quarta-feira, 28 de julho de 2021

Sacrifício e outros contos, de Francisco de Morais Mendes

 

 


Por Adriane Garcia

 

Exímio contista, Francisco de Morais Mendes nos traz sua mais nova coletânea, Sacrifício e outros contos. O livro, disponível também em e-book, foi o vencedor do prêmio Gato-Bravo, da editora portuguesa de mesmo nome e em breve será lançado no Brasil pela editora Jaguatirica.

 

No seu Decálogo do perfeito contista, Horácio Quiroga aconselha: “Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o fim, sem ver nada além do caminho que traçastes para eles. Não te distraias vendo o que a eles não importa ver.” Nos livros de Francisco de Morais Mendes, desde Escreva, querida (1996), a regra de ouro de Quiroga é também a sua; nos contos de Francisco de Morais Mendes as aparas são cuidadosamente retiradas e os personagens tão concentrados em suas próprias histórias, que nos concentramos com eles. Não há desvios e tudo tem importância dentro da narrativa.  

 

No conto Sacrifício, que dá nome ao livro, uma situação absolutamente absurda – achar dinheiro nas ruas a vida toda – ganha verossimilhança na habilidade do autor. A leitura nos encaminha para a empatia com o protagonista, Marcial. A surrealidade da história nos comove porque Marcial tem sua humanidade tocada pelo destino, do qual não consegue fugir. Será crime achar objetos perdidos e não devolver? A quem acha tanto e não devolve só resta a lavagem de dinheiro?  A metáfora para o trabalho cria a equivalência de rebaixar-se, fazer sacrifício, aproximando-o da raiz da palavra “Tripalium”, tortura. Em Sacrifício, uma situação que causaria inveja a qualquer um na vida real, ao contrário, faz com que nós a rejeitemos; não queremos a solidão e o vazio de Marcial, recusamos a sua boa sorte.

 

Em Jogo de cartas, um mistério. Um homem poderoso contrata um poeta para escrever cartas para sua esposa. Disso resulta um crime passional; porém à leitora/ao leitor resta o encargo de suspeitar sobre quem foi que matou e quem foi que morreu. Um jornalista precisa contar a verdade, mas sabe que tudo pode ser comprado, inclusive a imprensa. Em Quinta feira, 17, por volta das 18 horas, com chuva, a leitura nos faz pensar que estamos em um lugar, mas termina, surpreendentemente, nos situando em outro. Francisco de Morais Mendes nos coloca na espacialidade – tantas vezes não desejada – que pode ser vencida pela fuga da imaginação.

 

No conto A duração, um rapaz que se encantava com o herbário do avô acaba se tornando também um botânico. Nesse caminho, o passado faz conservar a ilusão (talvez realidade) de que tenha feito parte da música de Kantor, um grande compositor. Porém, o próprio compositor desaparece quando ninguém mais escuta suas composições. O protagonista liga a existência à memória; fora da memória, a finitude atravessa tudo. É preciso que um artista reabilite o outro, tempos depois de seu desaparecimento. Em Gravitação, o personagem está tão imobilizado quanto nós que o acompanhamos. A tensão é contínua e a confusão mental compõe a sensação da leitura.  O narrador não sabe o que se passa consigo. A situação final traz o humor trágico das ocasiões inusitadas e a complexidade que envolve os coadjuvantes. Em O ato de ler, uma atriz está diante de uma grande plateia, simplesmente lendo, no gozo de ler. O conto é uma grande homenagem às leitoras e aos leitores, mostrando o ato de ler elevado a cena admirável, teatral, momento de fruição absoluta; um ato tão “comum" – e íntimo – que pode se transformar em algo extraordinário, espetacular.

 

Teca traz um ritmo quase melancólico. O homem solitário encontra uma jovem na fila do cinema e ela insiste em levá-lo ao seu quarto, para que a veja vestida de coelhinha. Sem forma de manter contato que não seja o acaso, o protagonista vivencia a precariedade do relacionamento. Não há nem avanço na relação e nem desapego sobre ela. No conto Autópsia, Francisco de Morais Mendes disseca um grupo literário que discute sobre autoficção, crítica literária, enquanto faz piadas entre os seus, de preferência utilizando como alvo aquele ou aquela que estiver ausente. Ressentimentos, traições, “alfinetadas” e conluios que podem terminar em “dentes a menos”.

