Por Adriane Garcia
“Por que não
deram voz/ à mulher de Ló?”
Que maravilha é ler um livro que nos surpreende.
Quando me deparei com o título A mulher de Ló,
deste poeta e grande amigo da poesia que é Carlos Machado, lembrei-me da imensa
personagem bíblica (quem passou por ela e não a guardou em imagem?) e senti que
estava prestes a abrir algo especial. A intuição e o faro não mentiam, pois não
pude deixar o livro, enquanto não chegava à sua página derradeira.
Espécie de poema-romance, composto por vários
poemas, narra uma história única, a da Mulher de Ló, transformada em estátua de
sal pela (in)justiça divina. O poeta se deu a acompanhá-la em seu horror, em
seu último dia, em sua última hora; colocou os pés em Sodoma e Gomorra, viu as
nuvens carregadas de ira e sentiu o cheiro de enxofre emanado da sentença de
Deus. Sentença sem processo, assim como a sentença contra a Mulher de Ló,
narrada em um poema inesquecível e tão contemporâneo, intitulado Tribunal. Em
sua visita às duas cidades condenadas, Carlos Machado viu e ouviu seus
habitantes, soube de suas crianças, plantações e bichos, pode até mesmo ver as
costelas calcinadas do anjo que, no meio das chamas (e das virtudes inventadas
que teimam com os desejos), também olha
para trás, e vê a Mulher de Ló.
Mulher sem nome, os escribas da Lei não se
importaram, na mesma medida em que o poeta se incomodou. Qual o nome da mulher
de Ló? Quais os nomes das Filhas de Ló? Quem, nos provoca o poeta, contará a
história dos vencidos?
Ao refletir sobre o ato desobediente da Mulher de
Ló, não pude deixar de refletir sobre vitória e derrota, sobre subordinação e
altivez, sobre este papel em que, historicamente, a mulher quase sempre é
colocada: o de quem erra. Não há como não lançar nosso olhar de completa
desconfiança sobre as estatísticas oficiais: “Quem fez a/ estatística// dos mortos/ de Gomorra?”
Em A Mulher de Ló, a empatia e a contestação levam
o leitor a fazer perguntas sobre aquilo que, muito provavelmente, nunca esteve
inerte. A poesia lança movimento sobre a estátua de sal. Não estamos mais
diante do objeto condenado, estamos ao lado do ser humano, sujeito de memórias
e vivências de seu lugar, que poderia ser qualquer um de nós, olhando para os
anjos cheios de fúria, sem compreender como é possível destruir uma cidade
inteira, salvar apenas os membros de uma oligarquia e ainda chamar isso de
alguma espécie de justiça.
Com versos inteligentes e, por vezes, de uma
ironia mordaz, Carlos Machado nos lança em A Mulher de Ló, clarões como “não acreditam que Sodoma sairá/ do mapa para
entrar na Bíblia” ou momentos apoteóticos, como em Frevo, onde a voz calada
da mulher se ergue e se realiza. Da constatação de que, no próprio texto
bíblico, não há qualquer menção à sodomia em Sodoma, da maneira como fizeram
com que entendêssemos o termo hoje, o poeta brinca: “Os rebanhos de Ló/ - lascivas ovelhas -”, afinal, a morte das
ovelhas precisa ser justificada.
Ler A Mulher de Ló me foi um exercício feliz de
ler poesia, porque é poesia de primeira qualidade, porque é poesia que tem algo
a dizer, porque é poesia de destruição, porque quer destruir o destruidor,
porque sinaliza algo novo, porque ouve a voz da mulher silenciada, porque vai
ao inferno e nos conta.
Tribunal
A mulher de Ló comparece ao tribunal.
Nome: desconhecido.
Acusação: olhou para trás.
Defesa: [interdita]
Sentença: morte sumária com regressão
ao reino mineral.
Últimas palavras: [interditas]
Varões
Aos varões da raça
não se pede muito.
Sua condição
lhes garante tudo.
Porém, quando há guerra,
quem se põe de luto?
Quem tece a mortalha
de seu próprio fruto?
Ao som da tragédia
quem conjura o susto?
Sodomia
Alguns justificam
o extermínio.
Dizem que a perdição
de Somoma
foi a sodomia.
E o bebê massacrado?
Só dormia?
***
A mulher de Ló
Carlos Machado
Poesia
Ed. Patuá
2018
* texto utilizado no posfácio da obra A mulher de Ló.