quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A loucura dos outros – de Nara Vidal




Por Adriane Garcia


Tão bom o livro, a beleza já começa na dedicatória: “Para Ismália”. Quem não se lembra de Ismália, que era de Alphonsus de Guimarães e depois se tornou de todos nós? Ismália, a mulher voando da torre, o anjo suicida, a sublime louca das loucas.

A dedicatória dá a tônica de A loucura dos outros (ed. Reformatório), de Nara Vidal, e não é à toa que a referência vem da poesia. O texto de Nara, pelos vinte e dois contos que compõem a coletânea, é permeado de poesia, aqui e ali, entre destroços de vidas que passaram daquele ponto em que a loucura não pode mais ser desapercebida. Notamos a loucura de seus personagens, afinal, é fácil notar a loucura nos outros. Ifigênia, por exemplo, perde literalmente (e metaforicamente) a cabeça. É impossível não notar.

Os contos todos são intitulados com nomes de mulheres. A loucura é trabalhada por Nara Vidal pelo viés do abandono, da incompreensão e do rótulo, trazendo indagações sobre o preconceito, a moralidade, o machismo, o amor romântico, os papéis normatizados.

Também é interessante notar que, apesar dos contos serem intitulados com os nomes das mulheres que os habitam, nem sempre o protagonista é essa mulher. Em Marta, temos o marido que espera da esposa a mesma beleza que ela tivera quando se casaram: beleza de Úrsula Andress. Isso, anos depois, numa exigência de que a mulher paralise o tempo, quando ele mesmo, barrigudo e careca, não consegue perceber que está enredado num absurdo.

Em Ana Rosa, o marido, presidiário, criminoso confesso, só não admite que se conspurque a moral da esposa, em um exercício irracional de enganar a si mesmo. Em Vanessa, o drama de Marta reaparece, mas com outro enfoque. Vanessa engordou e o tempo fez com que o marido, Orlando, notasse sua baba no travesseiro. Não era mais a mulher para ele, mas poderia continuar sendo a mãe, a dona de casa, a mantenedora do lar, a que prepara as refeições. Cecília tem horror a homem bonito ou que lê literatura barata. Enquanto o marido a ignora, procura flertes, na rua, durante o dia. Procura algo que brilhe, na opacidade da rotina. Adriana não suporta mais o companheiro, não suporta olhá-lo, deseja que ele arrume uma amante. Maria Dulce saiu da Polônia, está de passagem pela Alemanha e indo ao Brasil, ao enterro do irmão que se suicidou. No caminho, o sexo, a infidelidade, a constatação de que é casada com um bom marido, o desejo da maternidade, o conflito com a própria mãe e a afirmação de que tem muita coragem, mas pouco coração. Selma vive num asilo e a cada passo se pergunta até quando se esticará o fio de sua vida. Lúcia criava, com Zé Luís, bodes e cabras e, juntos, produziam o melhor queijo de leite de cabra da região. Um dia, a vigilância sanitária fechou o negócio que, tão tradicional, não se encaixava nas novas regras. Lúcia teve que se refazer profissionalmente e ser a força dupla, já em idade avançada, quando Zé Luís perdeu o rumo. Amanda ainda espera que Marcos a olhe como da primeira vez, enquanto tenta desculpar as surras que ele lhe dá. Ana e Paulo discordam de muitas coisas e, surpreendentemente, souberam se acertar assim, e vivem bem. Marelena é uma menina doente, a narradora é sua mãe, vivenciando a dor funda de ver a loucura em casa, roubando a infância da filha. Rita é outra mãe, convivendo com essa inversão inaceitável que é a morte de um filho pequeno. Olívia não suportou a falta de seu homem morto e morreu em vida, os filhos em total abandono. Sílvia sai de casa para ver “loucos, miseráveis, amantes, depressivos” e, desta forma, não ficar em contato com esses seres dentro dela mesma. Sentada no transporte público, convive com a dura realidade de não ser mais notada por um homem, nem mesmo por um homem também invisível: “Senti o tempo me morder com dentes afiados de ingratidão”. Agora é Sílvia que, observando um homem casado, em passeio com a família, julga a esposa, aponta seus defeitos e se projeta como amante e alívio. Fláviafoi mãe porque teve medo de envelhecer sozinha” e se pergunta como foi acontecer de ser mãe, com ela, que nunca quis cuidar de ninguém. Érica é um conto de reflexão profunda sobre a morte de uma mãe: “ A morte não incomoda em nada quando dizima uma família inteira sustentada por uma mãe, em carinho, atenção, justiça e força”. Regiane é casada com Guilherme e se inscreve num trabalho de telessexo para poder trabalhar em casa e ter um horário flexível que se compatibilize com as funções domésticas. Débora, numa sessão com a psicóloga, oferece-nos um olhar verdadeiro e inusitado sobre sua indiferença com relação à irmã, seu gosto por gente velha, feia, estranha, e sua visão da maternidade como armadilha. Mírian, dentro de um vagão de trem, reflete sobre o tempo, sobre a doença terminal da mãe e sua morte. O conto, circular, tem um final deliciosamente surpreendente. Íris é a moça do interior que foi pedida em casamento por Silvério. Eternamente noiva, se apaixonou por Adriano, dono do novo armazém na cidade; homem mais velho, cheio de histórias e livros. Íris é um dos contos mais poéticos de A loucura dos outros, a tragédia contada em poesia.

