Estou
com as mãos em Cardume. Reservei esta semana que passou para lê-lo.
O livro já está comigo há muito tempo e eu que só o tinha
folheado, aguardava o instante exato. Acredito que os livros têm o
seu momento em nós. Então foi isso, durante a semana eu andava de
viagem com Carlos Moreira em seu cardume de palavras, enquanto
refletia com ele sobre o cardume em que e com o qual vivemos.
Mas
se um cardume age sem vontades individuais, pois a vontade de um
cardume é sempre coletiva, o que nos leva à indagação de se há
mesmo algo que se possa chamar vontade num cardume, Carlos Moreira
mostra-nos que o seu é subversivo. Suas palavras se juntam para
formas variadas, como se se tratasse, na verdade, de um cardume
mutante, um cardume a serviço da vontade da palavra. Um cardume para
fugir do cardume. Vários poemas. Vários cardumes.
Já
de entrada, a epígrafe de Wislawa Szymorska: “O abismo não nos
separa/O abismo nos cerca.” Sim, esta viagem, se você for um
futuro leitor de Cardume, é bom que se saiba, será uma viagem nos
abismos. Mas o abismo amparado pela palavra. A palavra que em Carlos
Moreira é ser. A palavra é sua saída para poder ser. Da condição
humana, trabalhada em Heidegger e, posteriormente, em Sartre, que vai
da reflexão do tempo do homem até a sua impossibilidade de ser,
Carlos Moreira faz o seu ponto de indagação e crítica, pensamento
e criação. Paradoxalmente ao não ser, ele é. É poeta. E isto tem
função também, em sociedade. E esta a inexorabilidade colocada:
a
palavra
esta
lepra
entranha
na
minha pele
sua
lavra
não
quero saber
e
digo
gosto
do silêncio
da
água
no
fundo da piscina
a
maldita
ignora
meu pedido
e
assina em mim
pelo
avesso
o
sim do seu signo
Em
versos curtos e de precisão, em sua maioria, mas de maneira alguma
presa numa única forma, a poesia de Carlos Moreira só obedece ao
poema. Notaremos que ele se amparou na tradição de nossa
literatura poética para possuir todas as ferramentas. Se um poema
pede versos longos, rimas ou não, aliterações, metáforas (e como
são belas as metáforas em Carlos Moreira!) neologismos por
aglutinação, se pede a forma de uma poema visual lá está. Mas
longe de ser uma miscelânea, encontraremos a voz absolutamente
reconhecível deste poeta, unindo tudo, numa imagética rica e muitas
vezes de espanto, um ritmo que não falha nunca, este o seu fio, a
densidade, a irreverência, a seriedade mesmo quando brinca, há
humor suave, amargo, o tema amplo, o poeta que em muitos versos nos
fará também lembrar Nietzsche e seu olhar por cima da manada.
Cardume.
o
porco fuça fareja
esfrega
o focinho
contra
raiz e terra
o
corpo todo do porco
emprega
a si na tarefa
de
encontrar a trufa perfeita
aquela
que ele mesmo
jamais
comerá
porque
a entrega
o
porco é um poeta
Seus
temas são os de um poeta solitário e solidário: Condição humana,
indagação ontológica e metafísica, morte, saudade, memória,
tempo, crítica à sociedade num desmascaramento do mundo, amor,
existir, a relação leitor/poeta, o espanto infantil diante da
mágica da natureza e, ao mesmo tempo, a natureza como um
anti-idílio, o silêncio e o paradoxo que é o silêncio transmutado
em palavras do poeta, a solidão, o tédio, o vazio, o uno, a
destrutividade humana, a denúncia de uma convivência desastrosa, a
indagação ética.
nenhuma
coluna
sustentará
o templo
que
não construímos
deus
nenhum repousará
sobre
o altar
plantado
no escuro
não
restam deuses
nem
templos
por
derrubar
derrubaremos
uns
aos outros
Não
há nenhuma ingenuidade em Cardume, lá estão a dificuldade de ser,
a proibição de ser, a subversão de ainda assim ser, quando ser é
fazer sentido, possuir e poder exercer palavra, linguagem, expressão;
ser um homem verbo, pois toda renúncia é possível, exceto a
renúncia à palavra. Ser como encontro com alguma dignidade e com a
beleza. Como a beleza deste poema, este mar inesquecível onde só o
Cardume de Carlos Moreira foi. Enfim, um livro adorável. Brilhante.
o
mar
me
recebe
lambendo
meus
pés
salta
em
meus
joelhos
pousa
no
meu peito
sua
pequena
pata
úmida
pede
que
me deite
mais
suave
que
a chuva
e
tudo
que
somos
é
bonito
simples
e
antigo
o
mar
é
o meu cão
favorito
Cardume,
Carlos Moreira, editora Valer. Os exemplares podem ser adquiridos
também com o autor, via facebook.