terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O alumbramento na poesia de Victor Paes - O Óbvio dos Sábios, por Adriane Garcia






    Adentro um templo. É preciso. Há livros que não podemos ler de qualquer jeito, nem em qualquer lugar, temos que tirar os sapatos para pisar o tapete, depois o chão. E temos que sorvê-los como sorvemos demoradamente uma xícara de chá. Um chá de nuances, um chá de aguçar percepções.

    Da primeira vez que peguei este livro, eu não estava pronta. E ele, o livro, objeto mágico (os livros são objetos mágicos de vontade própria) não se entregou a mim. Ele não me deu seu significado. Ele me disse: aquieta-te e depois volta. Eu aguardei minhas férias e assim o fiz. E quando voltei, descalça, ele me disse: Agora podes.

    Uma arma na capa. Uma arma enrolada em faixas de gaze, um coldre para enfermos, uma arma obstruída para ser carregada, mas com destaque para o gatilho; uma arma para desuso, porém, com capacidade para atirar.

    Abro. E o que vejo é iluminação. Percorro não só os versos, percorro mais, percorro os espaços vazios da página, muitos. Victor Paes caminha pelo silêncio, é no silêncio que escreve, é no silêncio que quer ser lido.


respirar é inventar o vento
mastigar é revelar a língua
cantar é cantar o silêncio



1


(uma garça na avenida
levanta voo
e esboça um rio)


pinçar do furacão uma linha
e desenhar um chão na terra


rir
do outro lado do curso do rio


falar por línguas alheias
e chorar de cansaço ao fim do dia


___


na face oculta do crânio
reorientar o horizonte
concavar-se


pois recolocado à cabeça
(amargo o que foi cristalino)
o olho é mais que um grito do rosto



    Não tenho como não me lembrar de Auden, W. H. Auden, e a palestra dada em 1956 na sua aula inaugural da Universidade de Oxford (Fazer, Saber e Julgar, tradução de Ângela Melin, editora Noa Noa):

"Um poema é um rito. Na poesia, o rito é verbal."

" Mas é dos encontros sagrados da imaginação do poeta que desperta o impulso para escrever poemas."

"Para que possa escrever um poema genuíno, o poeta tem de sofrer o encontro..."


    Victor Paes se encontra com as coisas, joga sobre elas uma luz e as refaz, diz-nos de imagens invertidas, assusta-nos com declarações:


"o princípio do gato é seu rabo"


"um olho
abre uma fenda na luz"


"toda montanha contém uma caixa"


"um corpo começa onde outro começa
distração de pertencimentos"


    É tudo óbvio, se estamos em silêncio. Dizemos: sim. É o óbvio dos sábios. E os sábios não dizem nada de novo. Apenas nos lembram de acessar repositórios essenciais e antigos, guardados de nosso interior, de nossa ancestralidade. Poesia.


1

ser
sobra 
da ambiguidade das estrelas



2

náufrago (da seleção natural do mar)

precioso bem guardar
seus pesadelos...



1

no fim da asa da mariposa
(em seu migrar último, de bilhete a lâmpada)
o nome da lagarta que foi



2

toda assinatura é um suspiro de agonia


    
    Termino a leitura emocionada e grata. Uma inesquecível xícara de chá no meio do caos. Olho através de minha janela e tento, agora que ele me disse, "coar o céu de nuvens falsas". 

   Paul Valéry chega e me relembra: "o poder do verso é consequência de uma harmonia indefinível entre o que ele diz e o que ele é. Indefinível é essencial à definição".

    Fecho o livro (não sem saudades). Fecho o portal. Ganhei mais uma dimensão.


