Por Adriane Garcia
Tão bom o livro, a beleza já
começa na dedicatória: “Para
Ismália”.
Quem não se lembra de Ismália, que era de Alphonsus de Guimarães e
depois se tornou de todos nós? Ismália, a mulher voando da torre, o
anjo suicida, a sublime louca das loucas.
A dedicatória dá a tônica
de A loucura
dos outros
(ed. Reformatório), de Nara Vidal, e não é à toa que a referência
vem da poesia. O texto de Nara, pelos vinte e dois contos que compõem
a coletânea, é permeado de poesia, aqui e ali, entre destroços de
vidas que passaram daquele ponto em que a loucura não pode mais ser
desapercebida. Notamos a loucura de seus personagens, afinal, é
fácil notar a loucura nos outros. Ifigênia,
por exemplo, perde literalmente (e metaforicamente) a cabeça. É
impossível não notar.
Os contos todos são
intitulados com nomes de mulheres. A loucura é trabalhada por Nara
Vidal pelo viés do abandono, da incompreensão e do rótulo,
trazendo indagações sobre o preconceito, a moralidade, o machismo,
o amor romântico, os papéis normatizados.
Também é interessante notar
que, apesar dos contos serem intitulados com os nomes das mulheres
que os habitam, nem sempre o protagonista é essa mulher. Em Marta,
temos o marido que espera da esposa a mesma beleza que ela tivera
quando se casaram: beleza de Úrsula Andress. Isso, anos depois, numa
exigência de que a mulher paralise o tempo, quando ele mesmo,
barrigudo e careca, não consegue perceber que está enredado num
absurdo.
Em Ana
Rosa, o
marido, presidiário, criminoso confesso, só não admite que se
conspurque a moral da esposa, em um exercício irracional de enganar
a si mesmo. Em Vanessa,
o drama de Marta reaparece, mas com outro enfoque. Vanessa engordou e
o tempo fez com que o marido, Orlando, notasse sua baba no
travesseiro. Não era mais a mulher para ele, mas poderia continuar
sendo a mãe, a dona de casa, a mantenedora do lar, a que prepara as
refeições. Cecília
tem horror a homem bonito ou que lê literatura barata. Enquanto o
marido a ignora, procura flertes, na rua, durante o dia. Procura algo
que brilhe, na opacidade da rotina. Adriana
não suporta mais o companheiro, não suporta olhá-lo, deseja que
ele arrume uma amante. Maria
Dulce saiu
da Polônia, está de passagem pela Alemanha e indo ao Brasil, ao
enterro do irmão que se suicidou. No caminho, o sexo, a
infidelidade, a constatação de que é casada com um bom marido, o
desejo da maternidade, o conflito com a própria mãe e a afirmação
de que tem muita coragem, mas pouco coração. Selma
vive num asilo e a cada passo se pergunta até quando se esticará o
fio de sua vida. Lúcia
criava, com Zé Luís, bodes e cabras e, juntos, produziam o melhor
queijo de leite de cabra da região. Um dia, a vigilância sanitária
fechou o negócio que, tão tradicional, não se encaixava nas novas
regras. Lúcia teve que se refazer profissionalmente e ser a força
dupla, já em idade avançada, quando Zé Luís perdeu o rumo. Amanda
ainda espera que Marcos a olhe como da primeira vez, enquanto tenta
desculpar as surras que ele lhe dá. Ana
e Paulo discordam de muitas coisas e, surpreendentemente, souberam se
acertar assim, e vivem bem. Marelena
é uma menina doente, a narradora é sua mãe, vivenciando a dor
funda de ver a loucura em casa, roubando a infância da filha. Rita
é outra mãe, convivendo com essa inversão inaceitável que é a
morte de um filho pequeno. Olívia
não
suportou a falta de seu homem morto e morreu em vida, os filhos em
total abandono. Sílvia
sai de casa para ver “loucos,
miseráveis, amantes, depressivos”
e, desta forma, não ficar em contato com esses seres dentro dela
mesma. Sentada no transporte público, convive com a dura realidade
de não ser mais notada por um homem, nem mesmo por um homem também
invisível: “Senti
o tempo me morder com dentes afiados de ingratidão”.
