segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Estados alucinatórios, de Eduardo Sabino



Por Adriane Garcia



Há momentos em que a linguagem é convocada a dizer de outra maneira que não a usual, cotidiana ou direta. Momentos em que, parece, um mesmo idioma se torna ininteligível, pois as mesmas palavras já soam esvaziadas ou até mesmo antagônicas, a depender do ouvinte. Nestes momentos, surgem tentativas de usá-las de outros modos e é notável que a resposta venha da capacidade das palavras de romper com a realidade a fim de adentrar no nonsense, no fantástico para, estendendo os seus sentidos, voltar a falar da realidade. Não por coincidência, José J. Veiga escreveu A hora dos ruminantes durante a ditadura militar no Brasil (1966) e Eduardo Sabino escreveu Estados alucinatórios entre o Golpe de 2016 e o governo Jair Bolsonaro.

Estados alucinatórios é um livro que reúne onze contos, cujos personagens ultrapassam a fronteira que separa sonho de realidade, racionalidade de alucinação, sanidade de loucura. E é justamente ultrapassar esses limites que permite que as leitoras e os leitores compreendam as alegorias e retornem para pensar o momento presente.

Em Samuel e Samael, o adolescente descobre que tem o demônio no corpo. Não qualquer demônio, mas aquele tão encantador que fez com que Lilith desistisse de vez de Adão e fosse morar com Samael. A relação conflituosa de Samuel com seu demônio finaliza-se de um modo emocionante, que faz pensar sobre o sentido da vida, a poesia e a energia vital que a cultura de adultos quer nos obrigar a perder.

Alimentando Junior, dentro de um livro de contos ótimos, é talvez o de maior excelência. Nesta narrativa, de condução exemplar, um homem, em seu narcisismo, resolve adotar um filhote de crocodilo sem a menor preocupação sobre o que isso pode significar no futuro. Mais do que a verossimilhança, totalmente alcançável no conto, o que chama atenção aqui é que os recursos estilísticos e a imaginação do autor funcionam de forma perfeita para gerar a alegoria pretendida.

Em Blattaria (ordem à qual pertencem as baratas), um homem deixa uma situação doméstica chegar ao insustentável até lhe custar caríssimo. É interessante que Sabino use justamente o recurso da alucinação para chamar à razão: não a do homem de Blattaria – um caso em que a paixão ultrapassou todos os limites; mas a razão dos que ainda a possuem.

Em Um sonho chinês há aquela suspeita por todos nós alguma vez aventada: somos parte do sonho de alguém? Existimos apenas enquanto imaginação de outro? Qual dos portais é real: o que frequentamos enquanto dormimos ou aquele no qual nos vemos acordados?

Pessoa física é alegoria pura. A metáfora triste e abissal em que se vai tornando um mundo onde as grandes empresas, corporações e bancos substituem os Estados e, pior, as próprias pessoas. Um conto sobre a solidão, a perda da identidade e a objetificação humana.

Em O abraço da serpenteSabino nos dá, ao avesso, o mundo da pós-verdade. Não o da mentira (que ainda é um braço da verdade, pois em oposição a ela, em relação), mas o das novas verdades, das fakenews, da abundância de novas versões sem qualquer lastro com os fatos, afinal, os fatos não importam mais, o importante é que o sujeito se torne impermeável a tudo o que o contradiz.

Se o fantástico usa muitas vezes das crendices, superstições e misticismo de uma comunidade na elaboração das histórias, Sabino nos traz em Ofertório as doutrinas e dogmas do Cristianismo com o mesmo peso dessas superstições e misticismos.

Em Ofertório temos um padre cuja retórica e má-fé se confundem com a de um pastor evangélico. E não importa a denominação se, no fim das contas, as ovelhas sempre se afogarão no naufrágio. Se houver a expectativa de presenciar algo, a mente se prepara para presenciar. As alucinações coletivas sensoriais podem ser induzidas por sugestão e isso os pastores, padres e afins conhecem muito bem.

No conto A natureza suína, o recurso da inversão nos rende boas risadas. Sabino cria uma família de porcos falantes, à moda das fábulas, e se aproveita da ambiguidade da palavra “porco/porca”. Um conto sobre gente de bem, sobre parte das famílias brasileiras.

