por Adriane Garcia
"Passou a vida aceitando. Por favor e obrigada. Sem escapatória não fez faculdade, não trabalhou fora, não usou calça comprida, não casou com quem queria. Lustrou o piso da mesma casa por 50 anos e criou filhos, ensinou receitas às noras, festejou netos. Aos 70 anos cometeu sua primeira rebeldia: livrou-se do coador de pano e comprou uma cafeteira de extração francesa... cafeinada e muito sexy."
Voltei do lançamento de Só, com peixes, em São Paulo, com um livro vermelho e preto, encadernação artesanal da Scenarium, com fita de cetim, que me foi entregue em mãos, pela própria Adriana Aneli, a autora. Na capa, habilmente desenhada, com a delicadeza de traços de arabescos, pela artista plástica Cristina Arruda, uma xícara e a fumaça se evolando. Dentro do livro, o trabalho artístico das ilustrações, aqueles desenhos onde a liberdade diz "eu participo" são a outra delícia, os mimos que acompanham os cafés.
Amor expresso. Sim, expresso em cinquenta minicontos que nos surpreendem a cada página. Li sem querer parar. A linguagem calculada para ser contida, e suficiente para mover o leitor. Água na temperatura certa. Medida exata de pó.
A princípio, surpreendi-me com o sucesso de uma difícil empreitada: conseguir alumbramento contínuo de algo tão cotidiano, banal: café. Pois não é que consegue?
Nos contos de Aneli o café é transformado em elemento simbólico de humanização, sai da coisificação e entra no terreno dos afetos. E nem sempre é com açúcar, e nem sempre é amargo, e nem sempre é certo que tomaremos outra xícara de café. Elemento básico da companhia ou da solidão, aroma capaz de vencer até a vontade da morte ou mesmo de servir como objeto de libertação. Do casal que se uniu na padaria, ao que se separou e discutiu a propriedade da cafeteira elétrica; do homem que se salvou da morte porque se deixou distrair por um hábito ao juiz que oferece café ao réu; do empresário que vê pela primeira vez seu semelhante ao cidadão que mal tem dinheiro para comprar um pingado. O café quentinho, lembrança de conforto. O café frio daquele dia, difícil de descer. Já a literatura de Aneli, não. Comove, entristece, alegra, mostra, recorda. Leva-nos lá onde estão seus personagens sem nome: ele, ela. Conhecemos todos. Já tomamos, certamente, algum destes cafés.
"Ainda lutava. Secretamente, porque ao redor ninguém mais acreditava. Por oito anos em coma ouviu passos espaçarem, choros se tornarem raros.
Naquele torpor, ela entrava. Pontualmente. Apoiava a caneca de café coado na mesinha ao lado de sua cabeça e ia bebericando, enquanto procedia à minuciosa limpeza do corpo inerte.
E por isso ele ainda lutava. Secretamente."
Um livro que é um presente para os que amam literatura, para os que se alegram quando algum de nós contribui com mais beleza e reflexão nesse mundo e para os que sabem que é preciso agradecer quando nos oferecem a gentileza de um café.
Amor Expresso, Adriana Aneli, editora Scenarium, 2015. Ilustrações: Cristina Arruda.
Adriane Garcia explora com tanta propriedade os caminhos que apenas sugeri, que emociona... Conhecedora da vida, da arte, e do capricho das palavras, torna maior o que com sua leitura toca. Muito obrigada!
ResponderExcluirDeliciosa apresentação do livro, Adriane. Envolvente na descrição ao ponto de ser olorosa, no despertar sinestésico com que o convite tão bem ilustrado incita ao prazer de um 'cafezinho'... e da leitura que o contempla. Adorei!
ResponderExcluirObrigada pela apreciação, Gustavo.
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ExcluirGustavo, bora tomar um? Agradeço a delicadeza do comentário... compartilho da mesma impressão, Adriane sabe nos convidar aos livros que lê!
ResponderExcluirTomarei todos Adriana, e convidarei amigos apreciadores para provarem. Sim, Adriane Garcia é craque das letras.
ExcluirBeijo nas duas.
Gustavo, bora tomar um? Agradeço a delicadeza do comentário... compartilho da mesma impressão, Adriane sabe nos convidar aos livros que lê!
ResponderExcluirAh, seus bonitos. Que bom poder compartilhar as boas impressões que os bons livros nos deixam e achar quem tem interesse por isso. Parece que o mundo não acabou. Vou até tomar um café. Beijos.
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