Por
Adriane Garcia
Um
gato é um ser de encantamento. É preciso ter perdido muito da
conexão com a natureza, com a vida, com o Mistério para não
reparar em um gato, quando ele está por perto. Um gato não passa
despercebido por quem está vivo. Talvez seja um bom teste: se vemos
ou não um gato.
Escrever
sobre um ser de encantamento e mistério, que figura na admiração e
imaginação de nossa espécie desde os primórdios – lembramo-nos
da deusa egípcia zoomórfica Bastet, corpo de mulher, cabeça felina
– é tarefa que requer uma penetração silenciosa no outro mundo:
o sutil. Quem sabe o mundo sutil não seja um outro mundo? Talvez
seja este mesmo, mas isso só um gato poderia nos responder.
O
gato, tradicionalmente, habita a companhia de escritores e bruxas –
além de ser um dos animais preferidos das crianças – ou seja,
gato é feito sob medida para os que intuem. Poetas podem ter tamanha
predileção por gatos, que chegam a compará-los com poemas, pela
imprevisibilidade de ambos. André
Ricardo Aguiar,
em sua plaquete Da
existência enquanto gato (Fresta
Editorial) brinda os leitores – e os amantes dos gatos – com
vinte poemas em que o gato é (e como poderia deixar de ser?) figura
soberana.
Alguns
desses poemas já nasceram clássicos, como é o caso de Loa
para um gato:
Loa
para um gato
O
gato, ele é todo uma antena
um
clérigo de patas, uma ponte
qualquer
para atingir o nunca
de
esquivez – todo ele mil gatos.
Todo
ele parte de si e nenhuma,
fácil
de perder-se na sombra,
mover-se
felinamente para o mistério
do
quarto – que mal respiramos.
Não
consigo sequer tocá-lo,
inútil
é a ilha do seu nome.
Sua
filosofia jamais suportaria
Os
gestos bruscos, as fomes.
Não
o temos. Um gato tem-nos.
E
sua leitura é sermos lidos
por
ele, sermos menos que uma
ideia
felina, um chamado.
O
acento interrogativo do rabo
diz
que o bicho é uma pergunta
que
não quer resposta. Seus olhos
de
desdém são segundas garras.
Deixá-lo
ser. Respira-se melhor o ar
volátil
enquanto a lenda estremece.
Nem
roca nem fuso no íntimo do lar.
Tece-se
aqui um gato.
Em
Da
existência enquanto gato,
André
Ricardo Aguiar
desenvolve uma poesia de fino humor, situações inusitadas como
encontrar um gato após a morte e saber que o céu dos gatos é o
inferno dos homens. Também há flagrantes deliciosos de pensamento:
o gato nos desloca e desnuda, ensina que nosso modo de vida é inútil
porque não aprende o vagar nem a verdadeira presença.
Os
místicos sabem que os cães protegem o mundo físico e os gatos, o
mundo espiritual. Afirmam que à noite, enquanto dormimos, o gato,
animal noturno, filtra nossas energias negativas e, durante o dia,
enquanto estamos em vigília, o gato dorme, livrando-se do que nos
limpou. No poema Carta
do gato ao possível dono,
ele (eu-lírico-felino) nos avisa: “três
quartos de um gato/ tem um deus vigilante”.
Há
que se registrar que poemas não se salvam apenas pelos temas, poemas
são, antes, a capacidade de trazer o tema à linguagem. André
Ricardo Aguiar
domina a feitura desse artefato. Sua poesia é exata, lúdica,
instigante e imagética. Sua observação do mundo (no caso, do gato)
consegue trazer versos como estes, em Sustentável:
“o
sossego contido na pupila/ como um sol que derrete”.
No poema Cadeado,
um caso curioso é não sabermos se o eu-lírico é um gato, ou se é
o poeta em pleno zoomorfismo.
Lendo
Da
existência enquanto gato
podemos formular perguntas como: ver um gato é vê-lo ou imaginá-lo?
Parece muito mais que um gato nos vê: “Não
menos fiel que o cão, o gato/ é o verdadeiro amigo imaginário.”
A
boa dose de culpa no poema Il
castrato,
mostra que o “dono” não aprendeu muito com “seu” gato.
Afinal, castra-o e apresenta justificativas e minimizações, muito
mais para aliviar a consciência de si mesmo que para o gato. Atribui
à castração o efeito de tornar o gato um monge, quando um gato o é
de qualquer forma (e jamais carrega culpas).
Da
existência enquanto gato
pertence àquela poesia que aprisiona nossa atenção, que concentra
nosso silêncio para que possamos olhar na tentativa de ver. Dos
assombros que um gato acrescenta à nossa experiência está seu
pulo, salto. Repare: um gato está e não está. Vinte poemas
convidam para essa beleza e sensibilidade.
Como
flagrar um gato caseiro
[A
Marco de Menezes]
Deve-se
começar por um movimento furtivo da tarde
e
ir pondo aqui e ali móveis caseiros e um ar poroso
de
seres que fazem uma impossível sesta em dia de trabalho.
Ou
se o fundo melancólico do barulho do elevador
indicar
que o dia existe por conta própria, também a sombra
dos
livros irrequietos para uma próxima mudança
Pode-se
dispensar a existência de Deus, mas não suas tramas
Azuis
e alguma hipótese gotejante ali na cozinha. Um frêmito
(caça
a um rato imaginário) ali nas dobras da louça lavada.
João
Gilberto baixinho no rádio, uma maçaneta da porta
com
defeito, e pouco a pouco, lentamente, almofadas e gato
se
distinguem, o último pula ao chão com a mesma gravidade
de
um astronauta já ciente de que a lua é toda sua:
a
casa deserta.
***
Da
existência enquanto gato
André
Ricardo Aguiar
Poesia
Fresta
editorial
2019
Minha poeta e meu poeta !!! Meus gatos!!!
ResponderExcluirUma penetração silenciosa no outro mundo: o sutil
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