalhadores brasileiros e suas famílias, ainda que nem todos os contos apontem diretamente para essa denúncia. E este é um grande mérito do livro: que as vidas se entrelacem a partir de algum lugar em que deixar uma criança comendo lixo afete a todos, instaurando um caos que se naturaliza, a ponto de não sabermos mais o que é causa e o que é consequência. A ave que remete à podridão, que come carne se decompondo, sobrevoa tanto a carcaça física das pessoas quanto a carcaça moral de um país. Temos a impressão de que até a infelicidade no casamento ou a solidão extrema em um asilo poderiam ter sido evitadas se tivéssemos dado condições de vida decentes para todos.

 

Se o caráter de escritora que se compromete com a transformação da sociedade, denunciando suas mazelas, faz com que exponha cruelmente a fome, a morte violenta, o assalto induzido pela pobreza, a perda da infância, a violação dos direitos trabalhistas, a imundície e a discriminação contra as minorias, os riscos do aborto ilegal para a mulher, o estigma sobre a relações homoafetivas, isso tudo é feito tão habilmente que não há detrimento da preocupação estética, em um texto que chega a ter uma musicalidade poética (como demonstra o trecho ao fim desta resenha), tampouco são deixadas de lado questões puramente existenciais – em tudo, a busca de algum amor. Ao adotar um tempo cíclico e não um tempo linear, Carla Bessa funde tema e forma e, como no planar dos urubus, movimenta o mundo que lemos (e vivemos) como quem nos diz que só há saída rompendo o círculo. Mas diz sem dizer. O narrador de Urubus não toma partido, apenas observa e se alimenta.

 

Com engenho na construção das frases, sem rebuscamento ou desperdício, Urubus nos leva para um texto ágil, que sabe aproveitar os sentidos. Aqui, um excerto do conto “Todo sábado todo domingo”:

 

Com olhos distantes vai tirar os pãezinhos de queijo do freezer, será que ele casou, que amou, que teve filhos e netos? Aparecida só sabia do seu fim, trágico, no meio de uma praça, um assalto bobo, bobo, não era para ter reagido, ele sempre foi esquentado. Parece que jogava damas com um amigo. Os pãezinhos congelados na mão, ela joga sobre a mesa, o frio e a morte assim à toa arrepiam Aparecida.”

 

Tanto o lixão quanto o urubu são realidades e são metáforas. No sistema de produção e consumo das coisas há falta e desperdício. O resultado de um sistema baseado em coisas é a coisificação do humano e dos outros seres que também habitam o planeta. Há, com isso, um problema ambiental: o país não resolve nem o problema do lixo, nem o problema da fome. Estudos especializados mostram que 6,9 milhões de toneladas de lixo sólido não são coletadas pelos serviços de limpeza pública e têm destino desconhecido. Do lixo que é coletado, quase metade é descartada de forma inadequada, cerca de 30 milhões de toneladas. Essa enorme quantidade é enviada a lixões que não têm sistemas para proteção do solo, das águas ou das comunidades no entorno (Dados do Plano Nacional de Resíduos Sólidos-2017). O resíduo, em muitos casos, acaba se transformando em alimento, transmitindo doenças.

 

No círculo inteligente e sagaz que Carla Bessa constrói em Urubus para reproduzir o círculo que percebe na realidade brasileira (e na vida, de forma holística), a proliferação dos lixões transmite também a infâmia. É um problema moral quando a fome cria o homem-chorume do conto Urubus. É um problema moral quando a família traz a avó idosa para casa (Todo sábado todo domingo), como uma agregada, sem jamais incluí-la, deixando claro que ela não faz parte daquele grupo, não permitindo (símbolo) que ela partilhe os mesmos objetos dos demais. É um problema ambiental, que afeta a todos, porque tudo está ligado nas nossas pequenas tragédias cotidianas. De maneira que Carla Bessa constrói uma narrativa de contos que coloca um dos pés no outro lado da estrada, a do romance. Porém, não faz isso para provar qualquer virtuosismo, mas porque encontrou a exata forma daquilo que, parecendo independente entre si, ganha contornos necessários para a visão do todo quando se junta. É o voo do urubu que, do alto, oferece-nos o panorama não da vida de uma mulher, um homem, uma criança, mas de uma humanidade; que, rasante, nos coloca tão próximos dos personagens que podemos lhes sentir a respiração e o medo e que, pousado, conta-nos que cheiro temos.

 

“Zezinho liberto pisa naquele peito, nos braços, o homem afunda afunda. Zezinho desacorrenta a raiva o medo, pula em cima do esfarrapado, dá chute na cara suja da criatura. A cabeça vira bola, rola de um lado para o outro, resfolegando colada na sola do menino. Por fim o corpo pende para o lado, descamba para dentro de um desnível uma vala, Zezinho não tinha visto, quase vai junto.

 

De repente, do rabo do olho, ele advinha o pai acenando, ô, vem cá moleque, tô te chamando! Zezinho plantado-estatelado, não se mexe nem a cabeça vira. Agora o olhar pregado no deslumbre do homem escorrendo para dentro da terra, esfarelando-se, liquefazendo. Zezinho fica com medo, será que matei o sujeito. Nisso, sente uma mão embrutecida um tentáculo sobre o ombrinho pontudo de tão magro, um susto da porra, o menino quase desmaia. Mas era só o pai, a boca anunciando, esse aí, dizem que ele vive aqui. É o homem-chorume, o fantasma, o anjo do lixão. Não mexe com ele, não. Aí Zezinho aprende que o ser humano no lixo falta pouco para ser lixo humano. Zezinho compreende que aquele é ele dali a alguns anos.”

 

(excerto do conto Urubus, p. 13)

 

 

***

Urubus

Carla Bessa

Contos

Ed. Confraria do Vento

2019