Adriane Garcia




VICTOR PAES nasceu no Rio de Janeiro em 1978. Editor, professor, ator e escritor, publicou os livros de contos Deus ex machina (2011) e Mas para todos os efeitos nada disso aconteceu (2010). Participou de diversas coletâneas, entre elas, Minigeschichten aus Brasilien (2013), de contos brasileiros, publicada na Alemanha, e Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro (2013). O óbvio dos sábios é seu primeiro livro de poesia, publicado em 2007 e reeditado em 2015 (Confraria do Vento)






terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Amor Expresso, de Adriana Aneli



A vida é a pausa para o café

por Adriane Garcia


"Passou a vida aceitando. Por favor e obrigada. Sem escapatória não fez faculdade, não trabalhou fora, não usou calça comprida, não casou com quem queria. Lustrou o piso da mesma casa por 50 anos e criou filhos, ensinou receitas às noras, festejou netos. Aos 70 anos cometeu sua primeira rebeldia: livrou-se do coador de pano e comprou uma cafeteira de extração francesa... cafeinada e muito sexy."


    Voltei do lançamento de Só, com peixes, em São Paulo, com um livro vermelho e preto, encadernação artesanal da Scenarium, com fita de cetim, que me foi entregue em mãos, pela própria Adriana Aneli, a autora. Na capa, habilmente desenhada, com a delicadeza de traços de arabescos, pela artista plástica Cristina Arruda, uma xícara e a fumaça se evolando. Dentro do livro, o trabalho artístico das ilustrações, aqueles desenhos onde a liberdade diz "eu participo" são a outra delícia, os mimos que acompanham os cafés. 

    Amor expresso. Sim, expresso em cinquenta minicontos que nos surpreendem a cada página. Li sem querer parar. A linguagem calculada para ser contida, e suficiente para mover o leitor. Água na temperatura certa. Medida exata de pó.

    A princípio, surpreendi-me com o sucesso de uma difícil empreitada: conseguir alumbramento contínuo de algo tão cotidiano, banal: café. Pois não é que consegue? 

    Nos contos de Aneli o café é transformado em elemento simbólico de humanização, sai da coisificação e entra no terreno dos afetos. E nem sempre é com açúcar, e nem sempre é amargo, e nem sempre é certo que tomaremos outra xícara de café. Elemento básico da companhia ou da solidão, aroma capaz de vencer até a vontade da morte ou mesmo de servir como objeto de libertação. Do casal que se uniu na padaria, ao que se separou e discutiu a propriedade da cafeteira elétrica; do homem que se salvou da morte porque se deixou distrair por um hábito ao juiz que oferece café ao réu; do empresário que vê pela primeira vez seu semelhante ao cidadão que mal tem dinheiro para comprar um pingado. O café quentinho, lembrança de conforto. O café frio daquele dia, difícil de descer. Já a literatura de Aneli, não. Comove, entristece, alegra, mostra, recorda. Leva-nos lá onde estão seus personagens sem nome: ele, ela. Conhecemos todos. Já tomamos, certamente, algum destes cafés.

    "Ainda lutava. Secretamente, porque ao redor ninguém mais acreditava. Por oito anos em coma ouviu passos espaçarem, choros se tornarem raros.
Naquele torpor, ela entrava. Pontualmente. Apoiava a caneca de café coado na mesinha ao lado de sua cabeça e ia bebericando, enquanto procedia à minuciosa limpeza do corpo inerte.
E por isso ele ainda lutava. Secretamente."

    Um livro que é um presente para os que amam literatura, para os que se alegram quando algum de nós contribui com mais beleza e reflexão nesse mundo e para os que sabem que é preciso agradecer quando nos oferecem a gentileza de um café. 


Amor Expresso, Adriana Aneli, editora Scenarium, 2015. Ilustrações: Cristina Arruda.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Patos selvagens, de Samuel Medina




"Por que contar histórias, Samuel?

Antes de tudo, para viver melhor."

Simples assim, O Samuel Medina, que é uma pessoa simples, responde a uma entrevista para a Editora Aletria. Do Samuel eu li o livro  Patos Selvagens, um conto de fadas. Um conto de fadas inventado por ele, uma história de amor, maldição e morte, luta e esperança, capaz de prender a atenção na leitura do início ao fim. Minha filha de 11 anos também leu, E tanto gostou.

