Por Adriane Garcia
Já na orelha de seu
livro, Alberto Lins Caldas nos escreve: “sem violência política não há poema,
só poesia, só crônica, só relato da latrina do eu, esse pobre eu q todos sabem,
todos reconhecem, todos gostam e entendem – essa coisinha q os poderes e o
poder adora porq podem dominar, amedrontar, inverter, perverter, redirecionar e
por “nas salas de aula, das salas de jantar e nos quartos”. o poema não é coisa
de poeta mas de libertino.”
E eis que pelas cento e
cinquenta e quatro páginas é essa fidelidade ao pressuposto acima que
reconhecemos. O poema de Alberto Lins Caldas está fazendo algum caminho que não
o usual, que não a estrada sinalizada e tão batida; seu poema despe-se do eu,
de qualquer confessionalismo, para estender-se a uma história maior. É
novamente a epopeia, milênios depois, que é retomada por Alberto Lins Caldas. E
se Homero, ou as vozes que se fizeram de Homero, cantou os grandes feitos do
homem e enalteceu as nobres virtudes ligadas à guerra, à vingança, à coragem e
à ação, o autor de A perversa migração das baleias azuis vem dar-nos o final da
história, agora, quando o resultado, escrito em seus versos, entrega-nos o
nosso homem reconhecível, raquítico, reduzido, de cujos instintos só sobraram
os piores: a humanidade que somos. Nossa guerra não passa de covardia, nossa
vingança é substituída pelo medo e pela preguiça, nossa coragem nos faz valer
menos do que valem os ratos e nossa ação – quando acontece – é na esperança de
poder oprimir, jamais libertar.
Fosse uma pintura, os
personagens de A perversa migração das baleias azuis seriam telas bizarras de
Arcimboldo, o maneirista pervertido, em que todas as figuras se formariam por
adição de comida, pois disso é feita a espiritualidade do homem em Alberto Lins
Caldas, o predomínio da gula, o seu aspecto glutão que, na verdade, significa
todo o consumismo desenfreado e a destruição dos ecossistemas. Neste sentido,
não um Arcimboldo da integração com os elementais, mas ao contrário, um
Arcimboldo da destruição em massa e, por que não?, lentamente.
O mais interessante é
notar em Lins a sua proposital citação – seja explícita, seja implicitamente –
de grandes obras, autores e personagens da literatura, incluindo-se a Bíblia e
as fábulas de Esopo e La Fontaine. Durante toda a leitura somos colocados
diante do grandioso, subvertido, para – ao mesmo tempo, e por antagonismo –
sermos bombardeados com retratos contínuos de nossa pequenez e avareza. Isso,
obviamente, aumenta o efeito de nossa percepção. É a tragédia grega, mais
especificamente em Sófocles, dizendo-nos “não fugirás ao seu destino”, mas é a
tragédia grega desvendada por Lins, cujo tom nietzschiano também é inequívoco:
não há nada fora de ti.
● hoje so sei q é preciso
pagar ●
● as contas q entopem a
vida ●
● so fazemos isso agora
●
● sobre essas viagens ●
● não digo nada a
ninguém ●
●nem como a coisa
terminou ●
● o velho capitao inda
dorme ●
● onde escondemos o
corpo ●
● inda não sabe q ta
morto ●
● agora é a dor nessa
perna ●
● essa coceira no rabo
as tosses ●
● sabendo q deus
castiga ●
Neste sentido,
impossível não pensar que A perversa migração das baleias azuis foge de toda
metafísica, encontra-se com a fenomenologia, ou seja, Lins nos relembra que a
verdade é provisória e informada pelos sentidos, de acordo com a experiência de
cada pessoa; porém, não é uma verdade confortável entre pastores e ovelhas. Num
ritmo impecável, de canção, em poemas narrativos, Lins discorre sobre o homem civilizado
– no pior sentido – que já inventou verdades suficientes para não questionar
mais nada. O homem de A perversa migração das baleias azuis é um ser
anestesiado. E é do poeta o último esforço para fazer perguntas sem muitas
esperanças de resposta, como neste poema, Jonas, composto de 5 partes, em que
aqui transcrevo as duas primeiras:
● jonas ●
● ? como é a baleia por
dentro ●
● a baleia viva ●
● tão vasto aquele
abismo ●
● nela ali adentro ●
● jonas ●
● ? tem musica ●
● ? coisas vivas
vivendo ali ●
● ? ha a respiração das
ondas ●
● de todas essas ondas
●
● q podem ser o mar ●
● ? ha o mar jonas ●
● ou so a baleia ●
● a baleia sem o mar ●
● jonas ●
2
● jonas ●
● ? como são as noites
●
● as noites da baleia ●
● ? ou não são noites ●
● jonas ●
● aquilo dentro da
baleia ●
●? Ou a baleia é deus ●
● torcido de mar e
baleia ●
● travestido de dor ●
● porq a baleia jonas ●
● vc sabe e bem sabe ●
● é dobra de carne e
dor ●
● se não sabia jonas ●
● saiba agora ●
● pra sempre ●
● porq deve haver ●
● depois da tormenta ●
● depois das viagens ●
● das viagens assim ●
● jonas ●
● como essa na baleia ●
● a hora do sono da
razão ●
● porq a baleia jonas ●
● sem isso não sera ●
● jamais a baleia ●
● a baleia mesmo ●
● nem deus sera deus ●
● nem jonas sera jonas
●
● os dois na baleia ●
● como as ondas jonas ●
● as ondas do mar ●
● as ondas as ondas ●
● as ondas e a baleia
jonas ●
Um livro de um mestre.
Não menos. Questionador já na própria linguagem, A perversa migração das
baleias azuis é sobre nosso corpo, nossa casa, nossa rua, nosso país, nosso
mundo. É uma poesia-antena, pré-apocalíptica (mas o apocalipse já houve e não
foi percebido), em que a religião também foi a arma da nossa derrocada. É o
poema da falta de sentido, da desistência pela busca do sentido, de um tempo
onde a tecnologia suplantou toda filosofia. Ao mesmo tempo, é, em si, uma
crença na beleza, pois, de verdade, nenhum poeta que escrevesse esses versos,
estaria livre de crer nela.
A perversa migração das
baleias azuis
Alberto Lins Caldas
Editora Ibis Libris
2015