Cruel, A loucura dos outros é uma leitura rica sobre relacionamentos. Com uma escrita fluida, a autora constrói personagens tão sinceros, que parecem ter nos flagrado. De fundo, Nara Vidal nos coloca diante dos temas universais: o tempo, o amor e a morte. No fim das contas, tantos de nós podemos estar ali, e estamos; pois, são o tempo, o amor e a morte aquilo que nos salva e nos enlouquece.


Era eu. No reflexo do vidro era eu. Meu cabelo era uma juba bem cuidada, meticulosamente bagunçada, com cheiro de flor quase murcha não fosse por mim mesma a injetar-me de água, na tentativa de evitar a tragédia que é a morte plena. Morrer aos poucos ainda é alguma vida.
Passei os olhos discretos pelo vagão. Um homem me chamou a atenção. Meio careca e já suado às oito da manhã. Traços finos, nariz agradável. Será que ele me queria?
Passava dias pensando se alguém ainda ia me querer. Rodopiei os olhos e vi um homem bonito. Tenho horror a homem bonito. Gosto de beleza em esculturas, quadros, não em homem. De certo eu era velha pra ele, mesmo que ele não tivesse menos que cinquenta anos. Notei a mulher que devia ser tão invisível quanto eu. Quis beijá-la, mas seria por pena.
Voltei os olhos para o homem meio careca. Ele lia literatura barata. Incomodou-me o meu desprezo. Se eu fosse menos esnobe, talvez meu marido notasse que eu tinha um mar nos olhos e que eu tinha uma boa estrutura óssea.
O homem meio careca notou que eu me via no reflexo. Eu jogava os cabelos pros lados na tentativa de um bom ângulo. Ele sorriu. Eu apertei os olhos. Enrubesci. Aquele homem não sonhava com uma mulher feito eu. Eu era tanto pra ele, e assim mesmo eu estava disposta a levantar a saia e mostrar meu mundo pra ele, pro homem meio careca.
Não trocamos telefone e nem um segundo olhar. Estive viva. Ninguém precisava saber disso. Agora precisava voltar a morrer. Depois do trabalho a volta pra casa me esperava”.
(Excerto do conto Cecília, p. 49/50)

***
A loucura dos outros
Nara Vidal
Contos
Ed. Reformatório
2016

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Impublicáveis - zine de Adri Aleixo





Por Adriane Garcia


Há dias estou para falar do zine intitulado Impublicáveis da poeta Adri Aleixo.

Tendo a Lady Godiva, de Ethel Mortlock, na capa, Impublicáveis é uma coletânea de onze poemas, onde se pode notar, inequivocamente, o quanto a poesia de Adri Aleixo tem crescido em tratamento dos temas e forma. O trabalho reunido no zine pode ser lido rapidamente, mas logo em seguida, instiga o leitor à releitura, e foi o que eu fiz.

