segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A mulher de Ló - de Carlos Machado

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Por Adriane Garcia

“Por que não deram voz/ à mulher de Ló?”


Que maravilha é ler um livro que nos surpreende.

Quando me deparei com o título A mulher de Ló, deste poeta e grande amigo da poesia que é Carlos Machado, lembrei-me da imensa personagem bíblica (quem passou por ela e não a guardou em imagem?) e senti que estava prestes a abrir algo especial. A intuição e o faro não mentiam, pois não pude deixar o livro, enquanto não chegava à sua página derradeira.

Espécie de poema-romance, composto por vários poemas, narra uma história única, a da Mulher de Ló, transformada em estátua de sal pela (in)justiça divina. O poeta se deu a acompanhá-la em seu horror, em seu último dia, em sua última hora; colocou os pés em Sodoma e Gomorra, viu as nuvens carregadas de ira e sentiu o cheiro de enxofre emanado da sentença de Deus. Sentença sem processo, assim como a sentença contra a Mulher de Ló, narrada em um poema inesquecível e tão contemporâneo, intitulado Tribunal. Em sua visita às duas cidades condenadas, Carlos Machado viu e ouviu seus habitantes, soube de suas crianças, plantações e bichos, pode até mesmo ver as costelas calcinadas do anjo que, no meio das chamas (e das virtudes inventadas que teimam com os desejos),  também olha para trás, e vê a Mulher de Ló.

Mulher sem nome, os escribas da Lei não se importaram, na mesma medida em que o poeta se incomodou. Qual o nome da mulher de Ló? Quais os nomes das Filhas de Ló? Quem, nos provoca o poeta, contará a história dos vencidos?

Ao refletir sobre o ato desobediente da Mulher de Ló, não pude deixar de refletir sobre vitória e derrota, sobre subordinação e altivez, sobre este papel em que, historicamente, a mulher quase sempre é colocada: o de quem erra. Não há como não lançar nosso olhar de completa desconfiança sobre as estatísticas oficiais: “Quem fez a/ estatística// dos mortos/ de Gomorra?”

Em A Mulher de Ló, a empatia e a contestação levam o leitor a fazer perguntas sobre aquilo que, muito provavelmente, nunca esteve inerte. A poesia lança movimento sobre a estátua de sal. Não estamos mais diante do objeto condenado, estamos ao lado do ser humano, sujeito de memórias e vivências de seu lugar, que poderia ser qualquer um de nós, olhando para os anjos cheios de fúria, sem compreender como é possível destruir uma cidade inteira, salvar apenas os membros de uma oligarquia e ainda chamar isso de alguma espécie de justiça.

Com versos inteligentes e, por vezes, de uma ironia mordaz, Carlos Machado nos lança em A Mulher de Ló, clarões como “não acreditam que Sodoma sairá/ do mapa para entrar na Bíblia” ou momentos apoteóticos, como em Frevo, onde a voz calada da mulher se ergue e se realiza. Da constatação de que, no próprio texto bíblico, não há qualquer menção à sodomia em Sodoma, da maneira como fizeram com que entendêssemos o termo hoje, o poeta brinca: “Os rebanhos de Ló/ - lascivas ovelhas -”, afinal, a morte das ovelhas precisa ser justificada.

Ler A Mulher de Ló me foi um exercício feliz de ler poesia, porque é poesia de primeira qualidade, porque é poesia que tem algo a dizer, porque é poesia de destruição, porque quer destruir o destruidor, porque sinaliza algo novo, porque ouve a voz da mulher silenciada, porque vai ao inferno e nos conta.


Tribunal

A mulher de Ló comparece ao tribunal.

Nome: desconhecido.
Acusação: olhou para trás.
Defesa: [interdita]
Sentença: morte sumária com regressão
                 ao reino mineral.
Últimas palavras: [interditas]


Varões

Aos varões da raça
não se pede muito.

Sua condição
lhes garante tudo.

Porém, quando há guerra,
quem se põe de luto?

Quem tece a mortalha
de seu próprio fruto?

Ao som da tragédia
quem conjura o susto?


Sodomia

Alguns justificam
o extermínio.

Dizem que a perdição
de Somoma
foi a sodomia.

E o bebê massacrado?
Só dormia?

***
A mulher de Ló
Carlos Machado
Poesia
Ed. Patuá
2018

* texto utilizado no posfácio da obra A mulher de Ló.