Eu, do meu lado, enquanto viajava com Deon, um jovem lenhador e acompanhava primeiramente sua solidão e depois sua angústia . Que não sabia se a maldição de sua esposa morrer no parto seria quebrada ou não (e me surpreendi) concomitantemente pensava no talento deste Samuel Medina, na importância dele continuar o fio dos contos de fada, do quanto os contos de fada podem estar para sempre nos importando.

À altura de grandes escritores neste tipo de narrativa, o Samuel, este menino simples que se senta nas bibliotecas para plateias de crianças, lendo, interpretando várias histórias de nossa melhor literatura, mostra que escrever uma boa história, de um modo simples e fluido, cumpre com aquilo que ele, leitor, ganhou quando o fizeram assim para ele: fantasia, contato consigo e emoções só ali despertadas, reflexão, conflito, prazer.

Um livro que não subestima a capacidade do leitor, infanto-juvenil ou adulto; um livro que acredita que somos capazes de suportar as palavras, e somos. Não o amortecimento dos contos de fadas já alterados pela cristandade, omitindo e amaciando a crueldade em nossas vidas, disfarçando que quem queria matar Branca de Neve era sua madrasta e não sua mãe. Medina dá continuidade ao conto de fada medieval, onde as florestas são mais escuras e a força exigida não conta com os efeitos tão bonitos da Disney (que por sinal gosto muito também).

"Mas algo assolava aquela gente e ninguém sabia precisar quando ao certo as coisas começaram a dar errado. Há quem diga que foi numa noite em que um grande temporal fez o rio transbordar, inundando toda a parte baixa da vila, levando famílias inteiras. Outros acreditam ter sido após um terrível inverno que matou o gado aos montes. O que se sabe com certeza é que as pessoas começaram a comentar quando a primeira mulher da família morreu."

Fim das contas, há uma suspeita de que procuramos leitores parecidos conosco.

Leiam, é para os simples de coração. E os exigentes da boa literatura.


Patos Selvagens
Editora Baobá, BH, 2014
Disponíveis para venda também com o autor.

Entrevista com o autor: http://www.aletria.com.br/blog/interna.php?pagina=54#opiniao

domingo, 30 de agosto de 2015

Corpos em marcha, de Simone de Andrade Neves


Por Adriane Garcia


Numa parede a mancha branca
desenha a lembrança da armadura.


   No meu hábito ansioso por ler não sei quantos livros ao mesmo tempo, interrompi a leitura de Corpos em Marcha, de Simone de Andrade Neves e durante a semana fui retomá-la. Mas sabe aqueles livros que a gente não deve partir a leitura? Pois é. Eu comecei novamente para ir num fôlego só.   E lê-lo duas vezes é, sem dúvida alguma, ganhar.
   À medida que prosseguia ia ficando fascinada com o movimento em que me vi entrando, com o perceber a grande habilidade desta poeta que nos convida não só a uma viagem, mas a uma passada. Tudo em Corpos em marcha é coerente e coeso, tudo “fecha”, sem sequer um lugar-comum. Simone de Andrade Neves é poeta das mais especiais no que tange ao seu tratamento da palavra e dos temas.
   A marcha, sabemos, é um movimento de passos ordenados, com ritmo contínuo onde as mudanças de ordem servem apenas para marcar novo ritmo contínuo. Numa marcha se obedece, numa marcha ruma-se a um fim; vários andando juntos e parecendo um só. Analogias com soldados cumprindo um destino, o movimento que lhes é preciso, do centro de si, para avançar; pois recuar, ainda é marcha.
   Então, comecei a marchar numa cidade do interior, num cenário de fazendas e solo de terra e folhas secas; noutras vezes em lodo e húmus; acompanhei-a no sol que entrava nas janelas e fui com ela até a casa de erva-mate, vi as pás modificarem a matéria (morte?), olhei embaixo dos móveis antigos, vi fósseis de insetos, matei bois e porcos e lhes comi a carne, procurei um brinquedo que caiu numa fresta, fui ao enterro do menino enrolado em morim… fiz isso tudo em velocidade contínua, ditada pela poeta, e ainda quando nossa marcha se deu em mudança abrupta era apenas novo comando para novamente entrarmos em continuidade. Na maioria das vezes, a marcha foi suave, bucólica, em algum momento levemente nostálgica, sem que o livro deixasse em página alguma de lidar com a força, ou não haveria marcha. Paradoxo que esta poeta trabalha com maestria.
   Corpos em marcha é um livro profundo, extremamente bem escrito, sem desperdício algum e também sem nenhuma falta ao que se pretende. Podemos chamar isso de exatidão. Fala de nossa condição de seres finitos, de nossas transformações inevitáveis, da nossa crueldade e sofrimentos tão naturais, do papel da memória e da imaginação na recriação do que já perdemos.
   O talento de Simone de Andrade Neves é que sua poesia jamais é óbvia, lida com o modo mais difícil de fazer e consegue não cair num hermetismo que retiraria nossa chance de comunicação. Entre violências de uma condição predadora, num mundo predador, a complexidade de amar, apesar de e como parte de.

