terça-feira, 24 de outubro de 2017

Da leitura de Pancho Villa não sabia esconder cavalos, de Adriana Brunstein



A vida não é o Cirque du Soleil – A verdade descarada de Adriana Brunstein)

Por Adriane Garcia


Quando criança, fui nestes circos que armam tendas em bairros de fins de mundo que mais parecem desertos povoados. Chão de terra, poeira vermelha, arquibancadas finas de tábuas que enchem as bundas dos visitantes de ferpas. Essa foi uma das primeiras associações que fiz quando, pela primeira vez, e isso já faz algum tempo, li as crônicas/contos de Adriana Brunstein. Depois vinha o dono do circo, senhoras e senhores, anunciando o grande espetáculo. Mágicos que nos deixavam ver as pontas dos lenços escondidos nas cartolas, malabaristas que deixavam pinos caírem, mulheres lindas na falta de mulheres lindas com suas meias-calças desfiadas, animais magros e desanimados, vestidos de roupas rotas e purpurinadas, globos da morte enfurecidos de fumaça e som, que só conseguiam nos intoxicar. Por fim, palhaços que caíam, palhaços que levavam tortas na cara, palhaços que diziam a senha errada e terminavam atirados aos leões. E ríamos, ríamos muito, pois a outra opção seria chorar.

Agora estamos diante deste Pancho Villa não sabia esconder cavalos. Não sabia. Não sabe. Adriana Brunstein não esconde nada e por isso rimos de seu Pancho Villa, porque ele expõe toda a tragédia dos planos que nunca, jamais dão certo e porque, ainda mais tragicamente, ele acha que desta vez, aquele cavalo atrás da árvore poderá passar despercebido e, quem sabe, ele, que depende disso, poderá ser feliz.

O que dizer dessa escritora? Eu, como leitora assídua de seus textos que sou? Digo que Brunstein traz ares que sinto novos e deliciosos na prosa brasileira contemporânea. Primeiramente, traz pontos de vista de personagens femininos que se situam entre a quarta e a quinta décadas da vida, quando a beleza física padronizada ou nunca existiu ou está em decadência, quando já se está sob efeito do período da menopausa ou na iminência dele. Quando poucas ilusões restam. Depois, traz homens que se debatem nos relacionamentos sob o prisma de uma sinceridade incomum a respeito do fracasso. Os personagens de Adriana Brunstein falam aquilo que só falamos quando não há ninguém ouvindo, são um verdadeiro desastre. Tudo isso com um humor infalível e uma linguagem que já podemos chamar de estilo.

Emocionamo-nos. No fundo sentimos que há mais que um choro guardado. Lendo-a, sabemos muito bem do que estamos rindo. Conhecemos bem essas quedas. Conhecemos sua denúncia, sua indiscreta confissão sobre coisas que pertencem a uma raça inteira. A queda do palhaço é universal.

Seus personagens são como os personagens dos circos de infância em bairros abandonados. Há uma profunda compaixão nisso. E o que é o palhaço senão aquele que se empresta para cair, a despeito dos próprios tombos, para que possamos rir um pouco?



