Livro
essencial, Encarceramento em massa (ed. Pólen), de Juliana Borges,
faz parte da coleção Feminismos plurais, coordenada por Djamila Ribeiro.
O livro
se apresenta em três partes: “Breve histórico: Punição e aprisionamento.
Qual ideologia?”, “Brasil: Ideologia racista e sistema de justiça criminal”,
“Gênero, raça e classe e guerra às drogas: Estruturas de manutenção das
desigualdades”, além de trazer uma excelente lista de referências bibliográficas
e dados oficiais sobre a situação carcerária no país.
O Brasil
possui a terceira maior população carcerária do mundo, ficando apenas atrás dos
EUA e da China. Desta população, dois terços, aproximadamente, são de pessoas
negras ou seja, não é uma população multicultural. São 726.712 pessoas presas
no país, muitas delas sem julgamento, outras tantas, já tendo cumprido pena. A
maioria presa em decorrência da criminalização das drogas. Os dados geracionais
ainda levam a outro alerta: “55% da população prisional é composta por
jovens, ao passo que essa categoria representa 21,5% da população brasileira.
Caso mantenhamos esse ritmo, em 2075, uma em cada 10 pessoas estará em privação de liberdade no Brasil.”
A
população feminina encarcerada (pasmem) cresceu 567,4% nos últimos anos, muitas
delas mães de família, envolvidas no tráfico por questões de vulnerabilidade
social, que poderiam ter suas penas aplicadas de outras formas que não o
encarceramento, se vamos continuar adotando a nossa punitivista e genocida Lei
Antidrogas. Entre as mulheres encarceradas, 50% tem entre 18 e 29 anos e 67%
são negras. “Há, portanto, um alarmante dado que aponta para a juventude
negra como foco da ação genocida do Estado Brasileiro.”
O
ordenamento jurídico brasileiro prevê a pena de privação da liberdade como foco
punitivo, porém, essa pena vem de modo concomitante, muitas vezes, com a
tortura e outros direitos violados.
Juliana
Borges chama nossa atenção para revermos conceitos tão
internalizados. Uma certa obsessão em nosso imaginário que só consegue conceber
a prisão como solução para qualquer problema. “Nosso pensamento é
condicionado a pensar as prisões como algo inevitável para quaisquer
transgressões convencionadas socialmente.”
A autora nos mostra o caminho de continuidade entre escravidão e
presídio. No corpo negro, quando o suplício e a pena de morte eram os castigos
aplicados, pouco valor tinham as prisões (como aparato oficial do Estado). A
partir das ideias europeias de privação da liberdade (uma pena mais “civilizada”),
os presídios ganham importância no sistema penal. No Brasil, apenas se deslocou
a população que antes recebia os suplícios no corpo para dentro dos presídios,
sendo que as condições degradantes destes aparelhos não permitem dizer que não
se somou a essa pena, a pena anterior de castigos físicos e até (Carandiru nos
exemplifica) a pena de morte.
O
capitalismo comete o equívoco proposital de colocar a propriedade e a posse
acima do ser, dos direitos e da cidadania. A consequência é profunda em um país
onde a maioria é composta por aqueles que não têm qualquer propriedade e que
estão na base da hierarquia racial, pilar de nossa sociedade. A desigualdade
social segue os efeitos da escravidão no país, onde a moralidade cristã
primeiro disse que o negro não tinha alma, depois se contentou com parcas
caridades e o encarceramento em massa. Não à toa “a própria palavra
penitenciário traz em sua raiz a penitência, sendo a prisão vista também como
um espaço de expiação de pecados, moral cristã baseada num comportamento
passivo e de aceitação” (Carla Akotirene). A ligação entre Estado,
religião e moral para a readequação dos corpos é ininterrupta no Brasil, para
isso, a história brasileira conta não só com o tronco, o presídio, mas também
com os hospícios e, atualmente, o trabalho de igrejas neopentecostais na
arregimentação de fiéis dentro das cadeias.
A autora
ainda nos enriquece com as reflexões acerca da força de trabalho dos milhões de
pobres brasileiros, a maioria vinda de um processo de usurpação de consciência,
em que o corpo foi objetificado a ponto de não se sentir detentor de direitos. “Nesse
sentido, posicionar-se como classe trabalhadora no pós-abolição é uma
experiência problemática, porque posicionar-se em uma categoria que busca
direitos significa, primeiro, entender-se como sujeito no mundo, algo que foi
perversamente negado no sistema escravista.” Lembrando que a vinda maciça
de imigrantes brancos europeus para o papel de “trabalhador qualificado”
coincidiu com a Lei de Vadiagem nas cidades. Às trabalhadoras e trabalhadores
negros restaram os empregos mais precários e a cadeia.
Do ponto
de vista imagético, o encarceramento da população negra e sua constante
presença no noticiário policial forjam um imaginário que falseia a realidade,
falseia sobre os crimes que não são punidos, falseia sobre os criminosos que
jamais são presos, falseia sobre as condições históricas e sociais em que as
prisões são realizadas, falseia sobre o caráter daqueles que possuem mais ou
menos melanina em seu corpo, falseia, inclusive, sobre os nossos conceitos do
que é crime e do que não é. Enquanto isso, parte da sociedade e das autoridades
brasileiras deseja a redução da maioridade penal, deseja que o número de presos
e presídios aumentem ainda mais, que a população carcerária que se inicia aos
18 anos também inclua os de 16 e 17 anos. Há um número assustador de pessoas
presas por portar alguns gramas de cocaína, enquanto helicópteros com quase
meia tonelada de pasta base desta mesma substância sobrevoam os condomínios
fechados. Projetos de privatização do sistema carcerário, além de trabalho
compulsório e barato para os capitalistas acenam. O encarceramento em massa no
Brasil diz muito mais do Brasil do que de quem está encarcerado.
O músico Marcelo
Yuca acertou em cheio quando disse que “Todo camburão tem um pouco de
navio negreiro”.
Juliana
Borges nos convida a trabalhar na construção de outros conceitos e soluções,
interseccionais, antirracistas, antissexistas,
antipunitivistas e de abolicionismo penal.
“Mas
por que, então, moldar e homogeneizar a conduta humana? Por que buscar
controlar sentimentos e determinar como eles podem ou devem ser expressos?
Obviamente que não estamos aqui defendendo assassinatos e estupros etc. Nossa
questão é o quanto uma sociedade punitivista e absolutamente controlada e
controladora vai construindo cada vez mais mecanismos de vigilância e
influência de determinação na vida de seus cidadãos, ao passo que toda e
qualquer ação de pouca consequência definitiva na vida de outrem se torne algo
delituoso e, até mesmo, hediondo, como é o caso da política de drogas? Por que
o fato de considerar que um indivíduo não está, supostamente, sendo útil à
sociedade garante argumento para intervenções e criminalização desse cidadão?
Quem e onde é definido o parâmetro de utilidade social? E com quais propósitos?
As perguntas devem sempre buscar, na verdade, quais são as ideologias que
estruturam uma série de ações, condutas e ordenamentos sociais.
E no
Brasil? Como esse processo foi inserido em um contexto totalmente diferente do
europeu, operado pela lógica colonialista e tendo na escravidão, baseada na
hierarquização racial, um eixo fundamental da exploração?” (p. 49)
***
Encarceramento
em massa
Juliana Borges
Ed. Pólen
2019