sábado, 25 de fevereiro de 2017

Clarissa Macedo e a visão dos abismos



Por Adriane Garcia

        Bastou-me pouco tempo da leitura, menos de um terço do livro, para sentir a força da poesia de Clarissa Macedo em “na pata do cavalo há sete abismos”. O título, por si só, com este misto de sortilégio e enigma, lembrava o aviso de bruxas que eu poderia ter ouvido na infância.
         Não é uma poesia difícil, ininteligível ou hermética, mas também não é uma poesia fácil, se o leitor é do tipo que quer sorver verdadeiramente o encantamento das palavras. Leia os poemas de “na pata do cavalo há sete abismos” uma, duas, três vezes. Verá que algo se abre, verá o que é ficar na beira de seus precipícios.
        Pois é isso, Clarissa está a nos falar da profundidade, de tempo, de velhice, de morte, de mundos que não temos mais; de inadequação, de incompletude, de dúvidas, fracassos, de desterramentos. É poesia para quem não teme tonturas. Sete, seu número cabalístico, não lhe salvará, nada lhe salvará; Clarissa está para dizer que somos seres procurando sentido, mas você se sentirá acompanhado. Suas palavras são de penetração e é necessário um leitor disposto às lanças. Sim, algumas vezes a autora o fará sob o lirismo, mas ainda assim, esse lirismo tem o movimento das crinas dos cavalos, enquanto é quase tempestade o que venta.
        A maturidade reconhece a dor e sabe o que fazer com ela. Clarissa é daquelas poetas que corroboram o meu pensamento de que todo poeta é antigo. Não luta contra, luta com. Sua poesia ditada de mistérios e de experiências que parecem advir de uma ancestralidade, comunga segredos tão necessários, aquelas leituras das reflexões mais silenciosas, feitas de habitar, como neste excerto, de Arrebatamento:

“O mundo é uma hora
mal desenhada e em tudo
esconde-se o infinito.”

Ou neste, de Jornada:

“surge a vida
mil vezes alucinada

parindo números
de mortos
desde ontem,
desde a era passada.”

        Sua musicalidade sendo belíssima, recorda esta nossa tradição mais bem realizada com Cecília Meireles. Seus versos limpos trazem o domínio diante do que fala e da forma com que escolhe falar. Sua poesia não nos põe obstáculos, mas nos pede desobstruídos, nos pede prontos para uma visão. Os elementos da natureza aparecem de forma insistente, principalmente a terra, como símbolo de lugar onde se estabelece a existência, onde se pisa, para onde se é sugado, como sangue, como matéria. Do pó ao pó, nas palavras da poeta: “cada passo é uma trapaça”. É interessante notar que a força invocada desde o título até as muitas reincidências da palavra terra, de seu elemental, é a força telúrica. Assim, pata do cavalo invoca solo, solo invoca abismo, abismo invoca espírito. Mas ela também tem a força para receber as alegrias, a poesia é também o júbilo da imaginação e do prazer:

“A chuva interfere nas ilhas
como quem deita de luz acesa.”

“Pois os magos, como os mais curiosos pesquisadores da natureza, fazem uso dessas coisas que são preparadas por ela, aplicando coisas ativas às passivas, produzindo, às vezes, efeitos antes do tempo ordenado pela natureza, que as pessoas comuns pensam se tratar de milagres aquilo que, de fato, são obras naturais, em que a prevenção do tempo apenas fica no meio, como se alguém pudesse brotar rosas em março; e amadurecer as uvas, ou colher feijões, ou desenvolver a salsa em uma planta perfeita em questão de poucas horas; mais ainda, provocar coisas maiores, como nuvens, chuvas, trovões e animais de diferentes tipos, e muitas transmutações de coisas (…)”.

Henrique Cornélio Agrippa de Netteshein, em Da Magia Natural

“Embora o poema não seja feitiço nem conjuro, à maneira de ensalmos e sortilégios o poeta desperta as forças secretas do idioma.”

Octavio Paz, em O arco e a Lira

        Haveria tantos versos de Clarissa, neste livro, para ilustrar o que o mago e o poeta disseram – acho que Clarissa faz nascer rosas em março, ou em todo mês, faz ver também seus espinhos mas ficarei com a força inequívoca destes seus versos:

“A alma relincha
na estrebaria.”

***

Clarissa Macedo, natural de Salvador (BA), doutoranda em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, professora, pesquisadora. Apresenta-se em eventos pelo mundo afora (além do próprio Brasil, Colômbia, Peru, Cuba). Está presente em diversas coletâneas, revistas e sites. É autora de O trem vermelho que partiu das cinzas e de Na pata do cavalo há sete abismos (7Letras Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia), ambos de 2014, este último, recentemente reeditado pela editora Penalux.