Por Adriane Garcia
Há
momentos em que a linguagem é convocada a dizer de outra
maneira que não a usual, cotidiana ou direta. Momentos em que,
parece, um mesmo idioma se torna ininteligível, pois as mesmas
palavras já soam esvaziadas ou até mesmo antagônicas,
a depender do ouvinte. Nestes momentos, surgem tentativas de usá-las
de outros modos e é notável que a resposta venha da
capacidade das palavras de romper com a realidade a fim de adentrar
no nonsense, no fantástico para, estendendo os
seus sentidos, voltar a falar da realidade. Não por
coincidência, José J. Veiga escreveu A
hora dos ruminantes durante a ditadura militar no Brasil
(1966) e Eduardo Sabino escreveu Estados
alucinatórios entre o Golpe de 2016 e o governo Jair
Bolsonaro.
Estados
alucinatórios é um livro que reúne onze
contos, cujos personagens ultrapassam a fronteira que separa sonho de
realidade, racionalidade de alucinação, sanidade de
loucura. E é justamente ultrapassar esses limites que permite
que as leitoras e os leitores compreendam as alegorias e retornem
para pensar o momento presente.
Em Samuel
e Samael, o adolescente descobre que tem o demônio no
corpo. Não qualquer demônio, mas aquele tão
encantador que fez com que Lilith desistisse de vez de Adão e
fosse morar com Samael. A relação conflituosa de Samuel
com seu demônio finaliza-se de um modo emocionante, que faz
pensar sobre o sentido da vida, a poesia e a energia vital que a
cultura de adultos quer nos obrigar a perder.
Alimentando
Junior, dentro de um livro de contos ótimos, é
talvez o de maior excelência. Nesta narrativa, de condução
exemplar, um homem, em seu narcisismo, resolve adotar um filhote de
crocodilo sem a menor preocupação sobre o que isso pode
significar no futuro. Mais do que a verossimilhança,
totalmente alcançável no conto, o que chama atenção
aqui é que os recursos estilísticos e a imaginação
do autor funcionam de forma perfeita para gerar a alegoria
pretendida.
Em Blattaria (ordem
à qual pertencem as baratas), um homem deixa uma situação
doméstica chegar ao insustentável até lhe custar
caríssimo. É interessante que Sabino use
justamente o recurso da alucinação para chamar à
razão: não a do homem de Blattaria –
um caso em que a paixão ultrapassou todos os limites; mas a
razão dos que ainda a possuem.
Em Um
sonho chinês há aquela suspeita por todos nós
alguma vez aventada: somos parte do sonho de alguém? Existimos
apenas enquanto imaginação de outro? Qual dos portais é
real: o que frequentamos enquanto dormimos ou aquele no qual nos
vemos acordados?
Pessoa
física é alegoria pura. A metáfora
triste e abissal em que se vai tornando um mundo onde as grandes
empresas, corporações e bancos substituem os Estados e,
pior, as próprias pessoas. Um conto sobre a solidão, a
perda da identidade e a objetificação humana.
Em O
abraço da serpente, Sabino nos dá,
ao avesso, o mundo da pós-verdade. Não o da mentira
(que ainda é um braço da verdade, pois em oposição
a ela, em relação), mas o das novas verdades, das
fakenews, da abundância de novas versões sem qualquer
lastro com os fatos, afinal, os fatos não importam mais, o
importante é que o sujeito se torne impermeável a tudo
o que o contradiz.
Se
o fantástico usa muitas vezes das crendices, superstições
e misticismo de uma comunidade na elaboração das
histórias, Sabino nos traz em Ofertório as
doutrinas e dogmas do Cristianismo com o mesmo peso dessas
superstições e misticismos.
Em Ofertório temos
um padre cuja retórica e má-fé se confundem com
a de um pastor evangélico. E não importa a denominação
se, no fim das contas, as ovelhas sempre se afogarão no
naufrágio. Se houver a expectativa de presenciar algo, a mente
se prepara para presenciar. As alucinações coletivas
sensoriais podem ser induzidas por sugestão e isso os
pastores, padres e afins conhecem muito bem.
No
conto A natureza suína, o recurso da inversão
nos rende boas risadas. Sabino cria uma família
de porcos falantes, à moda das fábulas, e se aproveita
da ambiguidade da palavra “porco/porca”. Um conto sobre gente de
bem, sobre parte das famílias brasileiras.
Em Deu
pau, a obsessão fálica fica exposta. Obsessão
essa que não poderia deixar de integrar e promover a cultura
do machismo e, por consequência lógica, a cultura do
estupro. Aqui, a alucinação é a própria
realidade: só em 2018, segundo o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, o país
registrou 180 estupros por dia.
Em Pérolas
aos demos, retorna-se a um tema tratado em Samuel e
Samael: talvez os demônios queiram de nós nossa
melhor parte ou, talvez, a poesia só interesse aos demônios.
No
último conto, Alice e as barragens, Sabino denuncia
a situação ambiental por que passa o estado de Minas
Gerais, vítima de crimes ambientais, cujos criminosos parecem
inimputáveis. Ao mesmo tempo, a correlação é
feita com o estado emocional de Alice, uma mulher à beira de
estourar. Alice é a metáfora daquilo que, chegando ao
limite, dá sinais claros de transbordamento e pede urgência
de resolução, mas não resolve.
Todos
os contos trazem elementos utilizados na literatura fantástica,
nas fábulas (os animais-arquétipos), no maravilhoso dos
contos de fadas, na lógica do absurdo. As situações
inusitadas, as ironias e hipérboles fazem com que o livro
tenha muito humor e alguns contos, como Alimentando
Junior ou A natureza suína, por exemplo,
rendem muitas risadas ao leitor. A crítica social perpassa
todas as histórias, uma atenção para os arranjos
ditatoriais, a gestação do ovo da serpente, ou do
crocodilo – uma alegoria do fascismo.
A
alucinação é também um recurso da
tentativa da consciência em produzir um mundo que faça
sentido, mas não é um recurso seguro. A humanidade tem
um histórico assustador de alucinações coletivas
que costumam fazer mortandades incríveis. É preciso
achar um sentido para o mundo antes que a alucinação o
faça e isso parece se chocar com o sistema econômico e
político no qual vivemos. O título Estados
alucinatórios engloba perfeitamente os contos
reunidos. Não só os personagens estão em plena
alucinação: o mundo está alucinado. O país
está alucinado. A realidade está em plena alucinação.
A literatura, mais uma vez, não se omite.
“Eu
contornava a orla da Lagoa da Pampulha, saindo do trabalho, quando o
encontrei. Surgiu por entre as capivaras que tomavam sol à
margem, pequeno e inofensivo feito um cão abandonado: um
filhote de crocodilo. Até então não julgava que
isso ocorresse assim tão facilmente, a paixão entre um
homem e um animal selvagem tão exótico, mas aconteceu.
Um sentimento oceânico, assim, de repente, no meio de uma
cidade tropical e serrana onde espécies como aquela não
deveriam sequer existir, nas proximidades do zoológico de onde
talvez ele tivesse fugido. Estacionei o carro às pressas,
caminhei devagar para não afugentar e agachei a três
metros do bebê: ele também deve ter sentido o mesmo,
pois veio até mim, e peguei-o no colo.” (p. 33, do conto
Alimentando Junior)
***
Estados
Alucinatórios
Eduardo
Sabino
Contos
Ed.
Caos e Letras
2019