Dentro do sonho
ouço o trotar de um cavalo
e oco de rosetas.
É ele!
paramento e montaria,
no amparo de um arreio de prata
passando a vila em revista

absorto em ofício sacerdotal,
na vigília,
ignora
a disritmia do meu coração.

   A descrição dos lugares, a menção dos objetos serve à Simone de Andrade Neves para pontuar o que realmente importa: essência, seiva, essa palavra que lhe é cara. Enquanto há vida, ávida, porque é no vivo que a morte é vingada.

Tracionada a ferrugem dos ferrolhos
reage ao sol
e rescende o cheiro dos carvalhos
no escorrer das ocras:
o ferro a menstruar no tempo.

Transversa
a luz revela o desenho das teias:
colcha prateada de neurônios
esses nervos da vida.

Firmes ali sem mais estar
mãos invisíveis no ensaio do tear.

   Um desnudamento do mundo e das aparências. A poeta entende o que o mundo é. Olha ampulhetas, procura o homem que está sob o homem e não encontra, pois a poesia não existe pra responder, mas para nos ajudar a suportar a marcha ao inexorável.
   Para não copiar o livro todo, que é um primor do início ao fim, deixo aqui esta iluminação de nossa Simone de Andrade Neves:

O tempo abranda as coisas

O Sol
fez branco
o terço rosa
deixado
sobre o túmulo.

   Um projeto extremamente bem realizado, que emociona e encanta, pelo conteúdo e pela forma. Uma sorte poder lê-lo e tê-lo entre livros queridos.




Livro:
Corpos em marcha
Simone de Andrade Neves
editora Scriptum
2015



terça-feira, 18 de agosto de 2015

Xadrez, de Ana Elisa Ribeiro: sorte no jogo, sorte no amor.



por Adriane Garcia


    De repente reservei-me o momento desta partida. Vinha de um livro denso de entrevistas, saudosa já de ler poemas, e há tempos queria me dedicar a uma segunda leitura de Xadrez, da poeta mineira Ana Elisa Ribeiro. Foi a poeta que avançou primeiro, com esta epígrafe de Michel de Certeau: “A memória dos lances antigos é essencial a toda partida de xadrez.”
     A delícia da noite foi poder acompanhar a trajetória deste jogo de tabuleiro, que já se desenha na própria edição, na diagramação do livro, na brincadeira das páginas pretas que abrem seções, nos subtítulos nas casas brancas. E então, de começo, senti que era preciso mesmo me posicionar para o jogo; primeiro, a posição de espectadora; depois, a posição de quem rememorava jogadas próprias: eu, jogadora. Este o momento em que o leitor acompanhará os poemas que compõem Xadrez com a respiração atenta de quem quer chegar ao final do torneio para saber, afinal, quem é que ganha.

A terrível sensação

do absurdo
de viver
a mesma coisa
em outra
posição
no tempo.

