A vida não é o Cirque du Soleil – A
verdade descarada de Adriana Brunstein)
Por Adriane Garcia
Quando criança, fui nestes
circos que armam tendas em bairros de fins de mundo que mais parecem
desertos povoados. Chão de terra, poeira vermelha, arquibancadas
finas de tábuas que enchem as bundas dos visitantes de ferpas. Essa
foi uma das primeiras associações que fiz quando, pela primeira
vez, e isso já faz algum tempo, li as crônicas/contos de Adriana
Brunstein. Depois vinha o dono do circo, senhoras e senhores,
anunciando o grande espetáculo. Mágicos que nos deixavam ver as
pontas dos lenços escondidos nas cartolas, malabaristas que deixavam
pinos caírem, mulheres lindas na falta de mulheres lindas com suas
meias-calças desfiadas, animais magros e desanimados, vestidos de
roupas rotas e purpurinadas, globos da morte enfurecidos de fumaça e
som, que só conseguiam nos intoxicar. Por fim, palhaços que caíam,
palhaços que levavam tortas na cara, palhaços que diziam a senha
errada e terminavam atirados aos leões. E ríamos, ríamos muito,
pois a outra opção seria chorar.
Agora estamos diante deste
Pancho Villa não sabia esconder cavalos. Não sabia. Não sabe.
Adriana Brunstein não esconde nada e por isso rimos de seu Pancho
Villa, porque ele expõe toda a tragédia dos planos que nunca,
jamais dão certo e porque, ainda mais tragicamente, ele acha que
desta vez, aquele cavalo atrás da árvore poderá passar
despercebido e, quem sabe, ele, que depende disso, poderá ser feliz.
O que dizer dessa escritora?
Eu, como leitora assídua de seus textos que sou? Digo que Brunstein
traz ares que sinto novos e deliciosos na prosa brasileira
contemporânea. Primeiramente, traz pontos de vista de personagens
femininos que se situam entre a quarta e a quinta décadas da vida,
quando a beleza física padronizada ou nunca existiu ou está em
decadência, quando já se está sob efeito do período da menopausa
ou na iminência dele. Quando poucas ilusões restam. Depois, traz
homens que se debatem nos relacionamentos sob o prisma de uma
sinceridade incomum a respeito do fracasso. Os personagens de Adriana
Brunstein falam aquilo que só falamos quando não há ninguém
ouvindo, são um verdadeiro desastre. Tudo isso com um humor
infalível e uma linguagem que já podemos chamar de estilo.
Emocionamo-nos. No fundo
sentimos que há mais que um choro guardado. Lendo-a, sabemos muito
bem do que estamos rindo. Conhecemos bem essas quedas. Conhecemos sua
denúncia, sua indiscreta confissão sobre coisas que pertencem a uma
raça inteira. A queda do palhaço é universal.
Seus personagens são como os
personagens dos circos de infância em bairros abandonados. Há uma
profunda compaixão nisso. E o que é o palhaço senão aquele que se
empresta para cair, a despeito dos próprios tombos, para que
possamos rir um pouco?
“Ela
tava lá tentando tirar a calcinha da bunda, perguntei se queria
ajuda, levei uma cotovelada no olho, entrei no ônibus e alguém lá
fora gritou “lincha” e alguém lá dentro gritou “bicha é
você”, depois ficou todo mundo quieto pra ouvir o “olha o kit
kat da nestlé, ó, é um por dois e dois por cinco, ó”, uma velha
comprou, disse que tava vencido e o rapaz respondeu que “pode ver
que tá no prazo, ó”, mas ela cuspiu tudo e nem viu que a janela
tava fechada, e uma criança exclamou “que merda” e tomou um tapa
na boca e olhou solidária pro meu olho roxo, eu respondi que daqui
pra frente tudo piora e o ônibus freou com tudo e voou criança,
velha, caixa cheia de kit kat da nestlé, ó, parecia reality show de
suruba onde ninguém goza, nem fingir consegue, uma moça perdeu um
brinco e saiu engatinhando até que ouviu barulho de zíper e gritou
“sai fora, tarado”, mas não era, era alguém abrindo a bolsa pra
ver se tinha quebrado o frasco de perfume, tinha, empesteou tudo e um
meio bêbado acordou e pediu mais uma dose daquilo ali, enfiaram um
kit kat em sua boca, ó, e ele chupou com o que o fulano que ajeitava
os óculos chamou de expertise, para a moça do brinco era tudo
nojento demais e ela pediu pra descer e o motorista disse que não
era parada e que a “cocota que esperasse”, a criança fez cara de
quem queria saber o que era cocota mas ficou calada, acho que ninguém
sabia e que ninguém quer saber mais nada porque já é foda descer
com a vida no ponto certo, cacete, passei dois, desci e atravessei a
rua para esperar a volta mas já era tarde demais pra qualquer
coisa.”
***
Pancho Villa não sabia
esconder cavalos
Contos
Adriana Brunstein
Ed. Laranja Original
2017