Com vagar, saboreando o sentido e os versos, Impublicáveis se torna ainda melhor numa manhã ou tarde silenciosa. Talvez, tendo ao lado uma xícara de chá, um aquário com pequenos peixes, uma disposição amistosa para o silêncio.

Esta a descoberta: onze poemas convidando para a introspecção, para a contemplação, para o toque daquilo que só pode ser devidamente sorvido se tiver ultrapassado o barulho e a multidão, o apego e a palavra excessiva. Não por acaso, um dos poemas evoca o gato de Orides Fontela, gato que, sabemos, é impossível de ser capturado. Noutro, Lady Godiva descobre, sabiamente, que é preciso despir-se de tudo, inclusive do cavalo; noutro, ainda, o amor que só pode ser percebido nas frases que não foram ditas.

Em Impublicáveis, assim como na lição ouvida por Godiva, menos é mais. E é mesmo. A poeta busca o sentido profundo do que observa e vivencia, com o pressuposto da verdade socrática de só saber que nada sabe: “Eu sei de muitas coisas/todas elas muito rasas/uma canção/alguma ou outra poesia”. Confessando não saber, Adri Aleixo busca o cerne das coisas, naquilo que é terreno da contemplação, do mistério, pois quem não sabe que a poesia se aproxima muito menos do conhecimento do que da sabedoria?

Deixo vocês com três poemas desta delícia. E o desejo profundo de que o silêncio habite mais vezes a nossa saúde e o nosso coração.

Cumeeira

Para cessar
o peso
do dia
poderás ir ao
telhado
lá, há um
precipitar de chuva e pulo
uma vista para o descampado
é lá onde secam as palavras
e coragem é uma espécie de ruindade
lá duas águas se encontram

Bilhete

Deslizo pelas paredes do quarto
e acendo as luzes da sala
a casa dorme
pedaços fragmentos coisas

há um azul se refazendo no teto
astros asteróides galáxias
mandam dizer
que dispensam explicações

Lady Godiva

Gostava de seguir tendências
leu certa vez em uma vitrine
: menos é mais!
despiu-se do cavalo


***
Impublicáveis
Adri Aleixo
2018
Publicação independente da autora
Disponível com a autora
Contato por e-mail: adrianalinguagens01@gmail.com


terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Antologia Contemporânea de Poesia Negra Brasileira (Org. Paulo Colina)



Por Adriane Garcia


Estive, por esta semana, às voltas com a Antologia Contemporânea de Poesia Negra Brasileira, organizada por Paulo Colina e editada pela Global, em 1982.

A antologia traz poetas de Minas Gerais (Adão Ventura), Paraíba (Arnaldo Xavier), Rio Grande do Sul (Oliveira Silveira), Rio de Janeiro (Éle Semog, José Carlos Limeira) e São Paulo (Abelardo Rodrigues, Cuti, Geni Mariano Guimarães, José Alberto, Maria da Paixão, Itaim Bibi, Mirian Alves, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina e Ruth Souza).

Coletânea interessante, sobretudo, por registrar alguns nomes que passamos longe de conhecer, ou mesmo de ouvir falar, já que, notadamente, a literatura brasileira tem sido mais eficiente em divulgar autores homens, brancos, heterossexuais e de classe média. O padrão é tão visível que podemos nos perguntar até mesmo se esses não são os verdadeiros critérios extraliterários.

Antologia Contemporânea da Poesia Negra Brasileira traz poemas marcados pela afirmação da resistência, pela primazia do corpo como espaço privilegiado do sentir, em imagens onde a dor é um elemento comum. Porém, essa dor poucas vezes está relacionada com a dor individual, subjetiva e confessional, de um poeta olhando para dentro. Nos diversos poemas, dos vários autores e autoras, é possível notar um olhar para o coletivo, cuja dor em si é a dor de um grupo, na reflexão do que significa ter pele negra no Brasil, esse país construído, principalmente, sobre a força e a expropriação dos africanos, africanas e seus descendentes.

