quarta-feira, 13 de maio de 2015

Bruce Wayne na estação – Uma leitura de Sem passagem para Barcelona, de Alberto Bresciani



Por Adriane Garcia



Entre o passado e o presente, carregando um futuro que não haverá, um homem caminha parado. Uma esteira rolante combinaria bem com este personagem “eu lírico” do livro de Alberto Bresciani. A vida o leva – como a esteira –, não para Barcelona.
Este personagem está a nos falar da falta, em suas nuances várias, da incomunicabilidade, presença de fulcro na mitologia pessoal que move os trabalhos deste autor e em um de seus autores prediletos, Paol  Keineg. Se em Incompleto Movimento (José Olympio - 2011) o exílio era uma das forças temáticas do discurso, aqui em Sem passagem para Barcelona ele se adensa, pois que é impossível outro asilo que não o próprio esconderijo interno, esconderijo insuficiente, já que a consciência o atinge todo o tempo, esta de não possuir controle algum sobre o destino, de não poder, nem mesmo o herói, impedir as tragédias e, ao contrário, advir delas. Não por acaso, falando de heróis e tragédias, inevitavelmente nos lembramos dos gregos antigos.
Como antídotos,  que jamais resolvem os problemas do cenário, mas permitem ao homem continuar, o autor traz dois grandes elementos de redenção: a fé e a poesia. Na verdade, em Sem passagem para Barcelona há um terceiro elemento, mas deste falaremos mais tarde.  A visão panorâmica  de desencanto de Alberto Bresciani é nietzschiana, mas o poema não concede ao filósofo:

“O Deus que conheço
não morreu

Está

Entre a fome e fama
em meio ao que explode ou afaga
flor e moeda

Terras que escorrem
matam crianças
cavalos
a última ave

Mas sim
está

II

Depois do grito do riso
restam farpa tarefa burla
atalho algum que me
engane ou salve?

III

No encalço da crença
um céu branco

estanca”

O embate citadino – pois o habitante deste poeta é sempre urbano no cinza – se dá inúmeras vezes entre a estética (poesia) e a necessidade e, no caso de vencer o belo, esta vitória deve estar no âmbito do secreto, visto que a beleza não é admitida:

“Lá em cima
sobra andar de um lado ao outro
comer pedaços de azul e esperar
a voz dos cortes fechados”

Não há lugar para uma natureza feliz. Eis um homem civilizado, é o que nos diz Alberto Bresciani.
         Desconforto, sofrimento crônico, Eros aprisionado, anjos caídos, o amor diversas vezes apresentado como um paraíso, mas um paraíso de expulsão; solidão, insuficiência da linguagem, aprisionamento em si, efemeridade, paralisia.
         Onde se esconderá o herói? Na identidade secreta, no alter ego. Todos querem ser amigos de Bruce Wayne, mas ninguém conhece as sombras de Batman. Havia que se esconder na memória, nos tempos de antes, quando a alegria cheirava a lavanda: “A despeito da sufocação/na memória/um perfume/resistia”. Mesmo a memória doerá.
A terceira redenção é a morte: “Como agora/arriscar as veias?/Onde se apaga/o vazio?// Soube de búfalos/que trocam o cansaço/pela própria morte”.
O herói não tem armas de fogo, o herói apenas possui armas humanas e, neste sentido, é o anti-herói. Bruce Wayne não pode ser, não pode “não participar” e Batman desistiu. Esta é sua resistência:

“Nesta manhã
Gotham não será salva
Estarei mudo e surdo
às súplicas e ranhuras

E além disso
– claro protesto –
sequer cortarei
as unhas”
        
Já na capa de Sem passagem para Barcelona, este homem, melhor dizendo, este vulto dentro do trem (do ônibus?) parte. Engana-se quem pensa que ele comprou algum bilhete e segue. Não. Ele volta. Em Bresciani não há passagem para o futuro. Barcelona é apenas um sonho avesso à claustrofobia de Gotham.





Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Publicou, em 2011 , Incompleto movimento (José Olympio). Integra antologias e tem poemas e contos em portais da internet, revistas e jornais especializados.
Sem passagem para Barcelona é uma publicação da editora José Olympio, 2015.




Adriane Garcia é leitora, poeta, historiadora, arte-educadora e atriz.

domingo, 3 de maio de 2015

Associação Robert Walser para sósias anônimos - Memória, identidade e desencanto na literatura de Tadeu Sarmento





“Outro dia vi na TV um sujeito ser preso por passar um cheque sem fundo de cento e vinte mil, fazes-me-rir. Disse que o teria assinado por ser o sósia de Bill Gates. A polícia não engoliu muito bem a história. A fatalidade deve ser carregada de ironia, caso queira ser mais bem assimilada por mentes estreitas.
De minha parte, acredito sim que, para ser um sósia, sem dúvida é necessário atingir este grau de convicção.”