Agora é Sílvia que, observando um homem casado, em passeio com a
família, julga a esposa, aponta seus defeitos e se projeta como
amante e alívio. Flávia
“foi mãe
porque teve medo de envelhecer sozinha”
e se pergunta como foi acontecer de ser mãe, com ela, que nunca quis
cuidar de ninguém. Érica
é um conto de reflexão profunda sobre a morte de uma mãe: “ A
morte não incomoda em nada quando dizima uma família inteira
sustentada por uma mãe, em carinho, atenção, justiça e força”.
Regiane
é casada com Guilherme e se inscreve num trabalho de telessexo para
poder trabalhar em casa e ter um horário flexível que se
compatibilize com as funções domésticas. Débora,
numa sessão com a psicóloga, oferece-nos um olhar verdadeiro e
inusitado sobre sua indiferença com relação à irmã, seu gosto
por gente velha, feia, estranha, e sua visão da maternidade como
armadilha. Mírian,
dentro de um vagão de trem, reflete sobre o tempo, sobre a doença
terminal da mãe e sua morte. O conto, circular, tem um final
deliciosamente surpreendente. Íris
é a moça do interior que foi pedida em casamento por Silvério.
Eternamente noiva, se apaixonou por Adriano, dono do novo armazém na
cidade; homem mais velho, cheio de histórias e livros. Íris é um
dos contos mais poéticos de A loucura dos outros, a tragédia
contada em poesia.
Cruel, A loucura dos outros é
uma leitura rica sobre relacionamentos. Com uma escrita fluida, a autora constrói personagens tão sinceros, que parecem ter nos flagrado. De fundo, Nara Vidal nos
coloca diante dos temas universais: o tempo, o amor e a morte. No fim
das contas, tantos de nós podemos estar ali, e estamos; pois, são o
tempo, o amor e a morte aquilo que nos salva e nos enlouquece.
“Era eu. No reflexo do
vidro era eu. Meu cabelo era uma juba bem cuidada, meticulosamente
bagunçada, com cheiro de flor quase murcha não fosse por mim mesma
a injetar-me de água, na tentativa de evitar a tragédia que é a
morte plena. Morrer aos poucos ainda é alguma vida.
Passei os olhos discretos
pelo vagão. Um homem me chamou a atenção. Meio careca e já suado
às oito da manhã. Traços finos, nariz agradável. Será que ele me
queria?
Passava dias pensando se
alguém ainda ia me querer. Rodopiei os olhos e vi um homem bonito.
Tenho horror a homem bonito. Gosto de beleza em esculturas, quadros,
não em homem. De certo eu era velha pra ele, mesmo que ele não
tivesse menos que cinquenta anos. Notei a mulher que devia ser tão
invisível quanto eu. Quis beijá-la, mas seria por pena.
Voltei os olhos para o
homem meio careca. Ele lia literatura barata. Incomodou-me o meu
desprezo. Se eu fosse menos esnobe, talvez meu marido notasse que eu
tinha um mar nos olhos e que eu tinha uma boa estrutura óssea.
O homem meio careca notou
que eu me via no reflexo. Eu jogava os cabelos pros lados na
tentativa de um bom ângulo. Ele sorriu. Eu apertei os olhos.
Enrubesci. Aquele homem não sonhava com uma mulher feito eu. Eu era
tanto pra ele, e assim mesmo eu estava disposta a levantar a saia e
mostrar meu mundo pra ele, pro homem meio careca.
Não trocamos telefone e
nem um segundo olhar. Estive viva. Ninguém precisava saber disso.
Agora precisava voltar a morrer. Depois do trabalho a volta pra casa
me esperava”.
(Excerto do conto Cecília, p. 49/50)
***
A loucura dos outros
Nara Vidal
Contos
Ed. Reformatório
2016