Além
do prazer da leitura de um livro cuja poesia alcança a si,
Borda emociona, suspende-nos, faz com que mudemos do ritmo em que
estivermos para o seu próprio ritmo. Esta dança a que Norma nos
convida, dança da vida, dança na borda do precipício, é a dança
dos loucos que, a despeito de encontrarem ou não o sentido,
despencam para o chão dos seus elementos de história pessoal e
reordenam o mundo. Claro, fui direto ao grande Arthur Bispo do
Rosário, neste parágrafo imenso que nos dá José Castello, em seu
Inventário das Sombras (Record):
“Arthur
Bispo do Rosário considerava-se o salvador. O apocalipse se
aproximava, e, como um Noé moderno, ele tinha que preservar os
homens, os animais e os objetos do flagelo final. Bispo se julgava
investido da missão de resguardar em seu reservatório, um conjunto
de celas fétidas cheias de baratas no Manicômio Juliano Moreira, em
Jacarepaguá, pelo menos um exemplar de cada uma das coisas
existentes; aquelas que não fossem representadas nesse complexo
dicionário de objetos estariam condenadas a desaparecer para
sempre.”
Não,
não estou comparando, estou em festa por ter relido um livro bonito,
um livro vivo, cheio de força, beleza e dor. Os objetos com que Norma de
Souza Lopes reconstrói a história do mundo são as suas lembranças,
sem as quais estaria condenada a desaparecer para sempre. Poesia é,
então, em Borda, o exercício da memória, como neste “esmeril”:
debaixo
da janela do quarto de minha mãe
uma
touceira selvagem de cactos
perfura
minha memória
lembrar
é ato
e
efeito
e
afiar o corte
Porém,
não se trata simplesmente de relatos memorialistas, poemas
confessionais que a ninguém interessaria a não ser seu próprio
autor. Com domínio, elabora versos, em sua maioria curtos, com
grande síntese; seu poema, optando no mais das vezes, pela
divisão em estrofes, deixa-nos respirar, limpo e suave, na forma. Na
temática, quase sempre utiliza o tom de saber dizer durezas, sua
poesia tem a crueldade que só a beleza tem. E não fosse ela, Norma
de Souza Lopes deixa revelar por quase todo o livro, não seria
possível refazer-se diante de um mundo repleto de impossibilidades.
É a poesia que Norma chama de “óculos coloridos”, como neste “a
olho nu”:
nem
morta volto
atrás
sem
óculos coloridos
aquele
passado
do
chão do banheiro
da
área de serviço
era
esquisito
a
olho nu
não
há beleza
em
ler
ou
comer lixo
Seu
olhar vai das coisas da natureza à paisagem dura que olha da janela
do quarto de sua mãe. Vai da avó índia pega no laço à cirurgia
bariátrica da amiga tentando ser Barbie. Do gato que “salta em
arco/sobre a asa/de mariposa/reflexo do sol// mordisca/ uma flor de
serralha” à compaixão pelos que têm fome (“hiato”):
a
brir
clareira
com
pa
lavra
luzir
a lágrima
der
ra
ma
da
por
todas as barrigas vazias do mundo
Enfim,
eu poderia ficar falando do livro por horas, e copiando aqui, com
prazer, poemas e mais poemas, mas vale mesmo é ter o livro nas mãos
e confirmar que é riqueza ainda maior que a que descrevo. Terminei
grata por ter olhos de ver.
Borda
é essa delicadeza que os seres humanos tecem para fazer um pano
qualquer ficar bonito e único. Serviço geralmente ensinado por
mulheres, mas que pode ser praticado independente de gênero e é.
Borda é toda vez que pegamos nossas linhas e damos um jeito de
transformar a realidade em algo mais respirável. Bordas são feitas
com a dor que as agulhas causam. Num momento eu disse sobre uma dança
da vida. Bordas são a prova de que resistimos à morte.
Livro: Borda
Autora: Norma de Souza Lopes
Editora Patuá
2014