Fico pensando:
Deus é repetitivo.
Deus curte disco arranhado.
Deus volta a fita.
Deus faz becape.
Deus é campeão de ioiô.
Deus produz gente burra.
Deus joga dados.
Deus é diretor de cinema.
Deus ensaia balé.
Deus é maestro severo.
Deus é mesmo só pai.

    O livro de Ana Elisa prende. Prende porque emociona, porque surpreende e porque este é o jogo no qual, fim das contas, todos queremos ganhar: o amor.
    Um livro sobre a relação amorosa e que não resvala em mera confidência, que não cai nas palavras melífluas – apesar da autora brincar exatamente com esta palavra em dois poemas – que não repete fórmulas gastas.

Os meus cinco

ou seis –
sentidos
estão parados
na superfície dos
seus lábios

deixa eu tirar
seus óculos
e olhar
seu dia
inteiro

minha vida
está
partida –
ao meio:

um breu
sem graça

e depois
que você
veio.

    No xadrez, o jogo, valem a inteligência, a astúcia, a paciência, a prudência. Tudo combinado em estratégia. No Xadrez de Ana Elisa Ribeiro, a estratégia pode ser tantas vezes para maltratar o amor e, após tanta prática em resultados fracassados, também é preciso sorte. Mas engana-se quem pensa que as partidas deste Xadrez são jogadas num ambiente cinza, chuvoso e escuro. Apesar dos momentos em que perder é tão desesperador, há algo desta poesia que coloca a enxadrista sob o Sol. Penso que seja a força e a forma. Ana Elisa é uma poeta de presença forte, cuja força de personalidade se reflete nos seus poemas, sabe rir das partidas que perde, por isso, muitas vezes seu humor ácido, sua ironia fina. Quanto à forma, sua voz traz sempre os poemas limpos, de linguagem direta, habitados por palavras de nosso universo contemporâneo, perfeitamente ritmados e, especificamente neste livro, alguns com algo até ceciliano na musicalidade, utilizando poucas rimas vez ou outra, onde o poema só se enriquece. Ana Elisa sabe exatamente onde e quando colocar o elemento lírico e o antilírico. Em Xadrez seus versos “livres” estão habilmente comandados.

Luxo

Veja que luxo
namorar uma moça
cuja casa tem uma roseira na entrada.

Só por isso
não podes mais abandoná-la.
Onde mais vais ver algo assim?
Uma roseira verdadeira!

Cabe perguntar à moça
se é ela mesma quem cuida,
rega e drena.

Se for, não podes largá-la,
Se vês a roseira plena.

    Amor belo e desmedido, intimidade de casal, amor filial, amor paterno, esperas, masturbação, descrença nas partidas, derrotas, erotismo de uma elegância deliciosa, abandono, infidelidade, ciúme, erro, tristeza, esperança, angústia, desejo, memória, descontrole: o rico tabuleiro deste Xadrez.
    Condição humana, eu e o outro, você e o outro. Após tantos movimentos e até mesmo a conquista do amor, resta ainda o xeque-mate, mas este é sempre dado pela morte. E é num metalinguístico o único momento do jogo em que a poeta pede clemência:

Extrema

pedi a Deus
uma meia dúzia
de palavras
com que
brincar
antes
de terminar
sem vida
e sem
o que
dizer

  
  Um livro muito especial.





XADREZ
Autor: RIBEIRO, ANA ELISA
Idioma: PORTUGUÊS
Editora: SCRIPTUM
Assunto: Literatura Nacional - Poesia
Edição: 1
Ano: 2015

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Um dia de cada vez – A poesia de Airton Souza




Um tempo sem flores
e de muita solidão
pra (a) colher.