 

Na finalização do livro há vários contos curtos sob o título Sugestões para começo, meio e fim, numerados sem sequenciamento crescente, que falam de temas variados. Inteligentes, por vezes bem-humorados, críticos e emocionantes – como, por exemplo, o dos tantos cachorros que já morreram na literatura ou o do restaurador de livros chamado Louzada que “Costuma dizer que os livros querem voltar a ser árvores. Por isso, as páginas ressecam e ficam quebradiças, como se tornassem à madeira que um dia foram”. Em muitos momentos, Sacrifício e outros contos é uma homenagem aos livros, ao ato de ler e às bibliotecas.

 

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É incrível a quantidade de cachorros que morrem nos textos literários. A literatura é um cemitério de cachorros. São muitas as histórias em que alguém leva um cachorro para morrer longe de casa. E, por mais que esse alguém pense ter enganado a todos, resta sempre um menino de olhos vermelhos no portão, porque sabe que o cachorro não voltará mais”.

 

 

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Sacrifício

Francisco de Morais Mendes

Contos

Ed. Gato Bravo

2019

 

O Ausente, de Edimilson de Almeida Pereira

 


 


Por Adriane Garcia

 

O Ausente, romance que integra a trilogia Náusea, de Edimilson de Almeida Pereira, conta a história de Inocêncio, um homem que vive no meio rural e se torna o rezador e o curandeiro de sua comunidade por predestinação. Durante os partos, raramente acontece de o bebê nascer envolto pelo saco amniótico e, em alguns lugares diversos do mapa, desde épocas remotas, o fato é compreendido como um sinal de proteção especial, resultando em um símbolo de sorte ou da marca inescapável de curar. Inocêncio é um empelicado.

 

Em Ausente, no curto espaço de tempo entre o final da noite e a madrugada, Inocêncio reflete sobre sua vida e sobre uma decisão radical que deve ou não tomar. Entre o destino e as possibilidades que não viveu, entre a obediência e a desobediência, situa-se o seu mal-estar. Na cama, ao lado de Inocêncio, está sua companheira Djanira, a professora, aquela que lhe alargou o mundo e lhe mostrou que nem tudo precisa ser como é. Durante a leitura do romance, acompanhamos a insônia incômoda de Inocêncio, que não dorme porque está prestes a escolher. E escolher é também recusar.

 

É interessante notar que o personagem muda de nome durante o romance. Inocêncio é Inoc e é Esse de Agora – o nome muda porque o ser muda no tempo, seja porque lhe nomearam, seja porque ele mesmo se renomeia. Os nomes do benzedor revelam a transitoriedade de si e um sentido de metamorfose que perpassa toda a sua reflexão: a do devir. Inocêncio dorme um para acordar outro. No seu mundo marcado pela permanência, Esse de Agora talvez decida retirar-se da sua herança e se refazer, pois descobre, ao visitar o moribundo e transgressor Zé Vítor, que é possível transgredir e refazer a própria identidade, fora dos maniqueísmos. Inocêncio rompeu um pacto e a escuridão da noite se traduz na agonia de uma velhice que questiona sobre agir por conta própria, sobre fundar na ação uma declaração de liberdade, mesmo quando pareça tarde demais.

 

Narrado em primeira pessoa, ainda que em temporalidade condensada, o que Inocêncio mostra é um tempo largo, profundo, que visita mistérios e arquétipos, um ritmo que só é possível naqueles que se dão a observar a si mesmos e ao seu entorno. Esse efeito é conseguido por meio da linguagem que o autor utiliza. Edimilson de Almeida Pereira constrói narradores (Djanira também narra em determinado momento) que não nos enganam. Estão mesmo onde dizem estar e passam pela situação que descrevem. A língua que falam chega até nós porque há um exercício muito atento de escuta. É o homem e a mulher do campo, cuja sintaxe se aproxima da poesia. Assim, o autor conta para que o personagem possa contar:

Nós, pessoas em carne, osso e alumbramento, vivemos daquilo que nos contam e que nos arvoramos a recontar. Por isso, esses, aí chegando – um pai, a mãe e o seu filho deles – em muita carência, mas ajustados no seu transporte, merecem que os escutemos.”

