Por
Adriane Garcia
Numa
parede a mancha branca
desenha
a lembrança da armadura.
No
meu hábito ansioso por ler não sei quantos livros ao mesmo tempo,
interrompi a leitura de Corpos em Marcha, de Simone de Andrade Neves
e durante a semana fui retomá-la. Mas sabe aqueles livros que a
gente não deve partir a leitura? Pois é. Eu comecei novamente para
ir num fôlego só. E lê-lo duas vezes é, sem dúvida alguma,
ganhar.
À
medida que prosseguia ia ficando fascinada com o movimento em que me
vi entrando, com o perceber a grande habilidade desta poeta que nos
convida não só a uma viagem, mas a uma passada. Tudo em Corpos em
marcha é coerente e coeso, tudo “fecha”, sem sequer um
lugar-comum. Simone de Andrade Neves é poeta das mais especiais no
que tange ao seu tratamento da palavra e dos temas.
A marcha, sabemos, é um movimento de passos ordenados, com ritmo contínuo onde as mudanças de ordem servem apenas para marcar novo ritmo contínuo. Numa marcha se obedece, numa marcha ruma-se a um fim; vários andando juntos e parecendo um só. Analogias com soldados cumprindo um destino, o movimento que lhes é preciso, do centro de si, para avançar; pois recuar, ainda é marcha.
Então, comecei a marchar numa cidade do interior, num cenário de fazendas e solo de terra e folhas secas; noutras vezes em lodo e húmus; acompanhei-a no sol que entrava nas janelas e fui com ela até a casa de erva-mate, vi as pás modificarem a matéria (morte?), olhei embaixo dos móveis antigos, vi fósseis de insetos, matei bois e porcos e lhes comi a carne, procurei um brinquedo que caiu numa fresta, fui ao enterro do menino enrolado em morim… fiz isso tudo em velocidade contínua, ditada pela poeta, e ainda quando nossa marcha se deu em mudança abrupta era apenas novo comando para novamente entrarmos em continuidade. Na maioria das vezes, a marcha foi suave, bucólica, em algum momento levemente nostálgica, sem que o livro deixasse em página alguma de lidar com a força, ou não haveria marcha. Paradoxo que esta poeta trabalha com maestria.
Corpos em marcha é um livro profundo, extremamente bem escrito, sem desperdício algum e também sem nenhuma falta ao que se pretende. Podemos chamar isso de exatidão. Fala de nossa condição de seres finitos, de nossas transformações inevitáveis, da nossa crueldade e sofrimentos tão naturais, do papel da memória e da imaginação na recriação do que já perdemos.
O talento de Simone de Andrade Neves é que sua poesia jamais é óbvia, lida com o modo mais difícil de fazer e consegue não cair num hermetismo que retiraria nossa chance de comunicação. Entre violências de uma condição predadora, num mundo predador, a complexidade de amar, apesar de e como parte de.
A marcha, sabemos, é um movimento de passos ordenados, com ritmo contínuo onde as mudanças de ordem servem apenas para marcar novo ritmo contínuo. Numa marcha se obedece, numa marcha ruma-se a um fim; vários andando juntos e parecendo um só. Analogias com soldados cumprindo um destino, o movimento que lhes é preciso, do centro de si, para avançar; pois recuar, ainda é marcha.
Então, comecei a marchar numa cidade do interior, num cenário de fazendas e solo de terra e folhas secas; noutras vezes em lodo e húmus; acompanhei-a no sol que entrava nas janelas e fui com ela até a casa de erva-mate, vi as pás modificarem a matéria (morte?), olhei embaixo dos móveis antigos, vi fósseis de insetos, matei bois e porcos e lhes comi a carne, procurei um brinquedo que caiu numa fresta, fui ao enterro do menino enrolado em morim… fiz isso tudo em velocidade contínua, ditada pela poeta, e ainda quando nossa marcha se deu em mudança abrupta era apenas novo comando para novamente entrarmos em continuidade. Na maioria das vezes, a marcha foi suave, bucólica, em algum momento levemente nostálgica, sem que o livro deixasse em página alguma de lidar com a força, ou não haveria marcha. Paradoxo que esta poeta trabalha com maestria.
Corpos em marcha é um livro profundo, extremamente bem escrito, sem desperdício algum e também sem nenhuma falta ao que se pretende. Podemos chamar isso de exatidão. Fala de nossa condição de seres finitos, de nossas transformações inevitáveis, da nossa crueldade e sofrimentos tão naturais, do papel da memória e da imaginação na recriação do que já perdemos.
O talento de Simone de Andrade Neves é que sua poesia jamais é óbvia, lida com o modo mais difícil de fazer e consegue não cair num hermetismo que retiraria nossa chance de comunicação. Entre violências de uma condição predadora, num mundo predador, a complexidade de amar, apesar de e como parte de.
Dentro
do sonho
ouço
o trotar de um cavalo
e
oco de rosetas.
É
ele!
paramento
e montaria,
no
amparo de um arreio de prata
passando
a vila em revista
absorto
em ofício sacerdotal,
na
vigília,
ignora
a
disritmia do meu coração.
A descrição dos lugares, a menção dos objetos serve à Simone de Andrade Neves para pontuar o que realmente importa: essência, seiva, essa palavra que lhe é cara. Enquanto há vida, ávida, porque é no vivo que a morte é vingada.
Tracionada
a ferrugem dos ferrolhos
reage
ao sol
e
rescende o cheiro dos carvalhos
no
escorrer das ocras:
o
ferro a menstruar no tempo.
Transversa
a
luz revela o desenho das teias:
colcha
prateada de neurônios
–
esses
nervos da vida.
Firmes
ali sem mais estar
mãos
invisíveis no ensaio do tear.
Um desnudamento do mundo e das aparências. A poeta entende o que o mundo é. Olha ampulhetas, procura o homem que está sob o homem e não encontra, pois a poesia não existe pra responder, mas para nos ajudar a suportar a marcha ao inexorável.
Para não copiar o livro todo, que é um primor do início ao fim, deixo aqui esta iluminação de nossa Simone de Andrade Neves:
O
tempo abranda as coisas
O
Sol
fez
branco
o
terço rosa
deixado
sobre
o túmulo.
Um projeto extremamente bem realizado, que emociona e encanta, pelo conteúdo e pela forma. Uma sorte poder lê-lo e tê-lo entre livros queridos.
Livro:
Corpos em marcha
Simone de Andrade Neves
editora Scriptum
2015