Por
Adriane Garcia
Exímio
contista, Francisco de Morais Mendes nos traz sua mais nova coletânea, Sacrifício
e outros contos. O livro, disponível também em e-book, foi o vencedor do
prêmio Gato-Bravo, da editora portuguesa de mesmo nome e em breve será lançado
no Brasil pela editora Jaguatirica.
No seu Decálogo
do perfeito contista, Horácio Quiroga aconselha: “Toma teus
personagens pela mão e leva-os firmemente até o fim, sem ver nada além do
caminho que traçastes para eles. Não te distraias vendo o que a eles não
importa ver.” Nos livros de Francisco de Morais Mendes, desde Escreva,
querida (1996), a regra de ouro de Quiroga é também a sua; nos
contos de Francisco de Morais Mendes as aparas são cuidadosamente
retiradas e os personagens tão concentrados em suas próprias histórias, que nos
concentramos com eles. Não há desvios e tudo tem importância dentro da narrativa.
No conto Sacrifício,
que dá nome ao livro, uma situação absolutamente absurda – achar dinheiro nas
ruas a vida toda – ganha verossimilhança na habilidade do autor. A leitura nos
encaminha para a empatia com o protagonista, Marcial. A surrealidade da
história nos comove porque Marcial tem sua humanidade tocada pelo destino, do
qual não consegue fugir. Será crime achar objetos perdidos e não devolver? A
quem acha tanto e não devolve só resta a lavagem de dinheiro? A metáfora para o trabalho cria a equivalência
de rebaixar-se, fazer sacrifício, aproximando-o da raiz da palavra “Tripalium”,
tortura. Em Sacrifício, uma situação que causaria inveja a qualquer um
na vida real, ao contrário, faz com que nós a rejeitemos; não queremos a
solidão e o vazio de Marcial, recusamos a sua boa sorte.
Em Jogo
de cartas, um mistério. Um homem poderoso contrata um poeta para escrever
cartas para sua esposa. Disso resulta um crime passional; porém à leitora/ao
leitor resta o encargo de suspeitar sobre quem foi que matou e quem foi que
morreu. Um jornalista precisa contar a verdade, mas sabe que tudo pode ser
comprado, inclusive a imprensa. Em Quinta feira, 17, por volta das 18 horas,
com chuva, a leitura nos faz pensar que estamos em um lugar, mas termina,
surpreendentemente, nos situando em outro. Francisco de Morais Mendes
nos coloca na espacialidade – tantas vezes não desejada – que pode ser vencida
pela fuga da imaginação.
No conto A
duração, um rapaz que se encantava com o herbário do avô acaba se tornando
também um botânico. Nesse caminho, o passado faz conservar a ilusão (talvez
realidade) de que tenha feito parte da música de Kantor, um grande compositor. Porém,
o próprio compositor desaparece quando ninguém mais escuta suas composições. O
protagonista liga a existência à memória; fora da memória, a finitude atravessa
tudo. É preciso que um artista reabilite o outro, tempos depois de seu
desaparecimento. Em Gravitação, o personagem está tão imobilizado quanto
nós que o acompanhamos. A tensão é contínua e a confusão mental compõe a
sensação da leitura. O narrador não sabe
o que se passa consigo. A situação final traz o humor trágico das ocasiões
inusitadas e a complexidade que envolve os coadjuvantes. Em O ato de ler,
uma atriz está diante de uma grande plateia, simplesmente lendo, no gozo de ler.
O conto é uma grande homenagem às leitoras e aos leitores, mostrando o ato de
ler elevado a cena admirável, teatral, momento de fruição absoluta; um ato tão “comum"
– e íntimo – que pode se transformar em algo extraordinário, espetacular.
Teca traz um
ritmo quase melancólico. O homem solitário encontra uma jovem na fila do cinema
e ela insiste em levá-lo ao seu quarto, para que a veja vestida de coelhinha. Sem
forma de manter contato que não seja o acaso, o protagonista vivencia a
precariedade do relacionamento. Não há nem avanço na relação e nem desapego
sobre ela. No conto Autópsia, Francisco de Morais Mendes disseca
um grupo literário que discute sobre autoficção, crítica literária, enquanto
faz piadas entre os seus, de preferência utilizando como alvo aquele ou aquela
que estiver ausente. Ressentimentos, traições, “alfinetadas” e conluios que
podem terminar em “dentes a menos”.
Na
finalização do livro há vários contos curtos sob o título Sugestões para
começo, meio e fim, numerados sem sequenciamento crescente, que falam de temas
variados. Inteligentes, por vezes bem-humorados, críticos e emocionantes – como,
por exemplo, o dos tantos cachorros que já morreram na literatura ou o do
restaurador de livros chamado Louzada que “Costuma dizer que os livros
querem voltar a ser árvores. Por isso, as páginas ressecam e ficam quebradiças,
como se tornassem à madeira que um dia foram”. Em muitos momentos, Sacrifício
e outros contos é uma homenagem aos livros, ao ato de ler e às bibliotecas.
“16
É
incrível a quantidade de cachorros que morrem nos textos literários. A
literatura é um cemitério de cachorros. São muitas as histórias em que alguém
leva um cachorro para morrer longe de casa. E, por mais que esse alguém pense
ter enganado a todos, resta sempre um menino de olhos vermelhos no portão,
porque sabe que o cachorro não voltará mais”.
***
Sacrifício
Francisco
de Morais Mendes
Contos
Ed. Gato
Bravo
2019