 

Ausente é um lugar, é o nome da comunidade, mas pode também ser uma pessoa que se ausenta da própria vida. Pela linguagem, Inocêncio faz a sua revolução noturna: rememorar e contar seu auge e ruína, apresentar o antigo e o novo, desestruturar-se e mostrar seu mundo desestruturado, mas em busca de outra inteireza. Seu exercício noturno de reflexão aproxima os dois ofícios, o de curador e de contador de histórias, pois na cura a palavra tem espaço primordial. O ausente Esse de Agora é presente.

A fala de Djanira (a Deja, semeadora de livros, filha de um semeador de árvores) é feita de amor, crítica social, lucidez e resistência. Para ela, estudo é remédio. Djanira mostra a opressão socioeconômica que se abate sobre os mais vulneráveis, sem precisar localizá-la em uma cronologia exata, pois injustiça e violência existem desde que o mundo é mundo; tanto que podemos reconhecê-las imediatamente, nos dias de hoje, seja no medo das comunidades que vivem próximas às barragens construídas pela mineração – e que a qualquer momento podem destruir populações inteiras como se nem crime fosse – seja na ameaça perene de perder suas terras para fazendeiros que contratam milícias para abater os legítimos donos.

Aqui o ar é longo, as plantas crescem com argumentos. Crescem por gentileza, às vezes penso que deveria ser por ódio contra os senhores abancados em mesas na cidade, que atiçam o fogo contra nós – rios e matas e cavernas. Mas o Ausente é uma sorte, ermo apartado fora do mapa.”

Inocêncio, um homem que faz o balanço da sua experiência, busca um novo encaixe para aquilo que, sozinho, já não faz mais sentido. Sim, ele, um homem religioso, um homem feito para ser santo, desconfia dos homens santos e dos discursos religiosos, duvida do deus que lhe contaram e duvida até mesmo da simbologia de sua marca de empelicado. Se a tradição lhe dita uma essência, a liberdade a nega e prega uma existência.

 

Edimilson de Almeida Pereira, que também é pesquisador de culturas e religiosidades afro-brasileiras, traz para a narração de O Ausente, muito da escuta alcançada e registrada no seu livro de estudos antropológicos, Mundo encaixado, escrito com Núbia Pereira de Magalhães Gomes. A religiosidade tem papel central nessas comunidades e se entrelaça com todos os outros temas:

 

A vontade divina consiste numa determinação que delineia o desempenho humano, evidenciando-lhe a precariedade. A religiosidade popular tem na resignação uma resposta a essa determinação, mas trata-se de uma resignação que encontra no sagrado sua justificativa. A força divina, capaz de gerar o universo, dispõe de sabedoria para também gerenciar aquilo que criou. Desse modo, resignação e fé se completam, uma vez que à aceitação segue-se a possibilidade da recompensa.”

 

A insônia de Inocêncio vem questionar o primeiro e mais crônico aprendizado, até que contraposto a outros encontros – os da ciência (Djanira), os de uma filosofia rebelde (Anastácio – um teólogo sem religião), os do exemplo divergente (Zé Vítor). Corajoso, ele enfrenta as questões da identidade e se coloca o problema universal respondido de modo muito insatisfatório pelas religiões: o do livre-arbítrio. O Ausente é um livro bonito, poético e profundo sobre um auto resgate. E quando se conta uma história, sempre se pode também resgatar um outro.

