por
Adriane Garcia
“Mostrarei
agora quais são algumas espécies de feitiçarias, de modo que os
exemplos abram o caminho para a compreensão de todo o tema. Destas,
a primeira é o sangue menstrual, do qual consideraremos o valor de
seu poder na feitiçaria.” Cornelius Agrippa, Filosofia Oculta,
Século XV.
Na
capa branca, pintada de um vermelho rubro, a menina manca, a menina
escorrendo as pernas. O vestido festivo, as mangas em estilo “boneca”
e a premonição: Amanhã alguém morre no samba. Carla Diacov leu a
mensagem profética no escoadouro da menstruação e é sob a
perspectiva do sangue, do ciclo findável somente com a morte –
pois que tanto a menarca quanto o climatério e a menopausa
definitiva não seriam a solução da loucura – que nascerá sua
poesia, onde a fecundação se dá exatamente do não fecundo, da
frustração, do exercício de morrer antes mesmo da infância e
recomeçar, novamente sendo-se:
“uma
mulher no fim do mundo do fim,
com
grãos de areia,
escreve
mensagens em garrafas vazias
jogando-as
ao mar.
vazias.
minhas
ideias pescam a essas garrafas
com
anzóis e fisgas do meu mais profundo horror:
sê-la.”
Uma
poética profundamente ligada ao signo e à ressignificação
própria. Para ler Carla Diacov é necessário um leitor disposto a
estudar um novo dicionário, a refazer com inteligência e intuição
a simbologia da autora. Com disposição para estar vivo, a ler
coparticipando (atributos essenciais de leitura e de apreciação de
linguagens), Amanhã alguém morre no samba vai se revelar em poemas
fortes – como o são as verdades – e de intensa sensibilidade.
“pelo
gesto pela roupa pela chama
não
me emboco
troco
os santos de lugar
o
fogão corre a sala faz
o
quarto mais marmita
não
bato com ninguém
daí
faltar you na imagem
sou
suja daí faltar you
eu
nunca mais vou escrever
sou
suja o fogão corre deixo
os
pés no tapetinho da manhã
acordo
com cara de mina de carvão
escrava
dessa criança
sou
suja a mina do carvão
não
bato com ninguém e o fogão corre
pelo
gesto pela lomba pela cintura eu
nunca
mais vou chorar dentro das mãos
se
queimar o dedo lambe
conselho
de mãe daí faltar you
ou
esfrega na franja, criança
Neste
dicionário, que à medida que lemos vamos clareando, cavalo é
sempre um homem, antena é o sensível, cão é ela, eu lírico, ovo
é possibilidade irrealizada, criança é carência, pássaro é amor
que jamais fica... Não se trata de metáfora que acontece num poema
em específico, mas de códigos que se repetem no decorrer do livro e
que à primeira vista estão desconectados ou intrusos. O
aparentemente hermético de alguns versos se desnuda, pois Carla
Diacov está renomeando sentimentos e coisas. Sim, coisas, afinal em
Amanhã alguém morre no samba, a poesia acontece em dois cenários
possíveis: ora no corpo (carne, ossos, cabelos, útero, sangue,
vísceras…), ora nos objetos circundantes do espaço mais imediato
(mesa, faca, maçã, alho, creme…). Por acontecer neste microcosmo,
há um ritmo de claustrofobia onde raramente há espaço de estrofes.
O comum é o bloco único da urgência e do grito.
“me
visto de alçapão e choro
mas
estou pelada
mas
estou calva
estou
feia e fútil
basta
basta
quando que sou o alçapão
sou
possuída e inquilina
céus
eu
sou o alçapão
espia:
o
diabo é minha carne pênsil.”
Degradação
do sangue ruim, degeneração, perversão, tragédia diária de não
se encontrar saída para o próprio ciclo da vida, a precariedade do
estar-se aprisionado ao desejo sexual, a pulsão violenta. Amanhã
alguém morre no samba é um livro vermelho como os sinais de
trânsito que avisam para os atropelamentos, como as luzes das
ambulâncias levando os feridos, como as poças de sangue deixadas
pelos crimes passionais.
Menstruada.
Feminina
e nua.
E
em nada suave.
Em
Das maravilhosas virtudes de algumas espécies de feitiçarias,
Cornelius Agrippa avisa que para o sangue menstrual alcançar efeitos
benéficos, é preciso que tudo seja feito antes do nascer do Sol.
Carla Diacov sabia. Por isso Amanhã alguém morre no samba é destes
livros escritos na nossa eterna noite, geralmente
na hora em que os suicidas decidem viver mais um dia.
_________________________
Amanhã alguém morre no samba
Autora: Carla Diacov
Editora: Douda Correria
2015
Nº Páginas: 183
Nenhum comentário:
Postar um comentário