Levei o livro Manhã Cerzida, de Airton Souza, para viagem. Comecei lendo no aeroporto. Prossegui no avião. Quando já em Recife, aproveitava o tempo em que Tadeu Sarmento escrevia ou lia, para sentir mais uns poemas, porque é isso, a poesia que Airton Souza vê, captura e nos mostra é toda para sentir. A apreensão de Manhã Cerzida dá-se pelos poros, ou pela visão, pela temperatura de um dia que começa, de um sol a pino, de um mormaço insistente e tedioso ou de um frio que nos toma a noite. É uma poesia localizada no tempo, mas não do tempo elástico, do tempo eterno ou do tempo de uma vida inteira; é, antes, a poesia localizada entre o abrir e o fechar de nossos olhos.

tenho nas manhãs
o cheiro das magnólias

atravesso insaciável
algumas ruas desconhecidas

a carne afoita
tem fome
de afoiçar a esparramada
geografia do mundo

ganho o rumo
com a língua pesando a alma

esfalfado, não sei das raízes, das folhas
das árvores
só dos frutos
que apodrecem meu insano agora
esgueirados pelas horas

Bem ritmados, na maioria das vezes de versos curtos, os poemas de Manhã Cerzida contam nossa angústia de despertar mais um dia e também nossa esperança por este mesmo motivo. Conta nosso alívio por dormir e nossa melancolia pela chegada do escuro, mas mostra também que só a noite nos salva do dia. E é neste espaço temporal que vamos nos identificando com um tema que não poderia ser mais universal, pois que Airton Souza desnuda esse nosso “comum”, onde todos nos igualamos até nosso derradeiro sono.

Traz tuas chagas
que tentaremos curar
indo sempre ao fim das tardes

Manhã Cerzida situa-se nessas temáticas que trabalham com alguma sabedoria, vamos encontrando sussurrados modos não de fazer, mas de aceitar; modos não de aceitar, mas de nos rebelarmos; e não é para nos rebelarmos simplesmente, é para recriarmos sentidos. Um tanto de Heidegger, sem citação alguma, mas ali a morte e nenhuma explicação. Ali o lapso de tempo para nos inventarmos. Sem citação alguma, Sartre e este caminho onde só nos cabe existir.

A flor
não sabe
o que são os dias

não aprendeu a língua-
gem do tempo

mastiga
sem pressa: o silêncio
& não abandona a rua
porque sabe da importância
das cores.


Não conhecer o amanhã, angústia suprema, nem mesmo saber desta hora, do que nela fruiremos. Airton Souza nos leva a este passeio fugaz: vida, soma de minutos, sem manual de instruções, e tantas vezes sem companhia.

a manhã
cospe angústia
retesa as horas

respira esperança
& não come a incerteza

engasga-se
com o desconhecido
que é só depois de amanhã.


Em Manhã Cerzida a única companheira da qual se tem certeza que estará presente é a solidão. A imagem é sempre a de uma estrada, um caminho e um, apenas um caminhante. Não que o poeta tenha exterminado o outro ou a sua existência, mas está a comunicar justamente o desejo de dividir com alguém isto que novamente ganhamos no dia seguinte: uma manhã.

Trancafiemos as portas e janelas
com cuidado meu amor

com o cuidado igual
ao que zelamos de um
doente implorando a vida

receio a noite
porque ela tem uma mania estranha
de aprofundar os cômodos

sem alarde
passe os ferrolhos
com cautela

a noite é um medo faminto

deixei uma bandeira branca
no desejo de fixar no alpendre
nas primeiras horas de amanhã

não afrontaremos a penumbra
a nossa indigência
requer manhãs


Da poesia que olha para o que está ali desde que nascemos e indaga e, como toda boa poesia, não responde. E gruda em nós a sua indagação.


Carpe diem.


Poeta e professor paraense, de Marabá. Licenciado em História e Letras, pós-graduado em Metodologia da História, é colunista na revista Foco Carajás e escreve crônicas para o jornal Opinião. Tem participação em diversas antologias, além de ser um grande movimentador cultural pela literatura.
Com este livro Manhã Cerzida, Airton Souza foi agraciado com o IV Premio Proex  de Arte e Cultura, 2014.

Manhã Cerzida é uma publicação da editora Giostri (SP , 2015).

domingo, 12 de julho de 2015

Sob o signo do sangue – Carla Diacov em Amanhã alguém morre no samba



por Adriane Garcia



Mostrarei agora quais são algumas espécies de feitiçarias, de modo que os exemplos abram o caminho para a compreensão de todo o tema. Destas, a primeira é o sangue menstrual, do qual consideraremos o valor de seu poder na feitiçaria.” Cornelius Agrippa, Filosofia Oculta, Século XV.