Ela tava lá tentando tirar a calcinha da bunda, perguntei se queria ajuda, levei uma cotovelada no olho, entrei no ônibus e alguém lá fora gritou “lincha” e alguém lá dentro gritou “bicha é você”, depois ficou todo mundo quieto pra ouvir o “olha o kit kat da nestlé, ó, é um por dois e dois por cinco, ó”, uma velha comprou, disse que tava vencido e o rapaz respondeu que “pode ver que tá no prazo, ó”, mas ela cuspiu tudo e nem viu que a janela tava fechada, e uma criança exclamou “que merda” e tomou um tapa na boca e olhou solidária pro meu olho roxo, eu respondi que daqui pra frente tudo piora e o ônibus freou com tudo e voou criança, velha, caixa cheia de kit kat da nestlé, ó, parecia reality show de suruba onde ninguém goza, nem fingir consegue, uma moça perdeu um brinco e saiu engatinhando até que ouviu barulho de zíper e gritou “sai fora, tarado”, mas não era, era alguém abrindo a bolsa pra ver se tinha quebrado o frasco de perfume, tinha, empesteou tudo e um meio bêbado acordou e pediu mais uma dose daquilo ali, enfiaram um kit kat em sua boca, ó, e ele chupou com o que o fulano que ajeitava os óculos chamou de expertise, para a moça do brinco era tudo nojento demais e ela pediu pra descer e o motorista disse que não era parada e que a “cocota que esperasse”, a criança fez cara de quem queria saber o que era cocota mas ficou calada, acho que ninguém sabia e que ninguém quer saber mais nada porque já é foda descer com a vida no ponto certo, cacete, passei dois, desci e atravessei a rua para esperar a volta mas já era tarde demais pra qualquer coisa.”

***
Pancho Villa não sabia esconder cavalos
Contos
Adriana Brunstein
Ed. Laranja Original
2017



sábado, 14 de outubro de 2017

A paixão segundo G.H. – de Clarice Lispector



Por Adriane Garcia

Assombro e pavor. Iluminação e transcendência. A beleza de não se querer mais a beleza. O terror e a epifania. O erotismo na sua forma mais primordial: a morte. A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector é das obras mais geniais que se pode ler em literatura.

A busca de sua protagonista é a busca da verdade, mas nem ela sabe exatamente o que busca, já que está no espaço do desconhecido; a busca da despersonalização, a busca do ser antes do humano, o inumano (não o desumano), aquele que pode chegar mais perto de Deus porque esteve no inferno. Busca terrível, percurso que, de início, parecerá ao leitor acontecer durante uma manhã, em um quarto de empregada, mas que acontece durante milênios, por funda ancestralidade. Iluminação que parecerá ter sido desencadeada por uma barata, pelo ser asqueroso de uma barata, mas que muito antes fora desencadeado pela procura do intervalo, pelo entre o número um e o número dois, pelo intervalo entre uma nota musical e outra, pelo intervalo que é o silêncio. Na inexpressividade existe um tesouro, no tédio, na monotonia. A paixão segundo GH é feita de inversões mirabolantes que fazem todo sentido, sem querer apelar apenas para a inteligência. Na inexpressividade pode existir o amor. Que espécie de amor? O amor que se descobre depois da transgressão, depois de ultrapassada a lei.

Um livro demoníaco, divino, revelador, onde cada parágrafo é uma obra de arte. Clarice Lispector pura, a bruxa capaz de atravessar a linha que separa a “normalidade” da “loucura” e voltar para nos contar.

Absolutamente imperdível. Agradaria Bataille, agradaria Nietzsche.
  
“O medo grande me aprofundava toda. Voltada para dentro de mim, como um cego ausculta a própria atenção, pela primeira vez eu me sentia toda incumbida por um instinto. E estremeci de extremo gozo como se enfim eu estivesse atentando à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente doce – como se enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu. Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar.
Toda uma vida de atenção – há quinze séculos eu não lutava, há quinze séculos eu não matava, há quinze séculos eu não morria – toda uma vida de atenção acuada reunia-se agora em mim e batia como um sino mudo cujas vibrações eu não precisava ouvir, eu as reconhecia. Como se pela primeira vez enfim eu estivesse ao nível da Natureza.”  (p. 52)

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A paixão segundo GH
Clarice Lispector         
Romance
2014
Rocco











sábado, 7 de outubro de 2017

Escrevo ao vivo, de Anízio Vianna




“(...) O meu agora é mais eterno que este minuto. Guarda a melhor tempestade. Não funciona um guarda-chuva. Eu sou o que você não leu.” ( p. 246)

Há alguns dias estive fisgada por um livro. É o Escrevo ao vivo, de Anízio Vianna. O livro, que traz 264 páginas, volumoso, em geral, para uma coletânea de poesia, me surpreendeu porque dá conta da quantidade, com qualidade. É livro de pegar e só largar no final; embala, leva, encanta. Há nele contundência, beleza, fina ironia, um tipo muito especial de fé e empatia enorme.

