sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Paisagens inclinadas, de Michaela Schmaedel




Por Adriane Garcia



Se reparar bem, as paisagens estão inclinadas. É preciso um olhar aguçado, um certo silêncio, uma capacidade de perceber a integração do humano com a natureza para se dar conta desse acontecimento. Há algum tempo, Michaela Schmaedel vem nos brindando com uma poesia que fala de um mundo holístico, cujo centro é o sentimento de solidão. Do paradoxo de partilhar do Todo e estar só ela seleciona sua matéria.


Longe de estar irmanado com a paisagem, o ser está em conflito com ela – pois em conflito consigo – servindo-se da natureza, pela linguagem, para falar de si. Essa fala, tomada de melancolia (além de uma ironia triste) se estica como “um anjo/ de braços longos”, mostrando o poder da poeta de – criando imagens - gerar um clima sensorial.


Temperaturas e cores, topografia e vento, mar e céu, texturas, ambientes fechados e abertos, Paisagens inclinadas traz uma poesia em que o corpo é o tradutor do mundo – de dentro para fora e de fora pra dentro.


Dividido em quatro partes, este livro nos fala de ciclos, do recomeçar que tanto é dádiva quanto pedra de Sísifo. Há algo de luta por estar vivo a cada manhã, algo de resistência contra a medicamentalização da vida pelas saídas anestésicas: a poeta tem coragem de olhar e cada olhar é – já que um tanto animista e fabulatório – fuga e enfrentamento. Mas não falamos de atribuir uma alma ao mundo. Falamos de uma poesia capaz de trair o senso comum, de um animismo invertido em que é a nossa falta de alma que se reflete no nosso entorno.


Michaela Schmaedel trabalha com associações que alumbram e surpreendem. Há uma riqueza de figuras de linguagem que se junta a profundas reflexões, como deve acontecer na melhor poesia. Tanto o mundo urbano quanto os desertos ou as terras campestres e distantes figuram no mesmo mapa cardíaco: “Como calar/o que não é sólido/ao coração?” A riqueza de suas metáforas adensa, cria espaço visual, enquanto a presença de outras espécies animais colore a voz de um eu-poético capaz de uma comunicação silenciosa – e audível.


Paisagens inclinadas é feito de matéria refinada, resultado de um labor que busca exatidão e, brilhantemente, nos comove.



FENOMENOLOGIA 


Reparar o comum

o muito conhecido


uma flor

por exemplo


pensar na estrutura

no ciclo 

nos detalhes


com uma flor

se pensa o presente.





PRESENTE


Viver o campo 

o campo é a casa 


flores amarelas 

em meio ao verde 

vigoroso


viver o campo

o campo é a casa


como se a morte

fosse agora.



ANDES



Há sempre neve no Aconcágua

álamos amarelos

uvas roxas

catitas nos campos. 


O que vemos primeiro

a pré-cordilheira 

é sempre uma ilusão.



DELÍRIO


Um bem-estar 

se esconde sob a ironia


atormentar os vivos

e os mortos

com a teoria de dias 

mais capazes


o mundo desmoronando

e eu aqui 

pensando em versos.



*** 

Paisagens inclinadas

Michaela Schmaedel

Poesia

ed. 7 Letras

2022