Um
tempo sem flores
e
de muita solidão
pra
(a) colher.
Levei
o livro Manhã Cerzida, de Airton Souza, para viagem. Comecei lendo
no aeroporto. Prossegui no avião. Quando já em Recife, aproveitava
o tempo em que Tadeu Sarmento escrevia ou lia, para sentir mais uns
poemas, porque é isso, a poesia que Airton Souza vê, captura e nos
mostra é toda para sentir. A apreensão de Manhã Cerzida dá-se
pelos poros, ou pela visão, pela temperatura de um dia que começa,
de um sol a pino, de um mormaço insistente e tedioso ou de um frio
que nos toma a noite. É uma poesia localizada no tempo, mas não do
tempo elástico, do tempo eterno ou do tempo de uma vida inteira; é,
antes, a poesia localizada entre o abrir e o fechar de nossos olhos.
tenho
nas manhãs
o
cheiro das magnólias
atravesso
insaciável
algumas
ruas desconhecidas
a
carne afoita
tem
fome
de
afoiçar a esparramada
geografia
do mundo
ganho
o rumo
com
a língua pesando a alma
esfalfado,
não sei das raízes, das folhas
das
árvores
só
dos frutos
que
apodrecem meu insano agora
esgueirados
pelas horas
Bem
ritmados, na maioria das vezes de versos curtos, os poemas de Manhã
Cerzida contam nossa angústia de despertar mais um dia e também nossa
esperança por este mesmo motivo. Conta nosso alívio por dormir e
nossa melancolia pela chegada do escuro, mas mostra também que só a
noite nos salva do dia. E é neste espaço temporal que vamos nos
identificando com um tema que não poderia ser mais
universal, pois que Airton Souza desnuda esse nosso “comum”, onde
todos nos igualamos até nosso derradeiro sono.
Traz
tuas chagas
que
tentaremos curar
indo
sempre ao fim das tardes
Manhã
Cerzida situa-se nessas temáticas que trabalham com alguma
sabedoria, vamos encontrando sussurrados modos não de fazer, mas de
aceitar; modos não de aceitar, mas de nos rebelarmos; e não é para
nos rebelarmos simplesmente, é para recriarmos sentidos. Um tanto de
Heidegger, sem citação alguma, mas ali a morte e nenhuma
explicação. Ali o lapso de tempo para nos inventarmos. Sem citação
alguma, Sartre e este caminho onde só nos cabe existir.
A
flor
não
sabe
o
que são os dias
não
aprendeu a língua-
gem
do tempo
mastiga
sem
pressa: o silêncio
&
não abandona a rua
porque
sabe da importância
das
cores.
Não
conhecer o amanhã, angústia suprema, nem mesmo saber desta hora, do
que nela fruiremos. Airton Souza nos leva a este passeio fugaz: vida,
soma de minutos, sem manual de instruções, e tantas vezes sem
companhia.
a
manhã
cospe
angústia
retesa
as horas
respira
esperança
&
não come a incerteza
engasga-se
com
o desconhecido
que
é só depois de amanhã.
Em
Manhã Cerzida a única companheira da qual se tem certeza que estará
presente é a solidão. A imagem é sempre a de uma estrada, um
caminho e um, apenas um caminhante. Não que o poeta tenha
exterminado o outro ou a sua existência, mas está a comunicar
justamente o desejo de dividir com alguém isto que novamente
ganhamos no dia seguinte: uma manhã.
Trancafiemos
as portas e janelas
com
cuidado meu amor
com
o cuidado igual
ao
que zelamos de um
doente
implorando a vida
receio
a noite
porque
ela tem uma mania estranha
de
aprofundar os cômodos
sem
alarde
passe
os ferrolhos
com
cautela
a
noite é um medo faminto
deixei
uma bandeira branca
no
desejo de fixar no alpendre
nas
primeiras horas de amanhã
não
afrontaremos a penumbra
a
nossa indigência
requer
manhãs
Da
poesia que olha para o que está ali desde que nascemos e indaga e,
como toda boa poesia, não responde. E gruda em nós a sua indagação.
Carpe
diem.
Poeta e professor paraense, de Marabá. Licenciado em História e Letras, pós-graduado em Metodologia da História, é colunista na revista Foco Carajás e escreve crônicas para o jornal Opinião. Tem participação em diversas antologias, além de ser um grande movimentador cultural pela literatura.
Com este livro Manhã Cerzida, Airton Souza foi agraciado com o IV Premio Proex de Arte e Cultura, 2014.
Manhã Cerzida é uma publicação da editora Giostri (SP , 2015).