Fundir
o metal para ter este livro nas mãos. A poesia de Ricardo
Silvestrin.
Há milhões de anos, os australopithecus tentavam o exercício difícil de andar apenas sobre as duas patas traseiras, liberando assim as patas dianteiras. O quadrúpede evoluía para o bípede. Patas liberadas, tornadas mãos, exercício de gerações, o homo habilis, com quase o dobro da capacidade craniana do australopithecus, fazia da sua imperfeição, perante a força da natureza, o motor para a criatividade. A criatividade para a sobrevivência. Desenvolvia a linguagem, rudimentar, com a qual garantia a transmissão do conhecimento que produzia. Usava o fogo para se aquecer. Destacava-se, de forma notável, entre os grupos de hominídeos. Assim como se destacará, de forma definitiva, o homo erectus, exímio caçador, inventor de armadilhas e que sabia isolar a umidade do interior das cavernas, utilizando pedras.
Do instrumento de pedra, madeira e osso à descoberta do metal, sua manipulação a frio ao início da técnica de fundição, milhões de anos. Eis o homo sapiens, aceleração não mais de milhões, mas dentro de somente milhares de anos, capaz tanto do domínio sobre estes saberes como de domesticar o cão, retirar de forma intensiva os moluscos do mar, inventar a arte e a metafísica, pensar o Além, preocupar-se com a cura dos doentes, enterrar os mortos, iluminar as noites, aumentando o tempo das atividades diárias. Pensar e conhecer é uma resposta do homem à sua imperfeição. Aquilo que é perfeito jamais precisou mudar.
Por Adriane Garcia
Há milhões de anos, os australopithecus tentavam o exercício difícil de andar apenas sobre as duas patas traseiras, liberando assim as patas dianteiras. O quadrúpede evoluía para o bípede. Patas liberadas, tornadas mãos, exercício de gerações, o homo habilis, com quase o dobro da capacidade craniana do australopithecus, fazia da sua imperfeição, perante a força da natureza, o motor para a criatividade. A criatividade para a sobrevivência. Desenvolvia a linguagem, rudimentar, com a qual garantia a transmissão do conhecimento que produzia. Usava o fogo para se aquecer. Destacava-se, de forma notável, entre os grupos de hominídeos. Assim como se destacará, de forma definitiva, o homo erectus, exímio caçador, inventor de armadilhas e que sabia isolar a umidade do interior das cavernas, utilizando pedras.
Do instrumento de pedra, madeira e osso à descoberta do metal, sua manipulação a frio ao início da técnica de fundição, milhões de anos. Eis o homo sapiens, aceleração não mais de milhões, mas dentro de somente milhares de anos, capaz tanto do domínio sobre estes saberes como de domesticar o cão, retirar de forma intensiva os moluscos do mar, inventar a arte e a metafísica, pensar o Além, preocupar-se com a cura dos doentes, enterrar os mortos, iluminar as noites, aumentando o tempo das atividades diárias. Pensar e conhecer é uma resposta do homem à sua imperfeição. Aquilo que é perfeito jamais precisou mudar.
De
pensar e conhecer, o homem dá outro grande salto: escreve. O que
desde a primeira vez deve ter pressuposto que teria que ter alguém
para ler.
Uma introdução deste tamanho, apesar de resumidíssima, para dizer que não tive como ler o livro METAL, de RICARDO SILVESTRIN (editora Artes e Ofícios, 2013), sem fazer esta viagem à nossa pré-história. Metal é um livro de um poeta atento e sincero às mesmas dúvidas cruciais que nos afligiram desde que começamos a pensar (e não são essas as nossas dúvidas que importam?), um livro da confissão de nossa imperfeição, da atenção à consciência dos nossos sentimentos, mas de forma alguma é um livro pesaroso ou melancólico. Ao contrário, Metal é, principalmente na segunda metade (a primeira metade é mais filosófica e deliciosa também), uma obra do homem que aprendeu a rir, homo ridens.
Neste poema que pergunta para que serve a arte, o poeta nos remonta à inutilidade das coisas; porém, ao imperativo maior que é viver:
Uma introdução deste tamanho, apesar de resumidíssima, para dizer que não tive como ler o livro METAL, de RICARDO SILVESTRIN (editora Artes e Ofícios, 2013), sem fazer esta viagem à nossa pré-história. Metal é um livro de um poeta atento e sincero às mesmas dúvidas cruciais que nos afligiram desde que começamos a pensar (e não são essas as nossas dúvidas que importam?), um livro da confissão de nossa imperfeição, da atenção à consciência dos nossos sentimentos, mas de forma alguma é um livro pesaroso ou melancólico. Ao contrário, Metal é, principalmente na segunda metade (a primeira metade é mais filosófica e deliciosa também), uma obra do homem que aprendeu a rir, homo ridens.
Neste poema que pergunta para que serve a arte, o poeta nos remonta à inutilidade das coisas; porém, ao imperativo maior que é viver:
Não
me pergunte pra que serve a arte
se
você sabe.
Antes
de nascer já sabia.
Se
alimentava de arte
pelo
cordão umbilical.
De
arte vivia
na
solidão e no escuro.
De
outro modo,
como
conseguiria
atravessar
nove meses
sem
respostas
para
suas perguntas?
Ritmo
é resposta
no
som submerso.
Só
a melodia da fala,
que
nada dizia,
uma
entonação,
uma
dança
das
mãos sobre o ventre
em
que você dormia.
Desde
que nasceu,
sem
arte,
que
você sabe como ninguém pra que serve,
para
que a vida serviria?