 

EcceHomo fala quando não deveria, penso. Mas dispenso logo essa ideia. Eu mesmo não vim para tirar algo dele. Vim porque a ferida era minha. Não preciso de Deus, nem do seo-sem-nome. Careço de um emplastro de alma. Se eu não me quisesse iludir, iria eu mesmo buscar o assa-peixe. Punha no pilão e macerava com sal e gordura, para dar liga. Enfiava depois, por minha conta e risco, num saco de pano virgem e tatuava sobre a minha dor. Enquanto isso, liberava deus para ir no açude, escolher um caniço e soprar sua música.” (p. 83)          

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O Ausente

Edimilson de Almeida Pereira

Romance

Editora Relicário

2020                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

terça-feira, 6 de julho de 2021

Como usar um pesadelo, de Bruno Ribeiro

 




Por Adriane Garcia

 

Em seu precursor A interpretação dos sonhos (1900), Freud nos informa que o sonho é a realização disfarçada de desejos. Durante o sono, o que fazemos é desligar nossos sensores (e censores) para os estímulos externos; assim, afastados do mundo, nossa censura enfraquece. Isso permite que o conteúdo inconsciente, reprimido, secreto, ultrapasse a barreira e se manifeste. Porém, alguma censura do consciente ainda age e o conteúdo não permitido se dissimula, se distorce, se condensa, se figura e se realiza em forma de sonho. O material dos sonhos é a memória de restos diurnos, da vida na vigília desde a infância. Como em um caleidoscópio, mas não ao acaso, o sonho é uma narrativa de combinações as mais variadas, cujo autor é o inconsciente e pode ser articulado a ponto de ter vários sentidos na interpretação do sonhador.  

 

Para dar atenção aos sonhos, esse maravilhoso e rico repertório de autoconhecimento, é preciso dar-se o tempo de dormir, sonhar, lembrar, até mesmo narrar ou escrever a experiência onírica. Em um mundo apressado, no qual somos parte de uma engrenagem produtiva que jamais pode parar de trabalhar e, na melhor das hipóteses, consumir, o sonho passa despercebido. O pesadelo – com todas as emoções e medos que evoca – acontece sem que se reflita sobre ele. Deixamos de contar nossos segredos a nós mesmos, de sermos surpreendidos sobre forças que se ocultam no nosso interior. Em um sistema que promove tudo o que é superficial, o aprofundar-se em si é algo a ser evitado.

 

A coletânea de treze contos de Bruno Ribeiro, intitulada Como usar um pesadelo coloca o sonho de terror no centro de todas as histórias. Se o sonho diz do próprio sonhador e não de outra pessoa, ao trazer esses elementos oníricos para a literatura, Bruno Ribeiro entrega-nos outros sonhos que não mais os seus, pois agora passam a ser nossos, sendo que cada símbolo ali tocará de maneira pessoal o leitor. Há também os sinais típicos, simbologias universais.  Reconhecemos os pesadelos narrados por Bruno Ribeiro porque seus elementos também nos são comuns, ainda que cada um os leia à sua maneira, pois o exercício de ler é o exercício de uma coautoria.


Nem sempre os pesadelos são lembrados na íntegra. O mais comum é que preenchamos as lacunas ao narrar o sonho, no momento em que nossas censuras conscientes já estão bem acordadas e que a linguagem de vigília elabora o conteúdo manifesto, podendo até chegar, em análise, aos conteúdos latentes. Nos contos de Como usar um pesadelo, a intrusão dos componentes ilógicos, as associações imprevistas, fragmentadas e compostas de imagens, já estão organizadas em narrativas que os leitores são capazes de compreender. Não se trata de literatura surrealista, no sentido formal, com discurso e associação livres. Trata-se do uso do nonsense típico dos sonhos, onde o caos não se dá na linguagem, mas no mundo que é observado.

 

O repertório onírico de Como usar um pesadelo apresenta-nos personagens e situações inusitados: um homem que observa uma mosca agonizante próxima ao seu prato com bife e batata frita. O bicho agoniza e o homem come. Todo o cenário é de brutalidade e terror. Até mesmo a garçonete tem algo de mosca. Uma caixa misteriosa com algo que deve ser consumido em quinze dias e que ninguém sabe o que há dentro. Uma narradora sexualmente atraída pelo dono da caixa tentando que ele ouça seu pensamento “vem me ver”. Uma tentativa de assassinato que se repete todas as noites, mas o alvo nunca dobra a esquina, nunca morre, pois jamais encontra a sonhadora e, assim, ela preserva o desejo intacto. Um pai olha o filho com espanto, achando-o feio, monstruoso; ao mesmo tempo, aparece um monstro na cidade, suscitando teorias. O monstro seria humano, restos de experiência científica? Medo, desconfiança, piedade, ataque; e o perigo de nos tornarmos aquilo que combatemos.

