sexta-feira, 9 de março de 2018

Os ratos roeram o azul – De César Gilcevi




Por Adriane Garcia


você está fodendo tudo”
Minha alma começa a ser íngreme me escalam”

Terminei a leitura, fluida e absorvente, do livro Os ratos roeram o azul (ed. Letramento, 2016), de César Gilcevi. O título já é um poema inteiro, e o livro, no formato retangular, todo ilustrado com colagens de Warley Desali, é bonito e instiga ao manuseio. Livro para ler e para olhar.

Nas epígrafes, Gilcevi sugere seu universo eclético e vasto de referências, da tradição canônica da poesia ao rock, da literatura beat ao mundo católico e transcendente de Adélia Prado. No decorrer das páginas, encontramos tanto o eco de Drummond como o de Piva, mas em um exercício antropofágico do autor, emergindo uma poesia rica e de voz própria.

Assim como o volume é ilustrado com colagens que trabalham distorções sobre as fotografias de infância e dos antepassados do poeta, os poemas são tomados de memória e ancestralidade: “carrego o retrato empoeirado onde mamãe sorri/ sem dentes carrego este sonho intranquilo”. A cidade e seus arredores são o palco, ora atual, ora passado, para as cenas flagradas pela poesia. Belo Horizonte (e arredores), por vezes rural, aparece ao lado da metrópole urbana, com seu rio Arrudas poluído, acordando para a realidade difícil, cheia das baldeações daqueles que têm que dar conta do pão de cada dia, pois “o senhorio nunca dorme e me aguarda na portaria”.

Em seus versos, o poeta traça o surreal, o onírico e a realidade mais crua ( que de tão crua parece surreal). Entre imaginação e denúncia, a poesia de Gilcevi é um coquetel de excelente mistura. Assim, a igreja de São Sebastião no Barro Preto, inspira o poeta aos terríveis versos: “carrego o revel torso de são sebastião/esfaqueado por michês numa alameda sem saída do barro preto”. Os subúrbios o levam às “lolitas manchadas de acne & batom”. Em um jogo de empatia, Os ratos roeram o azul é um livro que, ao falar dos caminhos do poeta, acaba falando de uma cidade inteira, pelo olhar de quem pisa o seu chão.

A afirmação da ancestralidade é outro ponto fulcral em Os ratos roeram o azul. Ao dizer do “clã dos silva” e “clã dos souza”, dois títulos de poemas do livro, Gilcevi trabalha a profusão de etnias que compuseram a família, brancos, negros e índios. Em todo o livro pode-se perceber que o olhar do poeta é marcado pela experiência da diversidade, do sincretismo religioso e mesmo da recusa da religião. Também é notável o adensamento de sua interpretação de mundo quando somou às experiências de infância as leituras e informações da cultura letrada: “vó preta macera patuás me benze/ com alquímicas negras vogais”.

Assim como a infância é tema de vários poemas, ligada, não raro, à pobreza e à dificuldade econômica, “aqui as crianças já nascem/desmemoriadas do azul”, a adolescência ganha versos memoráveis, fazendo-nos pensar que a chegada do sêmen é, de certa forma, a morte do menino:

chega o outono
& eles constroem um cômodo só para mim
(macho apartado das irmãs & primas & seu jardim
urdindo o incesto & a orquídea

A juventude é retratada em diversos poemas que versam sobre dor, frustração amorosa, drogas e derrota, quase sempre ligada, direta ou indiretamente, à solidão: “se continuar assim morrerei/ perdulário poeta acoólatra velho/ & brocha recitando de cabeça lament for my cock/ acovardado no beliche de uma pensão no centro”. Tudo isso em poemas que, num fluxo, levam o leitor a ler até o fim, acompanhando a linguagem densa e forte, que sabe medir o lírico e o antilírico, alinhando-se a uma estética contemporânea.

Os ratos roeram o azul desperta nossos sentimentos universais, porque sabe cantar a sua aldeia.


Infância X
(barreiro de cima)

o meu pai teve a mãe
& o meu pai teve o pai
só que para ele ter o pai
ele teve os avós
a única viva é a mãe da mãe do meu pai
a bisa dasdor que matou o marido com o pilão
pra se casar com o primo
ele arrancou uma costela dela
& do osso nasceu uma amante
que com ele teve mais vinte anti-heróis
que sabiam amansar o azul & a pólvora
& povoaram o barreiro

deus viu que isso era bom
& foi-se embora


  1. clã dos silva

da parte do pai vinham os de pele escura & parda
índios pegos no laço ladrões d'além mar capitães do mato
idólatras do cobre da preguiça & das armas
malvivendo amontoados naquela casa pau a pique senzala
partiam para o leste sob a tutela da noche oscura
levavam na matula a bússola a meiota de cachaça
carcaças de pequenos animais
sapienciais pergaminhos: eis que vou agora dormir no pó
se me procurares pela manhã já não existirei

  1. clã dos souza
os irmãos da mãe na fronte acuada traziam sardas
lixo branco escorraçado das terras de lund
lazarones no monturo do morro das pedras
ralé de pés rachados sonâmbulos na encruzilhada
malvivendo amontoados naquela casa adobe senzala
pico & cola arranhando as grades da alma
falavam uma gíria bárbara & cheia de fúria
:o terceiro mundo vai explodir quem tiver de sapato não sobra


infância XII
(manual da mãe)

se você andar de costas
vai encontrar sua mãe morta
em pé atrás da porta
se pisar numa risca no chão
a espinha da mãe quebra
blusa do avesso não pode
chinelo virado a mãe morre
tá tudo na bíblia o que pode
o que não pode
juro pela minha mãe mortinha
bom é ter mãe
mesmo que seja uma silva

drogaria drugstore

ainda bem que vocês não me viram precoce drogaria drugstore
520 wolts no terceiro coração sobressalente & inafiançável
revirando vicious no mundaréu das tretas bocadas & beiras
ventosa vila pinho nova cintra betânia bonsucesso b.d.i magé
desemprego & buças feias sob o céu avariado
leréia language de beats suburbanos roubando carro pra dar um rolê
no olho da rua no olho do ku na casa do karalho na putaqopariu
o pau príapo porrete cocaínado a convidada
de xota azul & nariz guloso
serial killer crime scene madrugabasura de corpos desovados
ao que tudo indica devido ao tipo de vestimenta a vítima
era garota de programa falou na TV o delegado


*** 
Os ratos roeram o azul
César Gilcevi
Poesia
Ed. Letramento
2016


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