“Outro
dia vi na TV um sujeito ser preso por passar um cheque sem fundo de cento e
vinte mil, fazes-me-rir. Disse que o
teria assinado por ser o sósia de Bill Gates. A polícia não engoliu muito bem a
história. A fatalidade deve ser carregada de ironia, caso queira ser mais bem
assimilada por mentes estreitas.
De
minha parte, acredito sim que, para ser um sósia, sem dúvida é necessário
atingir este grau de convicção.”
***
Termino
a leitura de Associação Robert Walser para sósias anônimos, de Tadeu Sarmento. Acrescento-o
a alguns outros romances excelentes que tenho conhecido nos últimos tempos,
destes escritores contemporâneos nossos que vêm somando boas histórias a um
trabalho criativo, fluido e rico.
Ganhador
do Prêmio Pernambuco de Literatura, quem o lê compreende as qualidades que se
juntam neste livro e que chamam a atenção.
O
Associação Robert Walser para sósias anônimos é uma história interessante,
curiosa; mas é mais que isso: é uma boa história contada com a habilidade das
narrativas policiais e a criatividade dos que abrem mão da linearidade, da
facilidade e que fazem do caminho labiríntico um meio de encantamento para que
o leitor penetre no livro como quem está num jogo. E jogamos imersos num
cenário que lembra muito o teatro do absurdo de Ionesco ou Arrabal, penetramos
“surdamente no reino das palavras”. De repente, vemos, e é isto mesmo, o livro
de Tadeu Sarmento é um convite a ver, enxergar, imaginar, tal sua facilidade em
nos desenhar a imagem dos personagens e sua geografia. Estamos olhando para
Imannuel Kant – sim! – o filósofo, reproduzido numa espécie de clonagem
proposital, na cidade paraguaia de Nueva Königsberg – um reduto de nazistas
foragidos da caça pós Segunda Guerra?! Na flutuação de tempo e espaço, o prédio
da Associação, frequentado por Yeshua, Lennon, Mark Chapman, Sílvio, Woody,
Elvis, Van Gogh, Yoko, Hussein, Robert Walser... e, na verdade, todos os
duplos, todos os que se cansaram da própria identidade ou que nela viram a
grande dificuldade de ser, ser si mesmo, a ponto de esquecerem seus verdadeiros
nomes. Estão lá para recuperar este nome, mas não se sabe bem, no decorrer da
leitura se este é mesmo um desejo, afinal “ser você mesmo é patinar
constantemente sobre o gelo”. Ser sósia é fugir.
“O
sósia é como a sombra de um boxeador, entendem? Ela está lá, a sombra, atrelada
aos mesmos movimentos e combatendo a mesma luta, só que ela, a sombra, não se
machuca.”
Com
pitadas de muito humor (o autor é excelente frasista), de um humor irônico,
refinado e inteligente, Associação Robert Walser para sósias anônimos é um
livro sério e divertido, que toca profundamente questões com as quais
dificilmente um leitor não se identifica, pois quem já não desejou um dia esquecer
todo o passado e poder começar tudo em outro papel? Mas este romance vai além –
noutro papel ainda seria você –, quer-se então vivenciar não a própria vida,
mas a vida do outro, ser sua sombra, estar à deriva do talento e sucesso
alheio, não haver nada da responsabilidade pela conquista deste brilho genuíno
ou do sofrimento de construir o original. Paradoxalmente, o sósia almeja a
cópia mais perfeita e nisto consiste o seu esforço de duplo. Na impossibilidade
do aplauso, imaginar que são para si.
“
De qualquer modo nós sobreviveremos, mas não por sermos fortes, e sim porque
seremos os mais rápidos a esquecer.”
Um
círculo vicioso dos dias, feito de melancolia, monotonia e desesperança
frequentam este mundo onde nada pode vibrar, pois o que vibra não é a cópia, o
que vibra exige movimento rumo ao novo. Assim, tanto a cidade de Nueva
Königsberg – que procura copiar a suposta e discutida abstinência sexual de
Kant – quanto o prédio da Associação evitam as crianças. Crianças e suor. A
vida é algo que já se fora e do qual se quis livrar-se. A vida constantemente
frequentada pelo anticlímax. A beleza constantemente ferida, em um mundo em
decadência, onde nenhum objeto ou ícone sobrevive sem as “trincas” que o autor
denuncia, na admissão de todo desencantamento.
Um
livro que não pode ser lido de forma distraída, ou perde-se lances incríveis;
um livro que deve ser relido para descobrir que há ainda mais do que já se viu.
Um livro sobre identidade, memória, amor e, sobretudo, fracasso. Um diálogo com
a impotência que temos em comum uns com os outros.
“Não
lembro bem há quanto tempo decidi ser um sósia. Sei que, desde cedo, sempre
achei difícil ser eu mesmo. Daí, para a decisão de esquecer a senha de acesso
que me traria de volta para mim, não sei bem se demorou. Foi preciso abraçar a
oportunidade. Como aquele conquistador que, ao pisar pela primeira vez o solo
de Cartago tropeçou e, sem perder a chance nem a pose, abriu os braços o máximo
que pode e caiu exclamando: esta terra me pertencerá. Existe algo de muito
singelo nesta cena contada por Walter Benjamin, que, aliás, é sósia de Charles
Chaplin.”
Tadeu Sarmento nasceu no Recife em 1977. É autor dos livros Breves Fraturas Portáteis (Fina Flor Editora, 2005) e Paisagens com ideias fixas (Bartlebee, 2012). Associação Robert Walser para sósias anônimos (2015) é seu romance premiado pelo Prêmio Pernambuco de Literatura e publicado pela editora Cepe.
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