“Todas
as famílias felizes se parecem entre si;
as infelizes são infelizes
cada uma à sua maneira.”
Leon
Tolstoi
Por
Adriane Garcia
A
sensação de terminar a leitura de um livro e imediatamente querer
recomeçá-la, não por não ter entendido algo, mas para não perder
absolutamente nada, para repetir a fruição de uma linguagem intensa
e rica é um dos presentes que Paula Fábrio, com seu
Desnorteio, oferece.
Desnorteio
(ed. Oficina Paula Fábrio) foi o romance vencedor do Prêmio São
Paulo de Literatura 2013, ganhando agora a segunda edição. A
primeira foi pela editora Patuá, em 2012. A história se passa em
Sorocaba, interior paulista; porém, antes de falar da história em
si, é preciso falar do labirinto.
Um
labirinto existe para desnortear os que o percorrem. Desnortear é,
sobretudo, perder o senso de direção, não saber para onde se vai,
podendo estancar ou prosseguir, sem nenhuma garantia ou mapa. Podemos
estar desnorteados por não possuirmos uma bússola ou porque nossa
bússola não é confiável. Pode ser que tenhamos a sensação de
andar a esmo ou que, caminho controlado, tudo deu em nada: erramos.
Não compreender nos desnorteia. Labirinto é, por excelência,
metáfora.
O
mais famoso labirinto, o de Creta, construído por Dédalo, ainda
contava com um recurso de crueldade maior, o Minotauro, o monstro
metade homem, metade touro, que devorava aqueles que lhe eram
oferecidos. Estar no labirinto é ser dado em sacrifício: mas por
quê? Por quem? Para quê? Essas perguntas respondidas equivaleriam a
descobrir o sentido da nossa existência. No mito grego, Teseu
conseguiu derrotar o Minotauro com o fio de Ariadne, desenrolado ao
longo do percurso.
É
instigante quando um livro consegue fazer o tema encontrar a forma a
ponto de parecer que não poderia ter outra. Não por óbvio, mas por
exato. Desnorteio é labiríntico: seus múltiplos narradores
vão dando a trama, capítulo a capítulo; de forma não linear, ao
mesmo tempo em que tecem para o leitor as personalidades uns dos
outros, em um misto de ficção e memória. A estrutura da narrativa
é fragmentada, com capítulos curtos, ora na primeira, ora na
terceira pessoa, utilizando algumas vezes recursos da dramaturgia. A
autora chama o leitor para a imagem, fecha-o na cena, usa até mesmo
os recursos da luz e da sombra teatrais, do foco, enquanto seu
personagem/ator permanece estático ou se movimenta, à sua direção:
“BENÉ.
MAGRO COMO UM QUIXOTE. Sempre dizia natal é nozes, flores, straus,
champanhe. Ríamos dele. Um riso que se travou em nossas faces.
Chamaram a polícia. O rapaz é bobo. Está a seguir mulheres. Caso
arquivado. Personagem em posição de descanso no meio do palco.
As
luzes recaem no desvão do tablado. Um quarto estranho com um homem
curvado na cama. (...)
Miguel
entra em cena. Tem o rosto iluminado. Sua imagem abrindo a porta do
casebre. (...)”
De
imediato, pode-se dizer que Desnorteio é a história de uma
família. A família Oliveira. Na profundidade, porque assim são as
histórias que de algo tão particular erguem o universal aos nossos
olhos, Desnorteio fala do labirinto que é a condição
humana; da falta de sentido de percorrê-lo. No meio do caminho pode
haver miséria, loucura, doença, velhice e, fim das contas, a morte
sempre nos espera. O romance trata tanto da complexidade psicológica
quanto das consequências da restrição material. É também uma
crítica da pobreza e um retrato dos miseráveis que abundavam o
milagre econômico brasileiro da Ditadura Militar na década de 70.
Em
uma cidade do interior de São Paulo: o Brasil. A escravidão, o
racismo e o machismo na raiz; a década de setenta, os anos 80. Os
dias atuais, em que uma narradora, da qual não sabemos o nome e que
é caracterizada pelo tempo (tem quarenta anos), narra. É ela a voz
que se impõe à dos demais, sem causar qualquer desequilíbrio na
narrativa, e é ela quem puxa o fio de Ariadne. Depois disso,
apresenta-nos, entre outros, seus tios Dôrfo e Bené, os loucos;
Miguel, o vagabundo. Tia Teresa, a senhora de cabeleira branca que
ensina a morrer; Vó Carmela e a prima Carminha, o pai e a mãe
Oliveira, Inês, a cigana; o irmão engenheiro, Fábio e a dentuça
Maria Luiza. Também os tipos populares dos quais a igreja se
apropria depois de perseguir, como Nhô João.
Se
a família é o que – no senso comum – nos norteia, fornecendo o
amparo para a segurança e o pertencimento, Paula Fábrio,
corajosamente, expõe o contrário. A tal família tradicional é,
inúmeras vezes, disfuncional e, nesse caso, muito mais contribui
para a nossa perdição que para o nosso encontro. O labirinto é
também uma espécie de “matrioska” em que o labirinto maior (o
da miséria, por exemplo)contém a família, que contém o indivíduo,
que contém a sua própria individualidade. O corpo é outro
labirinto. A família, quanto mais disfuncional, mais é lugar para
estarmos perdidos, mostra Paula Fábrio.
