Grata
surpresa foi ter em mãos Coisas difíceis de ressuscitar, de Juliana
Garbayo, livro com o qual a autora ganhou o Prêmio Digital da Biblioteca
do Paraná, em 2021. A coletânea publicada pela Caos e Letras é
composta por vinte contos. Primeiro livro da autora, nele já podemos concluir
que se trata de uma excelente contista.
Suas
personagens e situações são diversas, muitas delas inusitadas, sendo a maioria
narrada em primeira pessoa, o que nos aproxima bastante dos seus protagonistas.
Juliana Garbayo narra a vida nas suas nuances profundas, a vida como ela
é. Flagra as pessoas como elas são, nas intimidades mais recônditas de seus
pensamentos e pulsões. Em comum, os contos trazem momentos de trauma ou de suas
consequências atuantes, em muitos deles destacam-se a questão da passagem do
tempo e da consequente deterioração das relações, principalmente as de
casamento. No centro da coletânea, o luto, por vezes a melancolia, a dor das
perdas.
Coisas
difíceis de ressuscitar é um livro que lemos com o “coração na mão”. A
sensação de estar em algum lugar conhecido, pois todos já perdemos algo ou
alguém, faz a leitura ser conduzida por muita empatia. É assim que entramos em
um quarto de hospital para visitar um rapaz que tem seu pé amputado enquanto
seu amor de infância ecoa. Ao mesmo tempo, a autora nos faz perceber as
relações que nos rodeiam quando estamos em extrema vulnerabilidade. Para além
dos temas, há uma eficácia notável em saber contar literariamente. Juliana
Garbayo oferece frases certeiras que aumentam a verossimilhança e nos dão
um susto, por constituírem detalhes psicológicos em meio à narração dos fatos;
detalhes estes que só poderiam mesmo saber aquele que passa por tal dor: “Glorinha
se ofereceu pra carregar a sacola com minha escova de dentes, meu pente e o pé
direito do meu tênis, que eu não sabia se devia jogar fora ou não.”
Habitadas
por gente de carne e osso, as narrativas de Garbayo tratam de
alcoolismo, recaídas, rejeição infantil, separações, depressão, vergonha,
doença. Encontramos nelas mães cruéis, transtornadas, que competem com as
filhas; filhos adolescentes que têm que tomar as rédeas da casa, perda da estrutura
familiar e a dura constatação de que a vida tem que continuar sob novas
condições. Um fio de tristeza perpassa situações de desamor, a ausência de um
pai morto, o terror da anorexia, a solidão, a perda da liberdade em casamentos
cuja divisão de tarefas é injusta e desigual, a perda da fantasia. Há um tom de
desfazimento que nos diz sobre um mundo antes conhecido que não voltará jamais,
a perda de objetos que antes faziam sentido – que davam um sentido à vida – trazendo
na sua falta o vazio, a desestruturação emocional e financeira.
Juliana
Garbayo oferece uma galeria de coisas que podemos perder, entre elas, notável,
aparece nosso convívio amoroso com os animais, seja o coveiro-jardineiro
que adotou um bode, seja o homem que chora diante da dor da morte de seu
cavalo, a mulher que ama uma porca ou a outra que empalha um cão. Até mesmo um
peixinho nos comove. Há também, como no conto O antiquário da Madame Bernard,
a perda do glamour, da juventude, a chegada da velhice e as perdas menores,
quase não notadas, como um adeus que deixamos de dar a um amigo e simplesmente
seguimos em frente. Neste sentido, brilhante a escolha de um antiquário e um
brechó como significantes de uma vida que vai perdendo viço: “Quando eu
descia do ônibus e pisava aquelas calçadas de granito e pedra portuguesa,
tentava imaginar o glamour das épocas passadas, mas só via poças de mijo,
guimbas de cigarro, mendigos pedindo esmola e baratas passeando de um lado para
o outro. Era irônica a semelhança entre o que o tempo tinha feito com aquela
rua e com a Madame Bernard.”
