Um agraciamento. A sensação mesma de encontrar uma
pepita de ouro, de ter obtido sucesso de tanto bater bateia: eis como
me sinto lendo delícias.
Uma
vez, Rubem Alves falou numa palestra – eu assistia: o que é um
saber sem sabor? Nunca mais me esqueci, talvez por isso, grave apenas
o saber que saboreio, o resto uso para provas burocráticas e, em
seguida, esqueço. Mas garimpo, este livro de líria
porto (assim mesmo, em minúsculas, como ela subverte e gosta) não é
possível de ser esquecido, porque ainda estoura na língua, em versos
dourados, de mil sensações.
Há
tempos digo que líria porto é uma representante muito legítima da
poesia contemporânea, que sua poesia é forte, precisa, corajosa, bem-humorada, profunda, objetiva,
nova e cheia das aprendizagens anteriores. Ávida leitora, líria não é dos
poetas que desprezam mestres e esta é para mim a melhor Escola:
saber ser reverente sem ser subserviente.
Dona
de um ritmo perfeito e de formas variadas, seus poemas cantarolam, desfiam palavras numa
dança e apontam, escondem, sugerem, contam significados. Há sempre
um pouco mais do que aquilo que está escrito.
garimpo
esta
procura tem um nome insanidade
passei
da idade de tentar fazer sonetos
eu
só consigo descrever cinzas e pretos
acho
que o verso não alcança claridade
pelas
gavetas prateleiras escondidos
ainda
agarro pelo rabo alguns cometas
quero
as estrelas não encontro suas tetas
sinto
as fissuras dos pequenos desvalidos
a
minha escrita sempre foi penosa esgrima
desde
menina que não tenho paradeiro
eu
caço sapo com bodoque o dia inteiro
nesta
esperança de catar melhores rimas
vasculho
as glebas
os
grotões e quem diria
bateio
o sol chego a pensar
que
a noite é dia
A
ideia de garimpo é, principalmente, trabalhar a metalinguística, o
que é feito do início ao fim sem cansaço algum para o leitor. A
palavra, a poesia, a poeta, o poema dizem-se falando de outras mil
coisas, o que atesta a versatilidade desta autora. A vida revelada sem ingenuidade e a poesia alcançada também
na difícil rotina diária, no cotidiano realista do nosso fardo nas
minas, de insucessos nas buscas, na força necessária dos
desbravamentos e dos burilamentos de nossas pedras.
traumas
tantos
fatos
decorrentes
das
correntes
da
memória
são
imbróglios
são
algemas
que
nos prendem
a
nós próprios
e
nos tornam
tão
parados
e
inativos
quanto
as rochas
O
lirismo de líria porto – que com este nome parece mesmo
predestinada – é raro e sem exageros. A medida exata entre falar
de maneira bela (um ouro polido) e falar para o tempo de agora (metal frio). Lê-la
é poder amaciar os olhos com mensagens duras, que falam de
ausências, de morte, de velhice, de amores não vividos, de
degradação ecológica, de liberdade e aprisionamentos.
namoro
de
encontro ao vento
ando
lento pra sentir seus dedos finos
e
seu corpo sem matéria
eleva-me
do chão alguns centímetros
Para
completar, e não podendo ser diferente, a edição da Lê é
um luxo, com ilustrações da também talentosíssima escritora e
ilustradora Silvana de Menezes, que soube exatamente captar a alma de um conjunto tão imagético.
O
livro é um perigo, porque denuncia: as joias ficam na estante.
líria porto - professora, poeta, natural de araguari – mg – autora dos
livros borboleta desfolhada e de lua, publicados em portugal – 2009
– e garimpo e asa de passarinho, publicados no brasil pela editora
lê – 2014.