Movimento
em falso, de Simone Teodoro (Patuá, 2016) é um livro que contém
sua organicidade na solidão. Em seus poemas, a poeta trata da
inadaptação do ser que narra, o sentimento de ser “gauche”
perpassa toda a construção, onde o que é visto é o avesso, a
denúncia do inverso. Fato interessante, que salta à leitura, é a
relação do eu lírico com o lugar/cidade. Simone Teodoro, em seus
versos, faz perceber inúmeras vezes esse ser “torto” em sua
geografia, no caso, Belo Horizonte, que observa e desnuda o seu campo
de visão e atuação, numa crítica social e política de
entrelinhas, convivendo com o lirismo e a beleza, sem deixar de dizer
o que tem que ser dito.
“Caríssima
o
cheiro de merda
sabota
a mentira do boulevard:
águas
impuras escorrem nesses subterrâneos
infectas
como
as bocas dos vermes que roem carnes ricas sob
os
granitos luxuosos do Bonfim”
Poeta com os dois pés na tradição e as mãos na poesia contemporânea
mais atual, Simone traz referências diretas de Rainer Maria Rilke,
Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado, entre outros. Seu espaço
de “ferramentas” vai do cânone cultuado às cantigas de roda e a
leitura dos “marginais”. Assim, seu anjo terrível anda de metrô
e tropeça em ataduras:
“Me
sento numa cadeira verde
recolhendo
junto ao peito
uma
imensa asa ferida”
Com
uma imagética forte e bem construída, a poesia de Movimento em
falso nos leva em viagem para (re)conhecer personagens tão atuais
quanto universais: o gênero humano, que sofre por amor (e a
desilusão amorosa em Teodoro é recorrentemente a imagem da estrela
de vidro, que se quebra, ferindo de sangue as mãos); o amor
romântico de uma mulher por outra mulher; a mulher que precisa se
disfarçar de homem para andar nas madrugadas citadinas, sem sofrer a
ameaça da violência, do estupro; a mulher que dispensa o falo e faz
sua declaração aberta e corajosa contra o machismo; a criança que, numa referência ao Poema de sete faces, só pode viver um poema de
uma única face, a da impossibilidade de ter infância; o cidadão de
segunda categoria que não têm assegurados direitos mínimos e caga
entre os automóveis, estacionados em frente à igreja de arquitetura
imponente, art
déco.
Usando
palavras antigas, algumas vezes e propositalmente, Simone evoca uma
nostalgia por um tempo que não lhe pertence (não que o desejasse),
é sua forma de amplificar o sentimento de “estrangeirismo”
também com relação à época: “me tornei alta/ e plena de
antiguidades”. Do mesmo modo, utiliza quebras, com um antilirismo
que atualiza o poema e o traz para o momento presente e sua
contundência, conseguida por não querer disfarçar a realidade.
Em
Movimento em falso, para se entender o eu lírico precisa se
estender. Estender-se para o mito, para a natureza, para a fabulação
de seus elementos: “as pedras cantam/ como se fossem de carne/ e
doessem”. A necessidade de dialogar não pode contar com o outro,
humano: é um mundo de desencontrados, a poesia é um diálogo
consigo mesma e com os seres inanimados. O mundo da poeta não é o
mundo no qual ela chora, há um descompasso.
Sem
poder estar em Duíno, no alto da montanha, o que também não seria
rima nem solução, Simone Teodoro trafega com sua mulher de chuva e
resignação por entre o cinza. E constrói um livro capaz de afirmar
do início ao fim uma identidade. Identidade singular no gueto dos
sozinhos. O gueto de todos nós.
“Cem
segundos de espera
Antes
de
atravessar
a sinaleira
cem
segundos de espera
A
pressa dos carros
retalha
a cor cinza do dia
Um
vento quente
agita
a aridez da tarde
Bacanal
de coisas sujas e
minúsculas
pelos
ares
e
a porra de um cisco
bem
no fundo do meu olho
Solicito
a abertura dos portões
do
inferno
Ameaça
de tempestade
gota
grossa escapa de cima
cusparada
do demo
Esvoaçam
as nossas saias
ah,
se fossem asas
ah
encomendei
uns livros da Colette
Vagabunda
Ingênua
Libertina
My
dear
sei
que tulipas deveriam estar atrás das
grades
Como
pode um sussurro doer tanto?
Não
sou Lady Lazarus
Corda
e janela serão minhas palavras definitivas
Vomito
os homens que comi
Não
te disse
mas
um deles pisou
na
barra da minha saia
e
eu caí
(é
tanta fratura no osso)
Senhoras
e senhoras
pulem
de um pé só”
***
Movimento em falso
Poesia
Simone Teodoro
Ed. Patuá
2016