Em Deu pau, a obsessão fálica fica exposta. Obsessão essa que não poderia deixar de integrar e promover a cultura do machismo e, por consequência lógica, a cultura do estupro. Aqui, a alucinação é a própria realidade: só em 2018, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o país registrou 180 estupros por dia.

Em Pérolas aos demos, retorna-se a um tema tratado em Samuel e Samael: talvez os demônios queiram de nós nossa melhor parte ou, talvez, a poesia só interesse aos demônios.

No último conto, Alice e as barragensSabino denuncia a situação ambiental por que passa o estado de Minas Gerais, vítima de crimes ambientais, cujos criminosos parecem inimputáveis. Ao mesmo tempo, a correlação é feita com o estado emocional de Alice, uma mulher à beira de estourar. Alice é a metáfora daquilo que, chegando ao limite, dá sinais claros de transbordamento e pede urgência de resolução, mas não resolve.

Todos os contos trazem elementos utilizados na literatura fantástica, nas fábulas (os animais-arquétipos), no maravilhoso dos contos de fadas, na lógica do absurdo. As situações inusitadas, as ironias e hipérboles fazem com que o livro tenha muito humor e alguns contos, como Alimentando Junior ou A natureza suína, por exemplo, rendem muitas risadas ao leitor. A crítica social perpassa todas as histórias, uma atenção para os arranjos ditatoriais, a gestação do ovo da serpente, ou do crocodilo – uma alegoria do fascismo.

A alucinação é também um recurso da tentativa da consciência em produzir um mundo que faça sentido, mas não é um recurso seguro. A humanidade tem um histórico assustador de alucinações coletivas que costumam fazer mortandades incríveis. É preciso achar um sentido para o mundo antes que a alucinação o faça e isso parece se chocar com o sistema econômico e político no qual vivemos. O título Estados alucinatórios engloba perfeitamente os contos reunidos. Não só os personagens estão em plena alucinação: o mundo está alucinado. O país está alucinado. A realidade está em plena alucinação. A literatura, mais uma vez, não se omite.


Eu contornava a orla da Lagoa da Pampulha, saindo do trabalho, quando o encontrei. Surgiu por entre as capivaras que tomavam sol à margem, pequeno e inofensivo feito um cão abandonado: um filhote de crocodilo. Até então não julgava que isso ocorresse assim tão facilmente, a paixão entre um homem e um animal selvagem tão exótico, mas aconteceu. Um sentimento oceânico, assim, de repente, no meio de uma cidade tropical e serrana onde espécies como aquela não deveriam sequer existir, nas proximidades do zoológico de onde talvez ele tivesse fugido. Estacionei o carro às pressas, caminhei devagar para não afugentar e agachei a três metros do bebê: ele também deve ter sentido o mesmo, pois veio até mim, e peguei-o no colo.” (p. 33, do conto Alimentando Junior)

*** 
Estados Alucinatórios
Eduardo Sabino
Contos
Ed. Caos e Letras 
2019


Ombros caídos olhando para o inferno, de Constança Guimarães





Por Adriane Garcia


Guta, Dora, Ana, Fátima, Suzane, Sílvia: mulheres nas quais é possível ver uma multidão de outras mulheres, atravessando o tempo (sem plural, pois é um só o tempo da violência). O delegado: um homem que representa a misoginia, o machismo e os ciclos sem interrupção da cultura do estupro. Ombros caídos olhando para o inferno, romance de Constança Guimarães, narra em terceira pessoa, mas por uma voz narrativa claramente comprometida em falar pelas silenciadas, a vida de mulheres que têm suas histórias e seus corpos marcados pelo jugo masculino.

É interessante notar que o algoz, o delegado, não tem nome, que seu nome seja o título de sua profissão, uma profissão ligada ao poder e, muitas vezes, ao abuso de autoridade. Ao chamar o personagem de delegado, Constança dá a ele uma dimensão metafórica e coletiva; afinal, sabemos, o nome do delegado é Legião.

O romance se utiliza de uma estrutura fragmentada, cada momento apresentando a história de uma personagem. O recurso funciona bem, inclusive por deslocar o protagonismo de uma personagem para outra, além de gerar curiosidade e suspense durante a leitura.