Ainda
que as histórias sejam tristes, há um humor delicioso, bem medido, aqui e ali
na coletânea: “Acho que a Justine confiava demais nos clientes, talvez não
acreditasse que alguém roubaria uma grande dama do teatro como ela, mas eu, que
já tinha levado pra casa dois dos seus anéis (sem falar numa presilha de cabelo
cheia de pérolas falsas e strass), era mais cética.” No seu modo de contar,
que encontra diferentes volumes tonais (inclusive formal, como em contos que
utilizam uma espécie de associação livre na cabeça das personagens), o que
deixa a leitura livre de qualquer cansaço, Garbayo narra coisas que
acontecem, gente como a gente que não dá conta de ser “correto” o tempo todo,
que deixa as relações sem respostas, que deseja vingança contra os
algozes, mas que sofre quando esses amados algozes sofrem. Gente que tem
inveja. Gente que perde a sanidade e que passa a viver em uma realidade
apartada da maioria. A autora faz isso com uma competência enorme de captar os
sentimentos e transmiti-los.
Coisas
difíceis de ressuscitar é um livro que mantém suas alta qualidade e capacidade
de interesse na leitura do primeiro ao último conto. Se as coisas são difíceis
de ressuscitar, isso nos leva direto à ideia de morte. Na verdade, um eufemismo
– pois precisamos de eufemismos para suportar o real – diante das coisas impossíveis
de ressuscitar. É o que cada personagem de Juliana Garbayo vai
descobrindo, uns com mais, outros com menos chance de superação. Como excelente
contista que é, Juliana Garbayo não julga seus personagens, ela os
compreende. E nós também podemos compreender melhor as perdas – e a dor – de
todos nós quando passamos um tempo com os habitantes deste livro.
“Minhas
amigas me estranham por ter empalhado o cão. Imagina se soubessem que me
correspondo com um preso violento. Só contei à Jane. Ela se ofereceu pra doar
livros, mas o presídio onde ele está fica longe demais. Melhor assim. Jane é
muito engraçada. Diz que não acredita em Deus, mas é a pessoa mais santa que eu
conheço. Já eu escrevo cartas pra um homem preso porque quero falar de mim
mesma. Depois posto foto dos envelopes selados e escrevo Lembrai-vos dos presos
como se estivésseis presos com eles. Rende muitas curtidas. Tirei da carta aos
Hebreus. Jane é ateia, mas da forma que eu vejo é mais crente do que eu, a
diferença é que o deus dela se chama Acaso. Ela diz que é por Acaso que as
árvores parecem pulmões; as nozes, cérebros; as frutas, vaginas; os rios,
veias. Só pode existir vida no nosso planeta entre cento e sessenta bilhões de
outros porque a vida nasceu por Acaso. Uma partícula nadava na sopa molecular e
por Acaso começou a se replicar, por acaso o universo explodiu e se expandiu,
por Acaso os brotos de samambaia obedecem à mesma proporção que as conchas dos
náutilus, por Acaso um homem nasce príncipe na Noruega e outro mendigo em
Chade. Quando bebemos vinho juntas, ergo a taça e digo: ao deus mais poderoso
de todos, o Acaso, e rio, mas Jane fica passada. Pra ela, o meu Deus não faz
sentido e deve ser louco, nada que ele faz tem lógica, criou uma fruta que não
era pra comer, deixou seu único filho ser morto e o mundo continuou igual,
escolheu o povo hebreu sem qualquer explicação. Eu escrevo para um homicida a
mil e trezentos quilômetros de distância e recuso a chamada quando ele liga a
cobrar. Ele pensa que sou uma boa mulher. Em sua última carta me pediu pra
rezar por ele. Como se minha oração tivesse peso diferente. Uma vez perguntou
se aceitaria encontrá-lo, caso saísse na condicional. O bom de conversar por
cartas é que você só responde o que quer.”
(p.
107/108)
Coisas
difíceis de ressuscitar
Juliana
Garbayo
Contos
Ed.
Caos & Letras
2023