“Solidão é
isso: um golpe no rosto e outro na nuca? Morrer sozinha, sob uma
montanha de corpos indiferentes?”
Por Adriane Garcia
Anacrônicos
(@linkeditora), de Luiz Bras (heterônimo de Nelson de Oliveira) é
um livro feito de ótima ficção científica. Em edição bilíngue
(português-espanhol), a novela ocupa 34 páginas pulsantes, com uma
narrativa ágil, que aguça a curiosidade do leitor até o fim. A
história envolve uma série de surpresas e o narrador é uma delas
(portanto, sobre isso, nada contarei).
Em um mundo futuro,
que não parece tão distante, haja vista a velocidade desnorteadora
dos avanços tecnológicos, uma mulher, cuja idade não fica clara,
pois os processos de juventude e velhice já se confundem, vive o
inusitado de receber em casa a visita da mãe, fazendo para a filha
um bolo assado à moda antiga, numa espécie de déjà vu. O detalhe
é que a mãe já está morta, há décadas.
Logo percebemos que
o aparecimento de entes queridos que já morreram é um fenômeno que
ultrapassa as fronteiras da casa da protagonista. “Essa cena é
real? Está mesmo acontecendo?”
Com o tema da morte
tomando a cena e na tentativa de entender o fenômeno, as pessoas
acorrem aos cemitérios (com memórias digitais), mas toda a relação
com a morte e com os mortos começa a se modificar, pois qual o novo
sentido do fim quando ele já não é mais definitivo neste mundo?
Qual o sentido de visitar um cemitério se os mortos retornaram para
casa? Que interação é possível nesse fenômeno? O que acontece
com as lembranças (que sabemos, são construídas também pela
imaginação) quando o processo lembrado é claramente diferente do
processo agora possível de ser observado e posto à prova?
Há tempos a ficção
científica aponta a escravização das máquinas pelos homens e a
inversão: a dos homens pelas máquinas. Neste Anacrônicos,
os esclaus (radical que dá origem à palavra escravo em várias
línguas) são robôs desprezados pelos humanos, colocados para
realizar os serviços considerados mais baixos. O leitor descobrirá
surpresas por aqui também.
Além de um livro
muito criativo, que consegue falar de um tema como a
morte, usando de muita lucidez, Luiz Bras nos presenteia com um
humor inteligente e a chance de assistirmos à volta de mortos
imagináveis e inimagináveis.
“SUA MÃE
APARECE NA COZINHA todos os dias às 15h15, faz o bolo e desaparece
às 16h45. Não se atrasa nem falta.
Essa é a breve
história de como a improvável felicidade virou algo pegajoso e
frio.
Medo.
Ao entrar na
cozinha, primeiro você imaginou que estivesse delirando. Mas a
consistência da cena não era compatível com tudo o que você já
leu sobre delírios e alucinações.
Depois você
tentou conversar com sua mãe. Mas logo percebeu que a comunicação
seria impossível.
Sempre que
aparece, ela segue o mesmíssimo roteiro, como se estivesse presa num
filme. Os mesmos movimentos, as mesmas falas na mesma sequência.
Você até
imaginou que se tratava de uma projeção holográfica de altíssima
qualidade.
Porém essa
suposição se desfez rápido. Bastou você tocar sua mãe no braço
pra constatar que ela não era uma simples ilusão audiovisual. Ela é
de carne e osso.”
(p.15/16)
***
Anacrônicos
Luiz Bras
Novela
@linkeditora
2017