quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Coração cansado, de Michaela v. Schmaedel

 



Por Adriane Garcia

 

Carl Gustave Jung afirmou que o coração é o arquétipo central. Tudo o que nos afeta mais profundamente, dizemos que é no coração. Ao coração atribuímos o papel de repositório do amor, da bondade, do ódio, da dor e da solidão. Não raro, ouvimos que “o coração quase saiu pela boca” ou que alguém ficou com “o coração na mão”. No Hinduísmo, ele é a morada de Brahman e Krishna. Para alguns povos antigos na América, ele era o centro da vida e da renovação; são comuns as expressões “Você tem Deus no coração” ou “Você não tem Deus no coração” para atribuir a alguém qualidades do bem ou do mal. Uma pessoa fria possui um “coração de pedra”. Confúcio ensinou que “O homem verdadeiro deve encarar de frente o seu coração.”

 

Neste livro inaugural de Michaela v. Schmaedel, a poeta estampa no título um símbolo por excelência, um algo material e um algo metafórico de significado (portanto, entendimento) universal: Coração cansado. Composto por cinquenta e nove poemas, em que se privilegia a síntese e a reflexão por meio de imagens e cenários sugestivos, Coração cansado situa-se em torno de um tema: o luto.

 

No livro Luto e melancolia, Sigmund Freud, tece os esforços para diferenciar um estado do outro, sendo o luto o processo necessário, natural e circunscrito em determinado espaço de tempo, enquanto a melancolia se faz como adoecimento; “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego”. Explicando o processo natural e laborioso da superação da perda, Freud fala de uma “devoção ao luto”, “devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses”.

 

Podemos ler Coração cansado como um livro de “devoção ao luto”, mas também de devoção à luta. A ausência/presença de um pai, que amou e foi amado, marca suas páginas e sua geografia/temporalidade: tempo suspenso, cenário paralisado. A voz narradora luta nas páginas para fazer seu trabalho interior. E eis algo muito interessante: que a poesia e a psicanálise estejam tão próximas, pois a poesia é, antes de escrever, um trabalho de escuta; e é durante a escrita, um trabalho de escuta; e pode até mesmo, lida por outras pessoas, ser um trabalho de escuta que coincide com a experiência de quem lê, seja pela identificação, seja pela recusa. A psicóloga Renata Lisboa Machado, em A psicanálise em diálogo com a poesia: dimensões da experiência, estuda as similaridades entre estes dois ofícios para os quais “a metabolização das sensações e percepções, são instrumentos de trabalho”.

 

Os elementos que Michaela v. Schmaedel traz, em diversos poemas, chamam a atenção por algumas recorrências (o luto é um trabalho circular até que se resolva): Luz, olhos, fogo, incêndio; respiração, ar, asfixia; morte, gigante pássaro sem asas, noite, escuridão, luto; incêndio, ruínas, Museu, memória, nós; morte, amor, morte sim, amor talvez. Todos esses elementos vão compondo um modo de ver, sentir, concluir, profundamente abalado pela perda. O luto é uma lente. Algo se desordenou no mundo e é preciso refazer – o poema, mais que artefato, é a própria reconstrução. O primeiro poema de Coração cansado, Mar aberto, já dá conta da importância do ser perdido, pois ele se confunde com a própria vida de quem narra: “Naquele dia/em que você me puxou/ pelo braço/ com força/ para cima/ eu já não respirava.”

 

Como se depreende de Mar aberto, a ideia de salvamento é uma constatação e um desejo, um salvamento que já houve (memória) e um salvamento por fazer-se. Parte dessa luta por salvar-se (da falta, da saudade) vai migrar da forma interior e expandir-se em direção ao outro. A emoção (e na etimologia desta palavra está o sentido de “mover”) vai se deslocar do diálogo consigo para se comunicar com mais alguém. Enquanto faz isso, a poeta elabora lições que, no livro, intitula como sendo duas: Lição I, e Lição II. Mas na verdade, são muitas as lições em Coração cansado. Michaela v. Schmaedel vai elaborando sabedoria da dor. Os poemas trazem, muitas vezes, lições práticas, como neste fundamental, À mesa: “Esperar pela morte/ como quem espera/ pelo jantar:/ sem reclamar demais.” Ou este Estratégias para entrar e sair de crises: “Entre na crise/ saia da crise/ entre na crise/ saia da crise/ entre na crise/ saia para beber.”