***

Termino a leitura de Associação Robert Walser para sósias anônimos, de Tadeu Sarmento. Acrescento-o a alguns outros romances excelentes que tenho conhecido nos últimos tempos, destes escritores contemporâneos nossos que vêm somando boas histórias a um trabalho criativo, fluido e rico.
Ganhador do Prêmio Pernambuco de Literatura, quem o lê compreende as qualidades que se juntam neste livro e que chamam a atenção.
O Associação Robert Walser para sósias anônimos é uma história interessante, curiosa; mas é mais que isso: é uma boa história contada com a habilidade das narrativas policiais e a criatividade dos que abrem mão da linearidade, da facilidade e que fazem do caminho labiríntico um meio de encantamento para que o leitor penetre no livro como quem está num jogo. E jogamos imersos num cenário que lembra muito o teatro do absurdo de Ionesco ou Arrabal, penetramos “surdamente no reino das palavras”. De repente, vemos, e é isto mesmo, o livro de Tadeu Sarmento é um convite a ver, enxergar, imaginar, tal sua facilidade em nos desenhar a imagem dos personagens e sua geografia. Estamos olhando para Imannuel Kant – sim! – o filósofo, reproduzido numa espécie de clonagem proposital, na cidade paraguaia de Nueva Königsberg – um reduto de nazistas foragidos da caça pós Segunda Guerra?! Na flutuação de tempo e espaço, o prédio da Associação, frequentado por Yeshua, Lennon, Mark Chapman, Sílvio, Woody, Elvis, Van Gogh, Yoko, Hussein, Robert Walser... e, na verdade, todos os duplos, todos os que se cansaram da própria identidade ou que nela viram a grande dificuldade de ser, ser si mesmo, a ponto de esquecerem seus verdadeiros nomes. Estão lá para recuperar este nome, mas não se sabe bem, no decorrer da leitura se este é mesmo um desejo, afinal “ser você mesmo é patinar constantemente sobre o gelo”. Ser sósia é fugir.
“O sósia é como a sombra de um boxeador, entendem? Ela está lá, a sombra, atrelada aos mesmos movimentos e combatendo a mesma luta, só que ela, a sombra, não se machuca.”
Com pitadas de muito humor (o autor é excelente frasista), de um humor irônico, refinado e inteligente, Associação Robert Walser para sósias anônimos é um livro sério e divertido, que toca profundamente questões com as quais dificilmente um leitor não se identifica, pois quem já não desejou um dia esquecer todo o passado e poder começar tudo em outro papel? Mas este romance vai além – noutro papel ainda seria você –, quer-se então vivenciar não a própria vida, mas a vida do outro, ser sua sombra, estar à deriva do talento e sucesso alheio, não haver nada da responsabilidade pela conquista deste brilho genuíno ou do sofrimento de construir o original. Paradoxalmente, o sósia almeja a cópia mais perfeita e nisto consiste o seu esforço de duplo. Na impossibilidade do aplauso, imaginar que são para si.
“ De qualquer modo nós sobreviveremos, mas não por sermos fortes, e sim porque seremos os mais rápidos a esquecer.”
Um círculo vicioso dos dias, feito de melancolia, monotonia e desesperança frequentam este mundo onde nada pode vibrar, pois o que vibra não é a cópia, o que vibra exige movimento rumo ao novo. Assim, tanto a cidade de Nueva Königsberg – que procura copiar a suposta e discutida abstinência sexual de Kant – quanto o prédio da Associação evitam as crianças. Crianças e suor. A vida é algo que já se fora e do qual se quis livrar-se. A vida constantemente frequentada pelo anticlímax. A beleza constantemente ferida, em um mundo em decadência, onde nenhum objeto ou ícone sobrevive sem as “trincas” que o autor denuncia, na admissão de todo desencantamento.
Um livro que não pode ser lido de forma distraída, ou perde-se lances incríveis; um livro que deve ser relido para descobrir que há ainda mais do que já se viu. Um livro sobre identidade, memória, amor e, sobretudo, fracasso. Um diálogo com a impotência que temos em comum uns com os outros.


“Não lembro bem há quanto tempo decidi ser um sósia. Sei que, desde cedo, sempre achei difícil ser eu mesmo. Daí, para a decisão de esquecer a senha de acesso que me traria de volta para mim, não sei bem se demorou. Foi preciso abraçar a oportunidade. Como aquele conquistador que, ao pisar pela primeira vez o solo de Cartago tropeçou e, sem perder a chance nem a pose, abriu os braços o máximo que pode e caiu exclamando: esta terra me pertencerá. Existe algo de muito singelo nesta cena contada por Walter Benjamin, que, aliás, é sósia de Charles Chaplin.”




 Tadeu Sarmento nasceu no Recife em 1977. É autor dos livros Breves Fraturas Portáteis (Fina Flor Editora, 2005) e Paisagens com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias anônimos (2015) é seu romance premiado pelo Prêmio Pernambuco de Literatura e publicado pela editora Cepe.