    Na capa branca, pintada de um vermelho rubro, a menina manca, a menina escorrendo as pernas. O vestido festivo, as mangas em estilo “boneca” e a premonição: Amanhã alguém morre no samba. Carla Diacov leu a mensagem profética no escoadouro da menstruação e é sob a perspectiva do sangue, do ciclo findável somente com a morte – pois que tanto a menarca quanto o climatério e a menopausa definitiva não seriam a solução da loucura – que nascerá sua poesia, onde a fecundação se dá exatamente do não fecundo, da frustração, do exercício de morrer antes mesmo da infância e recomeçar, novamente sendo-se:

uma mulher no fim do mundo do fim,
com grãos de areia,
escreve mensagens em garrafas vazias
jogando-as ao mar.
vazias.
minhas ideias pescam a essas garrafas
com anzóis e fisgas do meu mais profundo horror:
sê-la.”

    Uma poética profundamente ligada ao signo e à ressignificação própria. Para ler Carla Diacov é necessário um leitor disposto a estudar um novo dicionário, a refazer com inteligência e intuição a simbologia da autora. Com disposição para estar vivo, a ler coparticipando (atributos essenciais de leitura e de apreciação de linguagens), Amanhã alguém morre no samba vai se revelar em poemas fortes – como o são as verdades – e de intensa sensibilidade.

pelo gesto pela roupa pela chama
não me emboco
troco os santos de lugar
o fogão corre a sala faz
o quarto mais marmita
não bato com ninguém
daí faltar you na imagem
sou suja daí faltar you
eu nunca mais vou escrever
sou suja o fogão corre deixo
os pés no tapetinho da manhã
acordo com cara de mina de carvão
escrava dessa criança
sou suja a mina do carvão
não bato com ninguém e o fogão corre
pelo gesto pela lomba pela cintura eu
nunca mais vou chorar dentro das mãos

se queimar o dedo lambe
conselho de mãe daí faltar you
ou esfrega na franja, criança

    Neste dicionário, que à medida que lemos vamos clareando, cavalo é sempre um homem, antena é o sensível, cão é ela, eu lírico, ovo é possibilidade irrealizada, criança é carência, pássaro é amor que jamais fica... Não se trata de metáfora que acontece num poema em específico, mas de códigos que se repetem no decorrer do livro e que à primeira vista estão desconectados ou intrusos. O aparentemente hermético de alguns versos se desnuda, pois Carla Diacov está renomeando sentimentos e coisas. Sim, coisas, afinal em Amanhã alguém morre no samba, a poesia acontece em dois cenários possíveis: ora no corpo (carne, ossos, cabelos, útero, sangue, vísceras…), ora nos objetos circundantes do espaço mais imediato (mesa, faca, maçã, alho, creme…). Por acontecer neste microcosmo, há um ritmo de claustrofobia onde raramente há espaço de estrofes. O comum é o bloco único da urgência e do grito.


me visto de alçapão e choro
mas estou pelada
mas estou calva
estou feia e fútil
basta
basta quando que sou o alçapão
sou possuída e inquilina
céus
eu sou o alçapão
espia:
o diabo é minha carne pênsil.”

    Degradação do sangue ruim, degeneração, perversão, tragédia diária de não se encontrar saída para o próprio ciclo da vida, a precariedade do estar-se aprisionado ao desejo sexual, a pulsão violenta. Amanhã alguém morre no samba é um livro vermelho como os sinais de trânsito que avisam para os atropelamentos, como as luzes das ambulâncias levando os feridos, como as poças de sangue deixadas pelos crimes passionais.

Menstruada.
Feminina e nua.
E em nada suave.