Também é de se notar que a voz narradora assume certas características do processo de memória das personagens. No início da narrativa, é possível perceber a tentativa consciente de Guta não se lembrar de nada, de parar qualquer processo que possa levar à memória de seu passado tão doloroso. Porém, sendo inútil esforço, um simples objeto pode desencadear o caleidoscópio de lembranças. A voz narradora também parte desse desencadeamento, usando a força que certos eventos possuem como motor para narrar. Em outro exemplo, Dora sempre se enoja da aparência física do delegado, pois lembrar-se dele é lembrar-se de seus aspectos repugnantes e sentir novamente o nojo; os mesmos detalhes são repetidos pela voz narradora.

A violência do delegado sobre as mulheres de Ombros caídos olhando para o inferno não decorre do fato de ele ser um monstro. Constança Guimarães fala de um homem normal, bem adaptado, escolarizado, branco, que conseguiu emprego, posição, família. Não é uma exceção, e sim um representante de muitos homens em condição semelhante. O que permite ao delegado fazer o que faz – e isso a escritora Micheliny Verunschk analisa com lucidez na orelha do livro – é a naturalização da violência do homem sobre a mulher, é a naturalização do patriarcado a ponto de ser introjetado e não suscitar questionamentos. Os abusos e crimes cometidos pelo delegado parecem a ordem natural das coisas, quando são a ordem cultural das coisas. Ângela Davis em seu Mulheres, raça e classe alerta para esse tipo de estuprador. Não o “estuprador típico” mostrado pelos telejornais para sustentar os mecanismos racistas do capitalismo, mas o “estuprador anônimo”:

... em primeiro lugar, por que existem tantos estupradores anônimos? Não seria esse anonimato um privilégio usufruído pelos homens cuja condição social os protege de processos judiciais?”

Dados do Ministério da Saúde, coletados entre 2011 e 2017, mostram que, no Brasil, a maioria das ocorrências de abuso sexual, tanto com crianças quanto com adolescentes, ocorre dentro de casa e os agressores são pessoas do convívio das vítimas, geralmente familiares.

Os prejuízos do patriarcado para a humanidade são incalculáveis, mulheres e crianças com depressão profunda, famílias disfuncionais, paternidades negadas, maternidades indesejadas, potências profissionais anuladas, infâncias violadas, feminicídios, mantendo metade da raça submetida à outra metade, utilizando para isso todos os mecanismos da violência física e psicológica. Um ciclo de infelicidade que não se restringe apenas às mulheres, volta-se contra a própria humanidade e impossibilita qualquer vida plena.

As mulheres em Ombros caídos olhando para o inferno apanham, apanham muito – e algumas delas são estupradas pelo homem de bem, pelo homem da família. Em uma sociedade que naturalizou a violência contra a mulher, ela muitas vezes não pede ajuda, não enxerga socorro possível a não ser o que pode ser executado com as próprias mãos. Constança Guimarães constrói um romance sobre o machismo e sobre a força das mulheres, sobreviventes de um mundo que as ameaça, todos os dias.

A vida adulta da Fátima menina começou a partir de uma aposta entre o escrivão e o delegado. O escrivão duvidou que o delegado fosse capaz de ter mais uma mulher na confusão de sua vida. E o delegado, rindo numa arrogância, disse que comeria todas as meninas de 17 anos que atravessassem a sua frente. Eles conversavam, fumavam e tomavam café em copos de vidro na entrada da delegacia, para fora da porta, num avarandado de muro baixo que circundava todo o térreo daquele sobrado antigo, até o começo do enorme pátio onde eram estacionadas as viaturas. Fátima passava na calçada, voltando do açougue, onde tinha ido comprar 350 gramas de acém para macarronada especial que a mãe ia fazer para o aniversário do Álvaro. O irmão adorava macarronada. O delegado e o escrivão se olharam e definiram o futuro da menina que queria fazer o curso de normalista, ser professora e ler muitos livros para seus alunos.
A paquera começou naquela tarde mesmo. O delegado interpelou Fátima, sob o pretexto de lhe dar instruções sobre como andar em segurança para não ser molestada pela rua. Ela agradeceu, ele jogou um charme, ela não soube o que dizer, ele a elogiou, a menina ficou sem graça e sorriu, ele não perdeu tempo e disse que aquele era o sorriso mais bonito que já havia visto em toda a sua vida. Fátima ficou cardíaca e seduzida, quando agradeceu já era um inseto voando em direção à teia, sem escape. “Comer menina educadinha é diferente. Essa aí eu vou preparar. Quero gamadinha, na minha mão”, dizia o delegado naquela noite, enquanto pegava suas coisas, chave do carro, carteira e arma, para ir para casa. O mundo para Fátima começava a se fechar em uma abóboda, que travou hermeticamente e, num súbito, ela se adaptou ao ar rarefeito, só décadas depois notaria as pedras nos pulmões ressentidos.”
(p. 159/160)