Anízio consegue fazer uma poesia descomplicada, abordando temas sérios, de maneira profunda; dando conta do mundo com suas inúmeras referências. Ao utilizar principalmente as notícias de jornal como motor para a escrita em Escrevo ao vivo, Anízio reporta ao leitor acontecimentos atuais, mas, antes, passa-os pelo filtro da poesia. O resultado são poemas que tratam, por exemplo, de política, sociedade, religião, religiosidade, violência, violência policial, amor, machismo, racismo, desigualdade, compaixão.

A maioria dos poemas traz um número de referência, que ao fim do livro leva o leitor à notícia que o desencadeou. O livro de Anízio Vianna, assim, além do exercício delicioso de ler poesia, nos dá o exercício da revisita, um convite sublinhado para a reflexão e apela para nossa memória, tão fragilizada em tempos de excesso insano de informações.

É ainda de se notar, na forma, a força da musicalidade nos poemas de Escrevo ao vivo. O ritmo privilegia a leitura em voz alta e, muitas vezes, me peguei falando poemas que quase me vinham como uma espécie de rap.

Com uma consciência social agudíssima, inteligência, riqueza de leituras e uma sensibilidade tão necessária para a poesia, os poemas de Anízio Vianna conseguem um ataque coordenado: cérebro e coração. O leitor, atordoado, só quer ler mais. Poesia com o pé no mundo, que aprendeu uma das lições emocionadas do grande Drummond. O tempo presente, os homens presentes, a vida presente é a matéria de Anízio Vianna.


À D. ELOIZA

Faço um poema p’ra me despedir do mar.
O mar não entende pedidos nem o aço das pedras.
Sente que sou da montanha e que ainda estou às margens
do Rio Arrudas, lugar onde nasci e hoje infância.

Vila Esplanada:
presídio  de mulheres, enchentes constantes.
Minha mãe me tirou de lá com suas mãos grandes – de calos e reentrâncias –
contra minhas mãos pequenas e lisas de professor.

Cumpriu à risca o fardo de fêmea:
pariu meu irmão e eu.
Porém, não rompeu a lógica das estatísticas.

Saiu de São João de Manteninha aos dezoito sem letra
com suposta data de nascimento na cabeça.
Desceu na Rodoviária Governador Israel Pinheiro,
Praça Rio Branco, sem número
e ainda sob efeito do êxtase da cidade de Belo Horizonte
descarregou as malas,
tirou certificado,
identidade,
carteira de trabalho
e completou seu êxodo.

Esboçou primeiro sorriso
diante do êxito de cruzar destino quase ilesa:
com calos e reentrâncias nas mãos.

O médico diagnosticou
alergia aos produtos de limpeza,
leve tristeza e hipertensão.

Vila Esplanada:
presídio de mulheres, enchentes constantes.
Minha mãe me tirou de lá antes da verticalização
das favelas.

Ela segue sem religião,
mas com uma fé abrupta ora ao Senhor.
Não sei se com fervor ou um ódio apaziguado
pelo excesso de amor.

Não sei se com alegria
ou consternada
pelos dias em que foi maltratada lavando chão.

Já freqüentou a Igreja Universal do Reino de Deus,
o Vale do Amanhecer,
as Católicas
e Seicho-No-Ie.

Descobriu que deus não mora numa sacada,
não gira em torno de uma órbita
e que, vez ou outra,
Ele irrealiza os nossos desejos.
(p. 208-209)

***
Escrevo ao vivo
Anízio Viana
Poesia
Quarto Setor Editorial

2016