 

Com a escolha de usar poucas palavras, cotidianas, simples, comunicáveis de imediato, ao mesmo tempo em que se recusa ao edulcoramento ou ao sentimentalismo, Michaela v. Schmaedel constrói um livro que destaca a palavra coração, tão fácil de sentimentalizar, mas que trabalha como se esculpisse sobre a pedra. Nos versos de Humanidade, que remete tanto ao poema de Ferreira Gullar, Traduzir-se, quanto à letra de Osvaldo Montenegro, Metade, fica um retrato das constatações feitas na coletânea: “Metade pedra/ e a outra metade também”. Coração cansado trabalha com a dureza, com certa frieza de quem acabou de presenciar o “gigante pássaro sem asas”, mas burila o mineral/palavra, esculpe (reduzindo ao essencial) o sentido da sua liberdade e libertação. Palavra e ato para o luto. No poema Contenção de custos, a aparente frieza se destaca ao afirmar que “É preciso diminuir de altura quando se envelhece” para concluir que um caixão menor dá menos gasto para a família do morto. Frieza aparente, no entanto, pois há ironia e crítica social no poema, já que o ato de olhar a frieza do mundo é, na verdade, dar a máxima importância a esse estado de coisas. Não há indiferença. A poeta coloca sua imaginação a serviço da traição do ordinário (este o trabalho da poesia, seja em tema e/ou forma) e traz a morte para o diálogo; ouve a lição de Confúcio e encara o seu coração de frente.

 

Nos poemas de Coração cansado, como um recurso minimalista, os títulos são algo que não pode passar despercebido para quem lê, funcionando quase como um verso, ou uma chave. Aqui, temos o exemplo do poema Amor: “Que não seja a morte/ a única que mostre seus/ argumentos definitivos’. A poeta economiza palavras, porque sabe bem aproveitar todas. Os poemas crescem em sentido porque utiliza ferramentas poderosas como um certo humor trágico, ironia, personificação, antíteses, paradoxos, ótimas metáforas.  Assim, ironicamente, o fogo (luz) pode nos deixar no breu, a luz pode apagar a luz, e a poeta convida: “venha ver o fogo/ essa escuridão”.

 

Na escuridão, luto, a evocação da lembrança insiste e se instala no cotidiano quanto mais a pessoa amada é ausente. A ausência instaura a presença, ou melhor, a onipresença: “teriam então que acabar todas as pinturas de homens tristes para acabar também isto: “a lembrança de ti em lugares estapafúrdios”. Na morte, é comum o apelo à religião, mas a religião não responde aos anseios da voz que narra em “Coração cansado”, não é uma resposta, “melhor nos virarmos com a literatura”. Em Zen, o título é a própria ironia, já que o poema revela a impossibilidade de alcançá-lo. Em “Previsão” o clima nublado e pesado serve para mostrar a pequenez do ser diante da existência. Não é a integração, mas a desintegração a matéria do luto.

 

Como não poderia deixar de ser, o poema Pai (III) é emocionante e é o poema em que a poeta discorre em versos mais longos, de forma mais explícita com relação à perda de um ente amado. Como um choro que não mais se conteve, em Pai (III) as palavras se deixam escorrer, o que faz o projeto ainda mais verdadeiro. Um momento de não contenção.

 

Voltamos a Freud, agora em A transitoriedade: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição”. É por isso que, após a morte dos que amamos, lamentamos tudo o que não fruímos ou sublinhamos neste amor, tudo o que fizemos de forma trivial e que, após a perda, torna-se sentimento hiperbólico. Mas a vida continua e a soma das satisfações que ela nos dá providencia que o luto seja uma fase e não necessariamente uma patologia crônica. Se um poema como Minimalismo (“o cheiro da toalha que seca ao sol/ o cheiro do sol/ o sol”) nos habita, poderemos fazer como Ulisses:

 

Elpenor

(Para Ismar Tirelli Neto)

 

A Odisseia, rapaz,

não é sobre viajar

ver Circe ou voltar de Hades

nem sobre contar as glórias das guerras

ou os infernos do submundo.

A Odisseia, rapaz,

tem a ver com sair de casa

e voltar vivo.

 

 

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Coração cansado

Michaela v. Schmaedel

Poesia

Ed. Penalux

2020

 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Hidroavião, de Alberto Bresciani


 

Por Adriane Garcia

 


Hidroavião”, este excelente livro de Alberto Bresciani, divide-se em três partes: Água, Terra e Ar. Um hidroavião, além de voar, faz o trabalho de pousar tanto em terra quanto em meio aquático. Esses detalhes são interessantes quando vamos falar de um livro que efetua metamorfoses.