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Ombros caídos olhando para o inferno
Constança Guimarães
Romance
Ed. Urutau
2017























quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Todos que conheço são suicidas, de Cristiano Silva Rato






Por Adriane Garcia


Certa vez, fui a uma apresentação de SLAM, em um evento que trazia vozes da periferia, e ouvi um poema que contava o cotidiano e a dor de uma filha cujo pai era um presidiário. A menina trazia uma dor real, não era ali o “fingidor” de Pessoa. Era a pessoa, a própria.

Lugar de fala” é um conceito que tem causado bastante irritação e revolta, sobretudo para aqueles que detinham a palavra com exclusividade e agora se veem dividindo espaços e, vez em quando, até cachê.  Pessoas que, por exemplo, brancas, sempre se arrogaram o direito de dizer o que é ser negro no Brasil, como verdade absoluta, e agora se veem contestadas pelas – que audácia – pessoas negras (!).

Lugar de fala” também é um conceito enriquecedor para os que têm ouvidos para ouvir, e ouvem. Aqueles que foram silenciados e tiveram seus pontos de vista emulados por outros são – até por isso – os donos da novidade. Não novidade no sentido supérfluo e banal da palavra, mas novidade na sua raiz primeira: o novo (que é o velho oculto). Ouvir esses pontos de vista (lugar de escuta) acrescenta-nos o outro lado da moeda; afinal, o mundo branco, macho, hetero, patriarcal, cristão não é um mundo completo e essa versão já temos.

Em Todos que conheço são suicidas, Cristiano Silva Rato traz um livro cujos poemas são, em sua maioria, confessionais. Entre as dores dos fracassos amorosos, a voz de um eu-lírico que tem no seu cotidiano a familiaridade com os tiros, com a violência policial, com o Estado liberal ocultando na meritocracia o genocídio da população negra, com a morte prematura dos seus amigos e a angústia permanente de saber que pode ser o próximo. No título o poeta já dá a referência sobre os que, lançados à categoria de “cidadãos” de segunda classe, são induzidos ao autoextermínio.

De dentro da realidade dos locais (e do corpo negro) em que a lei é aplicada apenas para prosseguir no antigo projeto brasileiro de exterminar a população negra, a vida é de alta pressão (com alterações da pressão arterial e maior risco cardíaco, inclusive). No poema introdutório, toda a carga da denúncia e a explicitação do sentimento dessa vivência:

Sobre uma pergunta

Ainda não cortei os pulsos.
Você está bem?
Eu
ainda
não cortei.

O poeta usa, em poemas vários, versos inequívocos para demonstrar o estrago que o racismo faz no corpo negro, transformando-o numa espécie de campo minado: “e no peito/ um pino/ arrebento”; “um sentimento de desprezo por mim”; “em mim tudo está trincado”; “só um dia/sem nada temer”; “em nome do povo,/ pisoteiam meu corpo”; “Sinto um ódio profundo em mim”; “sem poesia, longe das vidas interrompidas”; “o amanhã chega,/ com a guilhotina enfileirada”; “aguarda o julgamento dos bancos./Dos brancos”.

Todos que conheço são suicidas traz um tom de “in memorian” e é dedicado àqueles que foram induzidos pela sociedade e pelo Estado a se matar. Mas também é ofertado aos que completam mais um ano de vida.

Ah! Por que querem que eu fale sobre o ódio?” Pergunta o poeta que deseja – como tantos o fazem – apenas “dizer coisas ridículas”. Porém, a luta de quem se manifesta deste lugar que Cristiano fala é outra.

Ainda assim, mesmo em guerra, um poeta sempre nos descortina o pôr do sol:

E quem acredita em poesia
se ela não possui
sua freguesia?

Bem, à tarde, os prédios
escondem o pôr do sol.


***
Todos que conheço são suicidas
Cristiano Silva Rato
Poesia
Ed. Caos e Letras
2019