Silvestrin trabalha com o sentir sobre a observação, em vários poemas nota-se que o poeta é um observador do que está fora, o mundo natural, e que no amálgama com o que está dentro faz a sua viagem poética, que nos oferece. É uma poesia da indagação, que admite o mistério, que não força para respondê-lo, pois reconhece seu tamanho no universo.
Silvestrin trabalha com o sentir sobre a observação, em vários poemas nota-se que o poeta é um observador do que está fora, o mundo natural, e que no amálgama com o que está dentro faz a sua viagem poética, que nos oferece. É uma poesia da indagação, que admite o mistério, que não força para respondê-lo, pois reconhece seu tamanho no universo.
A
aranha não pôde, mas o homem,
e
aqui digo homem no lugar de ser humano,
homem
ou mulher,
homulher,
atravessa
séculos entranhado na trama dos dramas
Sua atenção sobre o mundo (e sobre o corpo, que habita o mundo) leva-o naturalmente a usar termos muito comuns da biologia, mas tudo muito sutilmente, pois Silvestrin, tanto na forma quanto no tema, vai dando ao poema o que o poema impera. O que advém disso é uma grande liberdade, mas não do poeta (o que seria um engano) e sim de sua poesia, calculada onde deve ser. O homem que criou-se a si também encheu o mundo de fantasia:
Sua atenção sobre o mundo (e sobre o corpo, que habita o mundo) leva-o naturalmente a usar termos muito comuns da biologia, mas tudo muito sutilmente, pois Silvestrin, tanto na forma quanto no tema, vai dando ao poema o que o poema impera. O que advém disso é uma grande liberdade, mas não do poeta (o que seria um engano) e sim de sua poesia, calculada onde deve ser. O homem que criou-se a si também encheu o mundo de fantasia:
garrafas
jogadas ao mar
levam
mensagens
que
nunca mais vão voltar
um
peixe de óculos
certamente
vai ler
Outro:
Os
postes aos longe ao longo da rua
acendem
ao comando da primeira estrela
Na última parte de Metal, “Acervo Pessoal”, o poeta exercita mais radicalmente ainda este olhar para fora, sempre no amálgama de sentir, retratando o que vê em 42 telas, imagens que fornecem tantos modos de viver.
Na última parte de Metal, “Acervo Pessoal”, o poeta exercita mais radicalmente ainda este olhar para fora, sempre no amálgama de sentir, retratando o que vê em 42 telas, imagens que fornecem tantos modos de viver.
Tela
28
Ele
está metade inteiro
e
metade em decomposição.
Metade
morreu primeiro,
metade,
não.
Certa vez li que uma poesia até um determinado ponto é solitária, só falando de si e só partindo de si para si (ou seja, está trancada em seu poeta) e que depois poderia passar a ser solidária, começando a falar do outro, do mundo também do outro, atravessando esse mundo por seu poeta, mas já num exercício de dar-se a sentir. Gosto de pensar sobre, apesar de várias considerações que aqui não cabem. E li a poesia de Silvestrin como sendo deste segundo tipo.
Certa vez li que uma poesia até um determinado ponto é solitária, só falando de si e só partindo de si para si (ou seja, está trancada em seu poeta) e que depois poderia passar a ser solidária, começando a falar do outro, do mundo também do outro, atravessando esse mundo por seu poeta, mas já num exercício de dar-se a sentir. Gosto de pensar sobre, apesar de várias considerações que aqui não cabem. E li a poesia de Silvestrin como sendo deste segundo tipo.
Os
brinquedos da nossa infância
estão
guardados sabe-se lá onde.
Estão
despedaçados, a cabeça do cavalo
não
encontra mais o corpo,
centenas
de pequenos soldados
estão
à caça, mas se perdem na expedição.
Um
dia, nós também vamos estar guardados
sabe-se
lá onde.
Fui guiada pelo título: Metal. Metal é frio, comumente é duro, remete a uma forma primária da natureza, tilinta. Domado, metal é civilização. O homem/mulher, homulher, de Silvestrin é um ser civilizado trazendo tudo o que isso significa, toda a neurose, pois civilização também tem sido o afastamento de nossos conhecimentos primordiais e instintos. Este homulher de Metal quer alcançar o entendimento, na busca infinda, é bicho de transformar-se, de “dar sentido/ao que não se mostra” (por isso escreve). Metal é aventura épica sem final (pois que sabemos nós de nosso destino, enquanto raça, a não ser o que gravemente suspeitamos?), mas é preciso entrar no jogo. De um bom leitor espera-se, sobretudo, um homo ludens.
Numa resenha não cabe nosso encantamento todo por um livro. Então, falando em homo ludens, deixo aqui o último verso de Metal, fundido entre Heráclito e a sabedoria das crianças:
Fui guiada pelo título: Metal. Metal é frio, comumente é duro, remete a uma forma primária da natureza, tilinta. Domado, metal é civilização. O homem/mulher, homulher, de Silvestrin é um ser civilizado trazendo tudo o que isso significa, toda a neurose, pois civilização também tem sido o afastamento de nossos conhecimentos primordiais e instintos. Este homulher de Metal quer alcançar o entendimento, na busca infinda, é bicho de transformar-se, de “dar sentido/ao que não se mostra” (por isso escreve). Metal é aventura épica sem final (pois que sabemos nós de nosso destino, enquanto raça, a não ser o que gravemente suspeitamos?), mas é preciso entrar no jogo. De um bom leitor espera-se, sobretudo, um homo ludens.
Numa resenha não cabe nosso encantamento todo por um livro. Então, falando em homo ludens, deixo aqui o último verso de Metal, fundido entre Heráclito e a sabedoria das crianças:
sempre
é a primeira vez que se faz alguma coisa.
Livro pra ter na estante, ler e reler.