 

Em alguns dos contos, os pesadelos se aproximam muito da forma realista dos períodos de vigília e refletem a solidão, a falta de sentido e a medicalização da vida. Em Três dias sem as meninas não se pode afirmar que a personagem esteja em um pesadelo ou em surto psicótico: “Vou sentindo minha cabeça tombar pro lado, a varanda do nosso apê vai dobrando, inclinando, um furor toma conta dos meus olhos que se tornam estrábicos. A paisagem cinza da cidade fica horizontal e uma cólera de dor invade meu pescoço, minha mão treme, tudo fica dobrado, torto, inclinado, até que o mundo fica escuro e a paisagem de outrora desaparece.” Ao mesmo tempo, a literatura se beneficia da ambiguidade de tudo que pode funcionar como metáfora. Em outros contos, o cenário onírico se faz de pura fantasia, apresentando-nos uma festa em que corpos flutuam no céu amarrados por uma corda, feito balões, o efeito lembrando muito as pinturas surrealistas de René Magritte. Um outro momento, tomado de fantasia, é o conto “Passarinho preto”, no qual um homem possui um ninho no lugar da cabeça, com um passarinho dentro – um pássaro morto que canta.  Aqui, elementos típicos dos sonhos, como inversão e transmutação da representação mental acontecem. Chama a atenção a linguagem utilizada, especialmente poética, lembrando-nos que sonhador e poeta muitas vezes são sinônimos populares para descrever a mesma pessoa.

 

 

Como usar um pesadelo traz críticas sociais, políticas e existenciais implícitas. Os pesadelos selecionados mostram um mundo assolado pelo desequilíbrio, pelos transtornos mentais, pelo mau caratismo, pela busca do sucesso propagandeada pelos coachs, pela terra arrasada em que as ervas-daninhas da autoajuda, essa nova roupagem do charlatanismo, encontra para se alastrar; o sadomasoquismo das relações, a violência e a tortura como soluções políticas, findando assim toda a política. No pesadelo coletivo, não há espaço para a democracia. Em “A voz do povo” o ex-presidente é preso e a população decidirá sobre sua morte. A teatralização do inimigo para torná-lo maior e mais abjeto até destruí-lo mostram os caminhos da violência dos estados de exceção. A estética é a mesma que a dos pesadelos, a estética do horror, por isso Bruno Ribeiro nos dá a tortura em detalhes. Não há mais espaço para a subjetividade e por isso não há que se interpretar os sonhos. O homem e a mulher do horror são aqueles que trabalham, consomem, obedecem, frequentam igrejas, defendem a família, a pátria, a tortura contra seus inimigos; odeiam os mais fragilizados e qualquer revolucionário e não conseguem perceber o próprio pesadelo.

 

Outras vezes, o sonho revela a angústia de ver um filho afogado ou de perceber, como se fosse uma peça de dramaturgia encenada, sua família disfuncional e infeliz em detalhes, marcada pelo poder do patriarcado, que oprime mulheres e crianças, gerando conflitos de casamento, paternidade mal vivida, sexualidade mal resolvida, violência doméstica, sonhos e expectativas desfeitos. A recorrência dos espaços pintados de branco, leva-nos sugestivamente aos lugares em que estamos à mercê completa dos outros, hospitais, manicômios e prisões. E como não poderia faltar, Como usar um pesadelo mostra um encontro com o diabo e o recurso onírico da repetição, do espelhamento e do beco sem saída.

 

O sonhador de Como usar um pesadelo é perdido, sem entendimento, fragmentado. A palavra que o assombra é “fim”. Se a recorrência de pesadelos pode gerar medo de dormir, o pesadelo na vigília gera medo de viver. No fundo, os contos de Bruno Ribeiro não estão falando dos pesadelos que temos dormindo, mas daqueles que vivemos acordados. É preciso enfrentar a noite.

 

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Como usar um pesadelo

Bruno Ribeiro

Contos

Ed. Caos & Letras

2020