Por
Adriane Garcia
Urubus, de Carla
Bessa, apresenta-se como um livro de contos; porém, situa-se naquele
conjunto de obras literárias que mostra como são fluidas e transversais as
fronteiras dos gêneros.
Nos
dezoito contos do livro é possível identificar o mesmo narrador, ainda que haja
narração em terceira e primeira pessoas do singular e um conto na terceira
pessoa do plural. É que o narrador de Carla Bessa narra os fatos
exteriores e, repentinamente, é puxado para o fluxo psicológico do personagem;
uma voz reconhecível perpassando as histórias, o mesmo tom. O recurso funciona
deliciosamente porque a leitora/o leitor fica com uma sensação indefinida de
não saber se o narrador interrompeu ou foi interrompido por seu próprio
personagem. Aquilo que seu personagem não sabe sobre si, seu narrador também
parece não saber, ora conhecendo os fatos, ora tendo consciência deles apenas
no momento em que o personagem toma a palavra. Toda essa movimentação narrativa
de dentro e de fora oferece uma grande naturalidade e movimento ao que está
sendo contado, enquanto contribuem para tornar menos pesado o que nos temas
tratará de algumas de nossas maiores misérias.
O
conflito central que Carla Bessa traz para Urubus é a miséria
material. Não por acaso, a obra se inicia com o conto homônimo ao título do
livro, em que o cenário é um lixão. Impossível ler o conto Urubus e não
se remeter ao poema O bicho, de Manuel Bandeira. Mas se em O
bicho, Bandeira flagra o que sabemos e fingimos esquecer, “O
bicho, meu Deus, era um homem” – daí o susto, Carla Bessa nos
aproxima ainda mais da cruel notícia: antes, o bicho era uma criança. Em Urubus
os contos se desenvolvem a partir de conflitos individuais, mas subjaz o motor
do conflito coletivo: a desigualdade econômico-social, principalmente nos
centros urbanos.
Próximo
ao realismo social, tão aflorado nos pós-guerras, a escolha por este viés denota
a batalha perene em que se encontra o cenário de Carla Bessa. Urubus
expõe a pobreza a que são relegados os trabalhadores brasileiros e suas
famílias, ainda que nem todos os contos apontem diretamente para essa denúncia.
E este é um grande mérito do livro: que as vidas se entrelacem a partir de
algum lugar em que deixar uma criança comendo lixo afete a todos, instaurando
um caos que se naturaliza, a ponto de não sabermos mais o que é causa e o que é
consequência. A ave que remete à podridão, que come carne se decompondo,
sobrevoa tanto a carcaça física das pessoas quanto a carcaça moral de um país.
Temos a impressão de que até a infelicidade no casamento ou a solidão extrema
em um asilo poderiam ter sido evitadas se tivéssemos dado condições de vida
decentes para todos.
Se o
caráter de escritora que se compromete com a transformação da sociedade, denunciando
suas mazelas, faz com que exponha cruelmente a fome, a morte violenta, o
assalto induzido pela pobreza, a perda da infância, a violação dos direitos
trabalhistas, a imundície e a discriminação contra as minorias, os riscos do
aborto ilegal para a mulher, o estigma sobre a relações homoafetivas, isso tudo
é feito tão habilmente que não há detrimento da preocupação estética, em um
texto que chega a ter uma musicalidade poética (como demonstra o trecho ao fim
desta resenha), tampouco são deixadas de lado questões puramente existenciais –
em tudo, a busca de algum amor. Ao adotar um tempo cíclico e não um tempo
linear, Carla Bessa funde tema e forma e, como no planar dos urubus,
movimenta o mundo que lemos (e vivemos) como quem nos diz que só há saída
rompendo o círculo. Mas diz sem dizer. O narrador de Urubus não toma
partido, apenas observa e se alimenta.