    Em Das maravilhosas virtudes de algumas espécies de feitiçarias, Cornelius Agrippa avisa que para o sangue menstrual alcançar efeitos benéficos, é preciso que tudo seja feito antes do nascer do Sol. Carla Diacov sabia. Por isso Amanhã alguém morre no samba é destes livros escritos na nossa eterna noite, geralmente na hora em que os suicidas decidem viver mais um dia.


_________________________

Amanhã alguém morre no samba
Autora: Carla Diacov
Editora: Douda Correria
2015
Nº Páginas: 183



quarta-feira, 17 de junho de 2015

A poesia de ouro de líria porto




    Um agraciamento. A sensação mesma de encontrar uma pepita de ouro, de ter obtido sucesso de tanto bater bateia: eis como me sinto lendo delícias.
    Uma vez, Rubem Alves falou numa palestra – eu assistia: o que é um saber sem sabor? Nunca mais me esqueci, talvez por isso, grave apenas o saber que saboreio, o resto uso para provas burocráticas e, em seguida, esqueço. Mas garimpo, este livro de líria porto (assim mesmo, em minúsculas, como ela subverte e gosta) não é possível de ser esquecido, porque ainda estoura na língua, em versos dourados, de mil sensações.
    Há tempos digo que líria porto é uma representante muito legítima da poesia contemporânea, que sua poesia é forte, precisa, corajosa, bem-humorada, profunda, objetiva, nova e cheia das aprendizagens anteriores. Ávida leitora, líria não é dos poetas que desprezam mestres e esta é para mim a melhor Escola: saber ser reverente sem ser subserviente.
  Dona de um ritmo perfeito e de formas variadas, seus poemas cantarolam, desfiam palavras numa dança e apontam, escondem, sugerem, contam significados. Há sempre um pouco mais do que aquilo que está escrito.

garimpo


esta procura tem um nome insanidade
passei da idade de tentar fazer sonetos
eu só consigo descrever cinzas e pretos
acho que o verso não alcança claridade

pelas gavetas prateleiras escondidos
ainda agarro pelo rabo alguns cometas
quero as estrelas não encontro suas tetas
sinto as fissuras dos pequenos desvalidos

a minha escrita sempre foi penosa esgrima
desde menina que não tenho paradeiro
eu caço sapo com bodoque o dia inteiro
nesta esperança de catar melhores rimas

vasculho as glebas
os grotões e quem diria
bateio o sol chego a pensar
que a noite é dia

  A ideia de garimpo é, principalmente, trabalhar a metalinguística, o que é feito do início ao fim sem cansaço algum para o leitor. A palavra, a poesia, a poeta, o poema dizem-se falando de outras mil coisas, o que atesta a versatilidade desta autora. A vida revelada sem ingenuidade e a poesia alcançada também na difícil rotina diária, no cotidiano realista do nosso fardo nas minas, de insucessos nas buscas, na força necessária dos desbravamentos e dos burilamentos de nossas pedras.

traumas

tantos fatos
decorrentes
das correntes
da memória
são imbróglios
são algemas
que nos prendem
a nós próprios
e nos tornam
tão parados
e inativos
quanto as rochas

    O lirismo de líria porto – que com este nome parece mesmo predestinada – é raro e sem exageros. A medida exata entre falar de maneira bela (um ouro polido) e falar para o tempo de agora (metal frio). Lê-la é poder amaciar os olhos com mensagens duras, que falam de ausências, de morte, de velhice, de amores não vividos, de degradação ecológica, de liberdade e aprisionamentos.

namoro

de encontro ao vento
ando lento pra sentir seus dedos finos
e seu corpo sem matéria
eleva-me do chão alguns centímetros

    Para completar, e não podendo ser diferente, a edição da Lê é um luxo, com ilustrações da também talentosíssima escritora e ilustradora Silvana de Menezes, que soube exatamente captar a alma de um conjunto tão imagético.

    O livro é um perigo, porque denuncia: as joias ficam na estante.



líria porto - professora, poeta, natural de araguari – mg – autora dos livros borboleta desfolhada e de lua, publicados em portugal – 2009 – e garimpo e asa de passarinho, publicados no brasil pela editora lê – 2014.