Por Adriane Garcia
Intermitentes são
os nossos estados interiores. É por essa característica do estar
humano que Rosana Chrispim
desenvolve os poemas de Caderno de Intermitências (ed.
Patuá, 2017).
A poesia de
Chrispim, trabalhada com a qualidade de enigma comunicável, é
aquilo que se diz e aquilo que se esconde, conforme ela já nos dá
uma pista na epígrafe de Clarice Lispector: “Ouve-me, ouve meu
silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa.”
Em Caderno de
intermitências, a passagem do tempo aparece como o elemento que nada
abranda, nada acrescenta no sentido do conhecimento, apenas aumenta
as dúvidas e as incertezas. Transpor a si mesmo não é possível, e
até mesmo a saída que a poeta aponta não revela muita esperança,
pois “se/ desse para ver/ com os olhos alheios/ pudesse crer/ com a
fé dos outros/ calmaria // as horas só/ contradizem toda/ ilusão”.
Em um mundo interior
travado de lutas – e esse é o palco onde a poesia de Rosana
Chrispim se passa – a condição humana é marcada pela angústia,
pois somos feitos do que é tênue, inconstante e indefinível. Nada
dura ou se mantém. Lidar com uma mutabilidade permanente (eis o
paradoxo) pode levar à tentação do auto-engano ou ao imenso
cansaço de existir. Consciente, o ser vê o mundo como lama,
imundície estabelecida pelo poder, que usa a religião, a penúria
espiritual, os preconceitos, os jogos sujos da dominação social e
econômica para se perpetuar.
Nesse contexto, o
poema surge como reação a essa batalha interna, do ser que sabe do
mundo o suficiente para desprezá-lo, mas que, pela própria
condição, não pode deixar de viver nele. O poema é o
acontecimento luminoso no breu, porque ainda pode vir tomado de
encantamento: “no meio/ a flor (do) improvável/ estranheza e
encanto/ entre espinhos não// na fenda entre/ lugar e hora/ o golpe
do olhar/ desprevenido pronto/ para ver/ ?/ nem tudo perdido”. A
beleza é a forma de resistir, as coisas esperam para ser definidas
pela palavra e só assim a vida ganha algum sentido.
Poesia reflexiva, a
poeta fala para aquele que se dispõe a silenciar e perceber que o
nosso mal não vem de outra fonte que não seja a nossa; fala de
nossa impotência, nossa imperícia, nossa insuficiência, “incautos/
dublês de navegantes/ e peixes”. O silêncio pertence aos sábios
e só nele é possível alguma preservação. Depois de descortinar o
real, o que sobra?
Em versos de uma
melancolia carregada de beleza, onde “o que perdura é/ árido”,
Rosana Chrispim, em determinado momento, diz encontrar o poema, mas
não a poesia. Não é verdade. Ela encontra os dois.
Sobre voo
eles que já não
tinham asas
quando nasciam as
minhas
aparavam
para que ao usá-las
mantivesse
os pés no chão
entendi o ar
e o caminho
por esse axioma
assim
que sendo ave nunca
fui pássaro
paliativo
novas portas de
bares
farmácias
igrejas
(variações sobre o
mesmo equívoco)
abrem-se em profusão
os homens com suas
feridas
os males com suas
metástases
todos muitos e
nenhum
almas cada vez mais
rasas
e degradação
cumprida
a risco(a)
reserva
primeiro falar
herança acúmulo
e significação
gozo e tormento
depois calar
aprendizado
preservação
a palavra deixada só
para os ouvidos
comedimento e tato
o silêncio
apre(e)ndido é
indolor à carne
poemico
nem
nada vale a pena
porque a alma
sabe-se
pequena
!
***
Cadernos de
intermitências
Rosana Chrispim
Poesia
Ed. Patuá
2017
Nossa, Adriane, fiquei de fato emocionada! Que leitura sensível e generosa! Grata. Gratíssima.
ResponderExcluirHoje voltei aqui, da releitura de seu livro, tão bonito.
ExcluirGrata, também, Rosana, por oferecer as suas palavras.
ResponderExcluirGrande abraço.
Excelente resenha para um grande trabalho. Parabéns à Rosana Chrispim pela consistência de sua poética e à Adriane, pela leitura sofisticada.
ResponderExcluirabs
Oi, Gilberto, querido
Excluirque alegria você por aqui.
Obrigada pela leitura e pelo retorno
Abraço para todos daí de São Miguel