Por
Adriane Garcia
“Entre
outras mil/ és tu Brasil/ ó, Pátria amada”
Esse
excelente e essencial romance Não és tu, Brasil, de Marcelo
Rubens Paiva começa com uma dedicatória:
“Este
livro é dedicado ao meu pai, Rubens Paiva, que viveu como poucos,
fez o que deveria ser feito, e foi morto porque arriscou ser
solidário.”
O
pai do autor, Rubens Paiva, preso pela ditadura militar em 1971,
torturado e assassinado, foi um dos tantos desaparecidos políticos
do regime criminoso.
Em
Não és tu, Brasil, o narrador, em primeira pessoa, conta-nos
de sua infância e adolescência no Vale do Ribeira, na cidade de
Eldorado, sul de Minas Gerais. Misturam-se ficção e fatos
históricos, em uma ambientação do cotidiano de cidade do interior,
ao mesmo tempo em que se vai mostrando o retrato do país pré e pós
AI5.
“Por
minha determinação e disciplina virei o mascote da turma e o
queridinho do instrutor. Era o começo de um ano pesado, 1969, nas
aulas muitos inscritos, executivos apavorados pelos novos tempos,
convencendo, por tabela, esposas e filhos a se armarem e prepararem
para o pior; organizações de guerrilha ameaçavam famílias de
donos de jornal, banqueiros capitalistas, estrangeiros imperialistas,
empresários que financiavam a repressão e americanos suspeitos de
pertencerem à CIA. Um pedaço do Brasil se armava, era tudo ou nada.
E eu solto por ali.”
A
centralidade dos acontecimentos se dá entre abril e maio de 1970,
quando o Exército Brasileiro descobre que o guerrilheiro Lamarca e
seus companheiros estão no Vale do Ribeira – Lamarca tinha
escolhido o lugar para criar um campo de treinamento para a Vanguarda
Popular Revolucionária (VPR). O Exército, então, envia 1500 homens
para combater menos de uma dezena de jovens.
Marcelo
Rubens Paiva, de maneira hábil e munido de farta pesquisa
histórica, recria o cerco aos guerrilheiros da VPR, além de
retratar a violenta repressão que vem após o cerco. Não és tu,
Brasil denuncia o modo como o Estado brasileiro tratou o cidadão,
com todas as garantias suspensas, fazendo amplo uso das prisões,
torturas e assassinatos.
Foi
a partir da operação no Vale do Ribeira que o Exército repensou
sua ação contra os guerrilheiros e militantes, inclusive
desaparecendo com os corpos para que, assim, não houvesse a chance
de trocá-los nas ações de sequestro da guerrilha. Foi também
quando o exército profissionalizou a tortura trazendo o Doi Codi,
dando carta branca para os torturadores, sem estabelecer qualquer
limite, na implantação do que, na falta de melhor palavra, pode-se
chamar de barbárie.
Uma
personagem que chama a atenção na narrativa é a tia Luiza, a tia
guerrilheira. Crítica dos costumes e da moralidade vigente, tia
Luiza encanta o sobrinho, além de instalar o inusitado entre os
conservadores.
Com
três vértices – cada capítulo é denominado Vértice 1, Vértice
2 e Vértice 3 – Marcelo Rubens Paiva encontra as pontas
desse triângulo dos horrores chamado ditadura militar. Com uma
linguagem clara, fluida, objetiva e domínio de ritmo, o
livro oferece uma história forte e densa.
Não
és tu, Brasil fala das pessoas que deram a vida para mudar o
país e instaurar a democracia. Sem romantismos, de forma complexa,
ajuda a entender e a sentir aquilo que não podemos admitir que
aconteça novamente. Um apelo à humanidade e à memória.
“ – Josimar
mora por aqui? – perguntei ao balconista.
– Sei
não.
– E
Batico?
– Sei
não.
– E
seu Avelino, Zeca França, Ribeirinho, Benê, Ari Mariano, Edgar
Carneiro, João Cândido, Zé Arantes, Laudico, Gérson, Feliciadade,
Jairo Moraes, Doenha e Bartira, a que levou um tiro dos
guerrilheiros?
– Que
guerrilheiros?
Paguei
e voltei para o carro. Estrada que vai dar na Caverna do Diabo;
recém-asfaltada. Fui em frente. Construído um outro bairro, um
ginásio de esportes, vizinho ao campo de futebol, novo armazém,
oficina de tratores. Duas lombadas, não mais cidade. Laranja e
banana. Uma curva, o pasto, a cachoeira abandonada, o lago e a sede
da fazenda no alto do morro, cercada pelo muro mediterrâneo; na
mesma cor. Fazenda Apassou, não uma qualquer, mas meu berço, meu
passado. O abacateiro? Não existia mais. Nem a fazenda se chamava
mais Apassou.
Entrei
à direita, estradinha que dá no rio. Lá no meu tempo uma praia
natural de areia branca, acampamento de todas as crianças e das
bandeirantes. Não existe mais; venderam a areia. Desci do carro,
pensei em dar meia-volta, imagens me provocando, passado atropelado
pelo fim desgovernado. Mortes, abandonos e falências saíram dali.”
(p. 95)
***
Não
és tu, Brasil
Marcelo
Rubens Paiva
Romance
Ed.
Objetiva (Cia das Letras)
2007