Nesse
micromundo, o familiar, onde estabelecemos nossas primeiras e talvez
mais definitivas relações, treinamos e aprendemos a agir e reagir,
a situar e demonstrar (ou não) nossas emoções; é o primeiro lugar
onde amamos e odiamos, onde nos alegramos ou colecionamos mágoas. É
o primeiro lugar que nos dá limites, podendo tanto nos fornecer asas
quanto mutilá-las, em alguns casos para sempre. A mulher de quarenta
anos, de Desnorteio, registra um momento singular (que é
sempre em oposição àquela/àquele que nos cuida), o da percepção
da identidade:
“Naquela
manhã, eu acordara cedo para fazer uma expedição ao local onde
estava o objeto que despertara minha curiosidade inocente. Com o
auxílio de um banquinho, pude espreitá-lo com autonomia. O espelho.
Foi nesse momento que constatei, pela primeira vez, que eu não era
minha mãe, nem mesmo a extensão dela.”
Tratando
as emoções de modo complexo – como elas são – Desnorteio
acrescenta a ênfase ao incômodo. A família Oliveira, no seu modo
disfuncional, produz pessoas que se incomodam entre si – não que
elas tenham essa intenção – mas é o que fazem. O leitor sabe o
motivo de cada um, mas não o personagem, que mesmo o mais
coadjuvante é protagonista de si. Da pobreza, da violência
doméstica, do preconceito, das doenças não tratadas, do incesto em
segredo, do abandono (itens familiares tão familiares) seria raro
tirar algo que não fosse o incômodo e a vontade de fuga. Essa
vontade, inclusive, fica bem representada no irmão engenheiro que,
conscientemente, trabalha para abandonar a família. Cada um a seu
modo procura a fuga. O contraponto do incômodo é o alívio. Aquele
ou aquela que incomoda devem ser deixados o mais longe possível,
longe da vista, longe da sala de visita, longe da vida em comum, em
um manicômio longe da cidade. Uma família disfuncional sempre
lembra o que se quer esquecer. Não à toa, é conhecido o sentimento
de alívio quando um parente de relacionamento difícil, que nos
envergonha ou que dá muito trabalho, morre.
O
resultado por sentir alívio pela morte de um familiar ou mesmo
desejar a tragédia sobre um dos nossos, como o desejou
explicitamente Dôrfo, gera a culpa. A culpa tanto pode vir em forma
de tormento psicológico quanto na materialização de uma lata de
goiabada ou na doação de alguma pequena quantia de dinheiro. É
assim que Maria Luíza pede desculpas por ter superado a pobreza,
enquanto seus entes queridos estão na mendicância. Famílias têm
espaço para muito arrependimento e quando o amor e a conveniência
estiverem na mesma batalha, pode bem ser que a conveniência ganhe.
Paula
Fábrio traz em Desnorteio o amor torto das famílias
disfuncionais, ou aquilo que se naturaliza chamar de amor – ou que
a cultura manda chamar de amor – mas que olhado friamente, poderia
ganhar outros nomes. Miguel, por exemplo, parece amar de maneira
torta. Assim como Dôrfo só ama o proibido e sua violência pode
advir do fato de lhe ser proibido o amor ou a fala sobre esse amor.
Miguel talvez seja uma janela de redenção para o leitor observar,
pois afinal, o amor aparece nem que seja de relance. Alguns podem
achar sentido em muito infortúnio e um pouco (avaro) de amor;
sentimento que redime, mas parece insuficiente diante de tanta
desolação. Como é que se aprende a amar em famílias que desamam?
Como se explica a frouxidão dos laços entre os irmãos depois que o
pai e a mãe morrem, senão pelo amor obrigatório?
Ler
Desnorteio é penetrar no esforço de se localizar no
labirinto, de percorrer-lhe as partes para vê-lo de cima, em
panorâmica. Para se entender a própria história é preciso que se
“Recoste o ouvido sobre o azulejo e ouça. Está tudo lá”.
Essa a escuta que Desnorteio proporciona e incita, um eco de
sabedoria sobre pensar a vida em nível profundo, ter a coragem de
remontar os destroços, imaginar as partes que faltam, percorrer os
caminhos de perder-se, embrenhar-se no passado para que o presente
possa ser libertado. Paula Fábrio constrói uma narrativa
instigante, que demonstra seu olhar arguto para o mundo e para as
relações. Olhar sem julgamento, sem concessões, cru, mas não sem
compaixão:
“É
vital saber. Penetrar-lhes o pensamento. Capturar as peças que
faltam. Completar o neurótico quebra-cabeça. Parar o tempo,
organizar as falas, estabelecer o conforto da lógica. E as mãos
permanecem atadas. E as palavras não servem mais. Aos quarenta, as
perguntas se moldam à falta de respostas.”
Desnorteio
dá de cara com o Minotauro e pelo fio da palavra escapa.
***
Desnorteio
Paula
Fábrio
Romance
Ed.
Oficina Paula Fábrio
2ª
edição
2019