Com engenho
na construção das frases, sem rebuscamento ou desperdício, Urubus nos
leva para um texto ágil, que sabe aproveitar os sentidos. Aqui, um excerto do
conto “Todo sábado todo domingo”:
“Com
olhos distantes vai tirar os pãezinhos de queijo do freezer, será que ele
casou, que amou, que teve filhos e netos? Aparecida só sabia do seu fim,
trágico, no meio de uma praça, um assalto bobo, bobo, não era para ter reagido,
ele sempre foi esquentado. Parece que jogava damas com um amigo. Os pãezinhos
congelados na mão, ela joga sobre a mesa, o frio e a morte assim à toa arrepiam
Aparecida.”
Tanto o
lixão quanto o urubu são realidades e são metáforas. No sistema de produção e
consumo das coisas há falta e desperdício. O resultado de um sistema baseado em
coisas é a coisificação do humano e dos outros seres que também habitam o
planeta. Há, com isso, um problema ambiental: o país não resolve nem o problema
do lixo, nem o problema da fome. Estudos especializados mostram que 6,9 milhões
de toneladas de lixo sólido não são coletadas pelos serviços de limpeza pública
e têm destino desconhecido. Do lixo que é coletado, quase metade é descartada
de forma inadequada, cerca de 30 milhões de toneladas. Essa enorme quantidade é
enviada a lixões que não têm sistemas para proteção do solo, das águas ou das
comunidades no entorno (Dados do Plano Nacional de Resíduos Sólidos-2017).
O resíduo, em muitos casos, acaba se transformando em alimento, transmitindo
doenças.
No
círculo inteligente e sagaz que Carla Bessa constrói em Urubus
para reproduzir o círculo que percebe na realidade brasileira (e na vida, de
forma holística), a proliferação dos lixões transmite também a infâmia. É um
problema moral quando a fome cria o homem-chorume do conto Urubus.
É um problema moral quando a família traz a avó idosa para casa (Todo sábado
todo domingo), como uma agregada, sem jamais incluí-la, deixando claro que
ela não faz parte daquele grupo, não permitindo (símbolo) que ela partilhe os
mesmos objetos dos demais. É um problema ambiental, que afeta a todos, porque
tudo está ligado nas nossas pequenas tragédias cotidianas. De maneira que Carla
Bessa constrói uma narrativa de contos que coloca um dos pés no outro lado
da estrada, a do romance. Porém, não faz isso para provar qualquer virtuosismo,
mas porque encontrou a exata forma daquilo que, parecendo independente entre
si, ganha contornos necessários para a visão do todo quando se junta. É o voo
do urubu que, do alto, oferece-nos o panorama não da vida de uma mulher, um
homem, uma criança, mas de uma humanidade; que, rasante, nos coloca tão
próximos dos personagens que podemos lhes sentir a respiração e o medo e que,
pousado, conta-nos que cheiro temos.
“Zezinho
liberto pisa naquele peito, nos braços, o homem afunda afunda. Zezinho
desacorrenta a raiva o medo, pula em cima do esfarrapado, dá chute na cara suja
da criatura. A cabeça vira bola, rola de um lado para o outro, resfolegando
colada na sola do menino. Por fim o corpo pende para o lado, descamba para
dentro de um desnível uma vala, Zezinho não tinha visto, quase vai junto.
De
repente, do rabo do olho, ele advinha o pai acenando, ô, vem cá moleque, tô te
chamando! Zezinho plantado-estatelado, não se mexe nem a cabeça vira. Agora o
olhar pregado no deslumbre do homem escorrendo para dentro da terra,
esfarelando-se, liquefazendo. Zezinho fica com medo, será que matei o sujeito.
Nisso, sente uma mão embrutecida um tentáculo sobre o ombrinho pontudo de tão
magro, um susto da porra, o menino quase desmaia. Mas era só o pai, a boca
anunciando, esse aí, dizem que ele vive aqui. É o homem-chorume, o fantasma, o
anjo do lixão. Não mexe com ele, não. Aí Zezinho aprende que o ser humano no
lixo falta pouco para ser lixo humano. Zezinho compreende que aquele é ele dali
a alguns anos.”
(excerto
do conto Urubus, p. 13)
***
Urubus
Carla
Bessa
Contos
Ed.
Confraria do Vento
2019