 

Em “Incompleto movimento”, o poeta centrou-se mais na subjetivação lírica. Em “Sem passagem para Barcelona”, deu destaque a um cenário cinza de incomunicabilidade – tema recorrente na poesia de Alberto Bresciani  e em "Fundamentos de ventilação e apneia", expôs o homem como seu próprio predador. Neste “Hidroavião”, ele nos traz as questões do incômodo e do cansaço.

 

Exausto da luta diária de subir e descer a montanha, levando novamente a pedra, o poeta possui uma nave (poesia) incomum, com uma espécie de flutuador no casco. Do alto, a visão panorâmica permite que observe e registre os passos daqueles que o cercam – ou melhor – que partilham da mesma maldição: existir. Na água, pode ouvir o silêncio dos peixes, estar nos lugares perdidos onde foge das multidões e das autorizações de voo.

 

Na terra, transmutado anfíbio (a aterrissagem é sempre mais difícil), cumpre a sua sina com outros sete bilhões de prisioneiros, onde vive a desilusão dos dias, as perdas evitáveis e as inevitáveis, enquanto sonha com o céu: um lugar em que, fatalmente descobre, há anjos invisíveis que prometem e não cumprem. O céu permite apenas cartografar.

 

Dito assim, parece que a poesia de Alberto Bresciani será de tal peso, que não há maneira de seu hidroavião decolar. Ledo engano. Sua poesia é plena de beleza e profundidade, sensibilidade e exatidão. É na carpintaria perfeita do poema que ele cria a sua aerodinâmica. O anfíbio de Alberto Bresciani faz exatamente o que ele quer e leva o leitor na sua viagem, que se torna, por identificação, a viagem do leitor; afinal, Alberto Bresciani fala de temas universais e de angústias a todos comuns.

 

Ler “Hidroavião” é tomar contato com uma poesia nada conformada:

 

Fujo dele algumas vezes,

como agora,

aqui no telhado,

atirando pedras

para cima.”

 

O poeta desenvolve um eu-lírico cuja consistência é a de um personagem muito bem caracterizado. É possível reconhecê-lo do início ao fim do livro. Um personagem que pede socorro contra a apatia e os números de identidade nos quais nos tornamos, em um mundo que muda apenas superficialmente. Um personagem que precisa da fantasia – transformar folhas em peixes – para dissimular desejos, já que não serão realizados. Há mesmo uma sensação de que é impossível estar em paz, quando tudo o que se quer é muito simples.

 

Hidroavião” é um livro cuja leitura se assemelha à leitura de uma narrativa longa. Nele, um poema reforça o outro. Do mundo interior, subjetivo, o menino que ainda não encontrou sua segunda asa e por isso o voo ainda é uma impossibilidade, chega à guerra maior, que se mistura à guerra privada, das perdas pessoais. A solidão é irremediável, ainda que haja o encontro:

 

A sua mão

sobre a pele

não evita as cicatrizes

 

Há uma dureza inequívoca e momentos em que o lirismo alcança um ponto alto, como no poema “Caligrafia”. Mais adiante, quando o personagem se transmuta em Franz, o leitor encara a pureza, a ingenuidade de alguém que não cabe no mundo. Às vezes, como no poema “Melhor”, acontece de haver o novo, uma redenção, mas isso só ocorre após a destruição, como se dela não fosse possível escapar.

 

Pousado na terra, o poeta não escapa do seu tempo e das injustiças sociais. Neste “Hidroavião”, Alberto Bresciani traz um olhar para os despossuídos, os refugiados, os famintos, as crianças abandonadas, armadas, mortas; as guerras, os tsunamis, os terremotos, as deflagrações suicidas.

 

O país em que vivem

está encharcado de certa radiação

que compromete seus nomes,

sua compreensão

 

O piloto deste Hidroavião não encontra seu lugar: na terra, a salvação poderia vir das águas; nas águas, é preciso salvar-se de um afogamento. No ar, há um tempo limitado para a duração dos combustíveis. O sonho de Ícaro persiste, porque não se realiza: enquanto plaina sobre a cidade, o piloto pode concluir que viver é um exercício de heroísmo silencioso e feito de repetições. A poesia buscará os lugares onde há luz, pois é dela o contraste: o breu. Alberto Bresciani sabe e voa para testar limites. Da experiência, traz aquelas constatações que só quem chegou perto, a ponto de se queimar, nos conta:

 

Contra o sol,

não há luz”.

 

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Hidroavião

Alberto Bresciani

Poesia

Ed. Patuá

2020


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Este texto foi escrito como prefácio de Hidroavião.