Na organização, o livro traz estilos diferentes de poesia. O leitor encontrará algo de seu gosto. De minha parte, devo à antologia a grata surpresa de conhecer a poesia de Arnaldo Xavier. Um experimentador da forma, um poeta cuja soltura é impressionante e, ao mesmo tempo, um poeta que segura o poema até onde ele necessita. Criativo, anárquico e brincante com a Língua, além de profundo. É com ele que vou deixá-los por aqui:


ATÉ O MAIS HERÉTICO DOS HEREGES REZA QUANDO AMA

,Quando falo
:)!Amor(
Soa falso como uma Árvore
,Se esboço um gesto de Luz
)redijo(
escuridão
                    em todos os movimentos
na Certezabsurdônika: DE QUE
ESTAMOS MORRENDO A CADA MOMENTO

,Assim como o Grito
tem que ser tão ensurdecedor
)em suas Garras de todos os Pássaros
Vivos(
ao ponto: de estrangular
até o ECO
!EU NÃO VOMITO
EU SOU O PRÓPRIO VÔMITO

,Porém
TODAS AS CANÇOES SERÃO REFEITAS
                                                                                                                –!No Dia
em que não mais se Combata
: UM INIMIGO
DO QUAL
SE FAZ PARTE
                                    –!Seja qual Flor
qualquer que seja o Mal-me-Quer
Qualquer que seja o Bem-me-Quer
,uma Porka Ibérica
)de olhos
azuis e verdes(
pariu três rebentos
Aragão
Castela
e Portucale

,pois pois filhos de Porkos
poucos São
,Arruda de Aragão casou
Com Agra de Portucale
Ribeiro de Portucale casou
com Tavares de Castela
Albuquerque de Castela casou
com Rego de Aragão
Almeida de Portucale casou
com Mariz de Castela

)certo Dia
sob qualquer Sol (Agra brigou
com Mariz
no casamento de Almeida com Tavares
:Arruda tomou as Dores
de Agra
e Almeida As de Mariz
,Rego tomou a mulher de Ribeiro
e Tavares jurou matar Rego
,Agra atirou em Mariz
e feriu
Albuquerque
,Albuquerque Arruda Ribeiro
Tavares choraram
)porém(
entre mortos e feridos
MORREU O NEGRO SEBASTIÃO
,A Denotação
é fácil ser Flor
ou
    ser Capim;
é fácil
               ser Flor
ou ser Capim;
é fácil ser Flor
ou ser Capim
)Difícil(
é
Ser Flor y Ser Capim

,Da Niincanção
)nem(
as Estrelas Quadrúpedes
)nem(
os Sóis Bípedes
)nem(
Raquel
)nem(
o Negro-Anjo Fortunato
)nem(
as Luas Zarolhas
)nem(
Mr. Smith
)nem(
Abdala

NEM

as vítimas desta Thristeza Anfíbia
compreenderam) até hoje(
QUE PARA
                      )A Chama(
a Vida
não é assim
                       e ASSADA
,in 4-3-3
à Paulo Cesar Lima

,aquele JOGO
:foi um jogo
)de vida e
de Morte(
o time Deles venceu
pelo escore íntimo
de 1 x 0
gol
       de Ternura
,naquela noite
Amargura
foi substituído por Solidão
logo no início do I Tempo
)e(
        Dor foi expulso
por cuspir no rosto do Goleiro Amor
e troca de pontapés com Paixão

,nosso goleiro
o Thriste
não foi feliz )no lance( do gol
de Ternura
e me lembro no vestiário
Thriste estava chorando
desolado
ao lado de Desolado
que estavam sendo consolados
pelos reservas: Lamento
Melancolia
e Angústia

,naquela Partida
nosso time jogou
com

                  Thriste
          Amargo
                         Lacrimoso
                  Medo
                                      e Desolado
                         Nostalgia
                 Banzo
                                e Saudade
Loucura
                      Dor
                                                 Amargura
(depois Solidão)



***
Antologia Contemporânea da Poesia Negra Brasileira
Organização Paulo Colina
Poesia
Ed. Global

1982